MÃOS, TATO E GESTOS – VALTER MENEZES

Até que ponto vivemos no piloto automático? Trabalho, casa. Trabalho, mercado, casa, micro-ondas, fast-food, congelados, enlatados: viva a vida pós-moderna!

Comemos e bebemos sem nos atentarmos ao momento. Às vezes, até pensamos nas calorias e nos nutrientes, mas quando foi que deixamos de ver o ato de se alimentar como uma ação de convívio social, de prazer e de renovação?

Vida urbana em uma cidade como São Paulo, no ritmo Paulistano, é algo muito louco. Corremos, estamos sempre sem tempo, comemos no carro, na rua, engolimos algum congelado passado no micro-ondas antes de um compromisso e nem esperamos aquilo descer goela abaixo e lá estamos nós, novamente, correndo.

Esta vida urbana e corrida de sampa é viciante. Já nascemos assim, é cultural. Mas algo aconteceu comigo depois de uma síndrome de pânico e de uma crise de depressão em 2013. Comecei a me dar conta do quanto estava vivendo nisso que chamo de modo automático: dormia mal, comia pior ainda, era estressado, estava sempre correndo. Fiquei dois anos recluso devido a doença. Logo eu, que achava a depressão uma frescura pós-moderna, mas pelos motivos óbvios de quem empreende no Brasil simplesmente esqueci de mim e adoeci.

Filho de fotógrafo, acabei me tornando fotógrafo profissional aos 16 anos e em 2009 me especializei em fotografia de alimentos e bebidas, prestando serviços para as maiores indústrias alimentícias do país, era um sucesso. Isso me levou à universidade para cursar gastronomia e entender um pouco mais do assunto com o qual eu trabalhava todos os dias.

Saí do Brasil, passei pela França, Portugal, um pouquinho da Espanha e lá tive um choque cultural em relação a como tratamos o alimento. Foi o início do despertar.

O primeiro tapa na cara – entre muitos – foi ao ir comprar tomates em uma quitandinha em Rue Lepic, em Paris. Entrei e já fui logo tocando nos tomates e revirando uma pequena pilha deles. Aliás, uma pequena pilha de tomates em rama, cuidadosamente arrumada, como se fossem joias preciosas que eu – paulistano estressado – nem havia reparado, entrei correndo e já fazendo merda. Quando, de repente, o dono do estabelecimento me deu um Tapa na mão e disse “NÃO TOQUE, me peça que eu pego para o Senhor”.

Fiquei meio sem jeito e até um pouco irritado, mas como era um senhor de certa idade, relevei.  Ele cuidadosamente pegou um cacho de tomates, e com um sorriso me perguntou, “Pode ser este aqui? Está lindo!” abriu um saco de papel, os colocou delicadamente ali dentro. Com as duas mãos espalmadas para cima e o saco sobre elas, me entregou este pacote de forma lenta, olhando nos meus olhos. Foi um soco no estômago, de alguma forma consegui ver a paixão daquele senhor e o respeito que ele tinha com o alimento que ali vendia. Fiquei envergonhado, ao mesmo tempo em que me maravilhava.

Várias lições em um só dia. A forma com que aquele homem manuseou um simples cacho de tomates me fez acordar: como fui estúpido a minha vida toda! Não era um simples cacho de tomates, era algo que alguém, com muito sacrifício, semeou, cuidou, colheu e arrumou com toda a sua paixão para ser oferecido em sua loja como uma parte da vida de alguém. Isso mesmo! Aquele simples cacho de tomates era parte da vida de alguém e nós, de forma quase que inocente, não damos o menor valor, olhamos automaticamente já pensando na salada, no molho, esquecendo o fato do que aquele vegetal realmente representa e qual a sua origem.

Hoje vejo com muita tristeza o quanto a nossa cultura desperdiça ao comprar mais do que aquilo que vai consumir, porque não tem tempo de ir ao mercado e, por isso, quando vai, acaba comprando mais e estocando em casa, pois não sabe se vai ter tempo de voltar ao mercado no dia seguinte. Uma tolice! Com isso comemos sempre alimentos não tão frescos e o resto acaba estragando na geladeira.

A outra valiosa lição foi que paramos de dar valor no toque. Ouvi isso a primeira vez do Chef Alaine Passard – sugiro que assista o Chefs Table (França), vale muito a pena ouvir um pouco sobre o seu ponto de vista. Passard acredita que o gesto e o toque das mãos são mais importantes do que o próprio paladar. É o toque que é responsável pelo fazer, são as mãos que executam aquilo que planejamos mentalmente, elas são a beleza da vida. Mas, o gestual que impomos às nossas mãos é a diferença entre o soco e a carícia, é o gesto que refina o fazer com as mãos algo especial. O gesto carinhoso daquele quitandeiro com o alimento e as palavras de Passard me despertaram para isso.

Se pensarmos friamente, estamos deixando de lado este sentido. Não pensamos mais naquilo que comemos, que vestimos ou que usamos. Existe algo louco acontecendo com a sociedade, mandamos mais abraços pelo facebook, e-mails, WhatsApp, telefone do que o fazemos fisicamente. Estamos banalizando o ato de tocar as outras pessoas.  Até sexo é feito virtualmente. Porém, se pensarmos o quanto é macio o toque da pele humana, o calor de um abraço e de um beijo, iremos entender o quanto estamos deixando o toque de lado.

