Pensar a potencialidade dos espaços urbanos como campo simbólico, amplia as mais diversas manifestações sentimentais e psicológicas das relações humanas. Ao mesmo tempo que se é imposta, por vezes, indesejada aproximação física no cotidiano das metrópoles, surge também a possibilidade de um desejo que busca um contato efetivo com o outro.
Dos abismos que se abrem em e entre cada um, a vulnerabilidade de um amor romântico surge como dos mais intimidantes e inevitáveis. Se são os desejos impulsivos que levam à beira de um precipício, constantemente surge o convite para o salto iminente: um olhar trocado num vagão de metrô, a poltrona ao lado preenchida por um desconhecido numa sessão de cinema, uma gentileza inesperada. Apesar da potencialidade simbólica do espaço que se habita, a concretude nunca se fez tão literal como nos dias de hoje. Constante paradoxo.
Talvez por isso exista o medo de saltar. Não há o temor da queda, mas, sim, da rasa profundidade que impede desfrutar dela: o que se espera é encontrar no outro exatamente aquilo que falta para oferecer. Sentimento inventado, modelado e previsível para que atenda às próprias vontades e desejos através de uma outra figura. Neutraliza-se a expectativa, o desconhecido, as possibilidades de ver diferentes tons de uma mesma pessoa. Usa-se de certo cinismo como defesa para esconder as próprias falhas, carências e medos (seja o de se perder dentro de uma relação ou de precisar ver o outro a partir de uma forma completamente inesperada). Assim, se apaixonar nada mais é do que sustentar uma projeção.
Pensar o amor dentro das Psicologias (aqui no plural para reforçar todos os vieses epistemológicos que o campo permite), então, é pensar estruturalmente no sentimento que sustenta toda e qualquer relação – terapêutica ou não. Seja o amor ou o amar, não importa: existem mais perguntas do que respostas possíveis para defini-los.
Retomando conceitos de Freud, Lacan (1901-1981), psicanalista francês, desdobra em sua obra definições possíveis do amor, partindo da linguagem como estrutura básica das diferentes manifestações psicológicas. Vale pensar uma dessas possibilidades, tendo como ponto de partida as potencialidades, encontros e desencontros do espaço urbano (seja este efetivamente simbólico ou não), pela ideia que sintetizou ao dizer que “o amor é dar aquilo que não se tem”.
Ou seja, numa relação essencialmente objetal, o eu e o outro se confundem num jogo imaginário em que aquele que ama precisa ser amado através da oferta de sua falta. É a carência que move este desejo numa busca por aquilo que, se supõe, será suprido na imagem idealizada deste amado. Trata-se daquela súbita tomada do sentimento, paixão. Uma manifestação erótica e pulsante que busca unidade: dois corpos que se tornam um, um amante que ensina sua própria falta para supri-la¹.
Em um contexto onde nossa autoestima se mede pela quantidade de curtidas em uma foto, o que há, de fato, na qualidade do amor que se vive? Ou melhor, do amor que se idealiza? A hiper presença exigida num campo não só virtual teria potencializado a fragmentação das pessoas a ponto de sustentarem relações enquanto estas revelarem apenas aquilo que desejam ser ou criaram seres tão narcísicos que é conveniente impor ao outro um ego que reflete somente aquilo que lhe cabe? O amor serve, então, aos desejos mais torpes e, em certa tendência, masoquistas?
A liquidez das relações contemporâneas, como bem definiu Bauman, converte-se na plasticidade que estrutura carências e egos desajustados, numa busca por completude que não cabe em si: sempre haverá a tensão e o desejo pelo porvir constituindo uma brutal efemeridade em paixões que se perdem pelo ar.
Enquanto essas paixões existirem, surgirem e se transformarem, vale compreender que o espaço, tempo e respeito necessários para o amor (este, sim, manifestado em outras nuances menos objetificadas) podem se fazer presentes. Por mais que haja a fantasia, certa loucura e até mesmo pouco discernimento, permitir-se essas vivências é fundamental para que se tenha ganhos também pessoais: o saldo final pode ser positivo, mesmo quando a intenção de ser mais desencontra das realidades manifestadas (por si e pelo outro). Cabe, então, perceber que o limiar do precipício é presente e sempre vale a pena lançar-se sem medo do fundo, seja ele qual for.
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Murillo Garcia (Site), tem 29 anos, queria fazer Cinema, mas foi estudar Psicologia. Cogitou a possibilidade de morar na Espanha, mas ficou em São Paulo. Pensa em escrever um romance, mas não larga a poesia. E tem a Lua em Libra.
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¹ “Sobre o amor e suas falhas: uma leitura da melancolia em psicanálise” de Felipe Castelo Branco.
(Fotografia Cindy Sherman)