A condição contemporânea no âmbito das relações interpessoais não deve ser olhada como algo súbito no tempo, mas sim como produto de uma sobreposição e transformação de valores ao longo da história. Todo o niilismo aparente nos dias de hoje teve a sua construção dos sentimentos de perda de perspectivas quando as certezas de respostas eram algo tão exaltado. Sobre a razão e o iluminismo se fundou a Modernidade com o seu ponto forte nos desenvolvimentos de tecnologias e facilitações da vida cotidiana, e justamente nessa escala o cotidiano tornou-se efêmero e fluido.
Sobre esse espírito pessimista foi feita uma das obras mais diferenciadas de Fiódor Dostoiévski, ”Noites Brancas” de 1848 – lembrando que o século XIX foi um período chave para a modernidade e para o seu maior ídolo em evidencia, o Racionalismo. Ao aproximar-se do romantismo, a obra Noites Brancas surge negando o ídolo.
O grande destaque de “Noites Brancas” é a riqueza nos detalhes. O ambiente é de fundamental importância sendo quase um personagem na obra e ao transpassar os sentimentos representados em atuações ele toma um caráter onírico e contemplativo.
Para podermos falar melhor sobre as referências visuais e trazer a discussão justamente para o cotidiano, iremos usar como objeto de debate a adaptação cinematográfica da obra de 1957, “Um rosto na noite” (“Le notti bianche’, no original), filme do aclamado diretor Luchino Visconti. A base cinematográfica é de fácil acesso já que possui um dos maiores astros italianos da época como protagonista, Marcello Mastroianni.
O protagonista – sem nome na obra original – é chamado de Mario na adaptação de 1957. Seu caráter solitário e sonhador é representado na primeira cena onde observamos um longo período de contemplação da vazia rua na noite de inverno. Isso se evidencia com uma analogia visual na cena em que Mario segue um cachorro, aparentemente abandonado, e ambos se reconhecem; eles são iguais em um mundo individualizante. No livro o personagem principal constantemente observa a cidade, a sua relação com as ruas e com as casas é quase uma amizade.
Podemos dialogar os recursos descritivos e visuais da obra com o conceito de “Lugar”, utilizando como base a geógrafa britânica Doreen Barbara Massey. Em entrevista para a revista do Instituto Humanitas Unisisonos, ela define: “Um lugar não é uma coisa fechada, com uma identidade essencial, é uma articulação específica de relações globais e é esta articulação das relações mais amplas que apresenta sua particularidade”.
Em síntese, o lugar é entendido como um conjunto de relações espaciais e sociais: é essa amalgama de sentidos, relações, sentimentos e perspectivas materializadas espacialmente. Pode ser compreendido com um olhar nostálgico ou enquanto resistência nas diferentes resignações que o espaço assimila cotidianamente.
Nesse contexto, Mario encontra o outro elemento chave da história e do retrato social que está sendo desenhado, a jovem igualmente solitária Nástienka – Natália (Maria Schell) na adaptação. Extremamente ingênua, seguindo o arquétipo “The Girl Next Door”, a garota inocente representa a prisão a valores de outrora que ainda persistem no imaginário. As idealidades nas quais nos prendemos distorcem a realidade e até mesmo as nossas buscas eternas como a noção de amor ocidental, o que faz com que nos afundemos cada vez mais nas virtualidades em busca de refúgio das transformações contemporâneas.
Dostoiévski nos faz um alerta ao apontar que estamos cada vez mais sozinhos. Apesar de aparentes conexões instantâneas, somos seres solitários contemplando o medo de permanecer assim. Pessoas sozinhas compartilhando o mesmo espaço, presas na ilusão nostálgica ou em mentiras que contam para elas mesmas a fim de tornar possível ter ânimo para continuarem com suas exposições.
Outro fator que merece destaque é a utilização que Visconti faz da neblina e da neve, simbolizando a melancolia e os medos, sentimentos esses que foram herdados e expandidos nos séculos seguintes.
Olhando para o passado entendemos a configuração do nosso atual estado, tanto para o mal quanto para o bem, com o evento chamado por diversos pensadores como “condição pós-moderna”. Alimentado pela angústia do discurso da liberdade empregada nessa nova era, o pós-modernismo contrasta com as certezas perdidas e com todas as consequências das desilusões e das grandes guerras da era anterior.
Pessoas passam a buscar suas identidades não no que são, mas no que consomem e expõem. Esse fenômeno faz parte da fluidez da sociedade de consumo que alimenta e atribui novas formas às antigas idealidades enquanto mecanismos de fuga, nada mais se mantém em um estado imutável entre as relações, das mais diversas naturezas, da econômica à vida íntima, tudo é um eterno estado de passagem e de transformação.
Finalizando, o discurso da obra nos deixa uma importante reflexão entre amor, desilusão e busca por ideias acéticas que nos fecham em nós mesmos, buscando em momentos isolados objetividades que valham nossas vidas.
Em um mundo de superficialidade, a realidade líquida na era das degustações “A la carte” não nos aprofunda em nada, pois uma noite é mais leve que o fardo do cotidiano.
A nossa liberdade não é somente uma questão de escolha, mas de probabilidades caóticas. Precisamos preencher os espaços vazios de conteúdos e pessoas com mais esferas de associações, não somente corpos. Há, ainda, a necessidade de encontrar uma conexão com as responsabilidades existentes nas velhas estruturas ao mesmo tempo em que afirmamos nossa individualidade no mundo contemporâneo.
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Rômulo Ribeiro de Freitas Junior (@romuloribfreitas) tem 25 anos, é geógrafo em formação, seus maiores interesses encontram-se entre Filosofia, Geografia, Literatura e Cinema, autor de ficção de maior influência é Alan Moore, tendo como principal referencia cinematográfica Stanley Kubrick, é apaixonado por Breaking Bad.