Assim também é quando nos alimentamos. Entre nós e o hambúrguer que comemos, está o boi.  Está quem cuidou, abateu, processou a carne e, por fim, quem produziu o lanche. Comemos sem pensar nisso. Abrimos a caixinha, engolimos aquilo e é vida que segue. Um animal perdeu a vida para nos alimentar, foi o criador que teve que cuidar do pasto, do gado, foi o açougueiro que manuseou e processou aquela carne, o cozinheiro a preparou com suas mãos, e tudo isso para quê? Se nós simplesmente em menos de 15 minutos – se for um Paulista em menos de 10 minutos – engolimos sem pensar no que está por trás daquilo tudo. Não pensamos no nosso papel neste processo. A indústria distanciou o hambúrguer do animal. Não pensamos de onde vem aquilo que comemos. Não há amor, gratidão ou paixão, simplesmente comemos e engordamos em frente às telinhas.

Parece romantismo tudo isso, mas infelizmente não é. Vivemos em uma sociedade enlatada e congelada, produzida em massa. Poxa, isso tudo mexeu tanto com a minha forma de ver o mundo e com o papel que eu estava assumindo nele, que parei com tudo.

Em 2015 fechei meu estúdio e, por uma loucura do destino – que vale um outro artigo para falar a respeito -, virei produtor de cerveja artesanal. E em menos de um ano eu já era o representante exclusivo no Brasil da marca mais famosa de equipamentos de cerveja do mundo, a Speidel Braumeister.

O mundo se abriu. Conheci outras pessoas sensíveis a estes fatos, produtores artesanais de queijos, pães, charcuteiros, produtores de vinho e de sidra, entre outras coisas que jamais imaginaria. Isso tudo nos lugares mais inimagináveis e impossíveis que eu já pude um dia sequer pensar que sim: era possível.

Vi gente em apartamentos de menos de 50 metros quadrados produzindo cerveja e vinho de alta qualidade. Outros com hortas em suas lajes, no meio da cidade. Produtores de queijos e salames que fazem de forma artesanal sua arte em casa. Somente uma cidade como São Paulo para juntar tantas tribos engajadas em produzir seu próprio alimento, com mais qualidade, com o tal do “Savoir faire” (saber fazer) que tanto ouvi na França. Pessoas realmente apaixonadas, técnicas, que produzem produtos de qualidade extremamente elevada com as suas próprias mãos.

Isso tudo me dá uma esperança de que as pessoas estão acordando para o fato que chegamos no limite da industrialização. Comemos e bebemos o lixo que a indústria nos empurra goela abaixo e esse comportamento precisa acabar. Antigamente as casas tinham como seu principal cômodo a cozinha. Tudo acontecia ali. A família se reunia, conversava diariamente, era um ritual de convivência e de educação. Nas últimas décadas, as cozinhas encolheram e as salas aumentaram. As pessoas comem no sofá, em frente a uma tela, seja ela do celular ou da TV. As pessoas não se falam mais, vejo famílias inteiras sem a rotina do convívio, do toque, do prazer de partilhar o pão e a mesa. Antigamente era na cozinha que a mãe passava aos filhos a tradição de cozinhar, que na minha humilde opinião, era a primeira lição de generosidade que os pais davam a seus filhos.

Somente quem tem a generosidade de partilhar o que produz com outras pessoas sabe o prazer de abrir uma garrafa e servir aquilo que você fez com suas mãos, de comer um pão ou um queijo fermentado lentamente que levou dias ou meses para chegar à mesa e partir um pedaço para degustar pensando em todo o processo, explicando como foi feito e todo ritual que o alimento merece. Isso é paixão, tem de estar no olhar, no toque, no olfato e no paladar. Isso tudo o mundo virtual não passa, isso não é superficial. Portanto, a pergunta que eu faço é: quanto da sua vida de hoje você pode melhorar apenas com o ato de pensar antes de agir? Garanto que esta é uma reflexão muito individual, mas se a fizer de forma honesta consigo mesmo irá ver um mundo de possibilidades à sua volta.

Sei que isso tudo pode parecer loucura, mas o que nos fez evoluir como seres humanos foi a descoberta do fogo e o ato de cozinhar, ou ainda seríamos Homo sapiens, você sabia disso? Pesquise e vai se surpreender.

Gostaria muito de encerrar deixando algumas dicas para quem, de alguma forma, se identificou com o tema.

  • Pegue aquilo que mais gosta e tente fazer com as suas próprias mãos.
  • Comece com algo simples, com pouca complexidade.
  • Procure grupos na internet, no Facebook e WhatsApp. Existem todos os tipos de comunidades que você puder imaginar na internet, troque informações.
  • Compartilhe aquilo que produziu com alguém especial, promova um jantar com amigos, um piquenique ou algo do tipo. Crie um ritual para apresentar aquilo que produziu com alguém que você gosta.
  • Mesmo que não fique bom na primeira vez, insista. Faça novamente, somente a prática leva a perfeição.
  • Estude e estude muito sobre o assunto. Seja um especialista naquilo que faz.
  • Faça com paixão e tenha certeza que esta paixão se transmitirá para o que você produziu.
  • E, por fim, use as suas mãos para cozinhar mais e desembalar menos. Você vai ver o quanto isso pode mudar você e o mundo a sua volta.

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Valter Menezes
(@valtermenezes)  é formado em Fotografia, Cinema, Gastronomia e Mestre cervejeiro, apaixonado pelos bons gestos da gastronomia. Pesquisador e entusiasta da fermentação em todos os tipos de alimentos. Me defino como um amante do ato de compartilhar, acredito que dividindo é que se soma cada vez mais! Entre, panelas, copos e amigos levo minha vida produzindo, viajando, fermentando, aprendendo e evoluindo sempre!