FOMES

COLUNA PRATO FEITO

POR NÊMESIS PARESCHI

*

Certa vez, estávamos eu e minha mãe andando pelas ruas próximas à minha casa, na correria de sempre. Próximo a um mercado, vi um carrinho de um catador de recicláveis e vários cachorros tomando conta. Amante de cães incurável que sempre fui, não resisti a alguns momentos de brincadeira com os bichinhos e fui super bem recebida por eles. Lambidas e rabinhos abanando, me mostraram uma bolinha novinha que tinham embaixo do carrinho e continuamos a nos divertir. Dali alguns minutos, surge um senhor. Roupas bem simples e rasgadas, chinelos batidos e um lindo sorriso no rosto.

-Bom dia! Desculpe incomodar, mas não pude passar direto pelos cãezinhos.

-Imagina, moça! Pode brincar sempre com eles! A gente mora aqui perto, ali no pesqueiro. Construí um barraquinho lá pra minha esposa e eu. A gente cuida do pesqueiro, alimenta os animais de lá e adotamos os que as pessoas abandonam por aí. Tá vendo aquele cachorro ali? Com manchinhas no pelo? Parece um dálmata! É o Bob. Ele me ajuda a cuidar dos outros.

– Nossa, que atitude linda! E quantos animais vocês têm hoje?

-Hoje são 7 cachorros e 3 gatos. Vendi umas coisas ali no ferro-velho e consegui um dinheiro. Aí vim comprar carne pra eles. Eles adoram carne com a ração, mas não é sempre que tem. A gente tem vida simples, sabe? E quando dá alguma moeda, é pra eles que a gente compra as coisas.

Nesse momento, pensei: mas, espera. Se o dinheiro que ele ganhou foi pra alimentar os cães, será que sobrou algo pra ele e a esposa? E percebi que eu também tinha fome, e ele matou a minha fome de solidariedade.

-Moço, não quero ser intrometida, mas e você e sua esposa, sobrou algo pra vocês comprarem comida pra vocês?

-Então, hoje não sobrou. Mas tem um pãozinho de ontem lá. Amanhã, tenho fé que vai sobrar. Mas a gente sabe falar, sabe, moça? A gente trabalha, ganha dinheiro uma hora e compra alguma coisa. Os bichinhos não sabem pedir, se a gente não colocar eles em primeiro lugar, como é que fica, né? Bom, a gente tá indo. Vou levar eles no parque pra brincar. Vem Bob! Chama os outros.

Eles foram andando pela avenida. Ele matou a minha fome de fé.

Aquela conversa foi uma das lições mais incríveis que eu já aprendi, e aquele moço não matou só a fome dos cães, mas as minhas, principalmente a de sabedoria. Tempos depois nos encontramos várias vezes, ele, sempre com os cães, e eu sempre com fome de mais uma lição de vida, que ganhava com um sorriso cheio de paz e ternura. Conheci a esposa dele um dia, guerreira também, amante dos bichos, tímida e muito carinhosa. Estavam no parque com 2 dos cachorros, mas desta vez, ele parecia triste.

-Moço, que que foi? Tudo bem?

-Ah, moça. Queimaram meu barraco. Colocaram fogo. A gente tá na rua de novo. Mas o problema é com os bichos sabe, moça? Quem vai cuidar dos patos? Quem vai dar pão pros peixes? Tive que doar alguns dos meus cachorros e gatos, fiquei com dó de eles terem que dormir no frio com a gente. Mas escolhi dono bom pra eles, pessoas que eu conheço e sei que vão cuidar. Dessa vez, tá difícil. Mas apesar do peito apertado, sei que Deus vai dar um jeito. A gente batalha, sabe? Não tem como não dar certo. A justiça Dele não falha…

Em todas as vezes que nos encontrávamos eu sempre perguntava se eles precisavam de alguma coisa, se eles tinha o que comer. Ele sempre dizia: “Preocupa não, moça. A gente tá se virando.” Mas dessa vez, a resposta foi diferente:

-Hoje a gente tem fome. Eu não ligo não, mas a mulher preocupa, né. Preciso cuidar dela.

E foi a primeira e única vez de uma amizade de um ano que ele aceitou minha ajuda para comprar comida, me disse “Ó moça, que Deus abençoe, e se você precisar de qualquer coisa, você sempre vai ter a gente”. E mais uma vez matou a minha fome, que era de carinho e acolhimento numa época em que eu me sentia muito sozinha.

Depois disso, eles foram morar na frente de uma loja. Era inverno. De vez em quando eu ia lá levar alguma coisa pra eles comerem e uns agrados pros cachorrinhos. E, então, não os vi mais. Fiquei muito preocupada. E passados uns dois meses o encontrei na rua.

– Moço! Quanto tempo! Eu fiquei preocupada!

– Ah, moça! Tudo bom? Sabe que que é? Eu estava construindo um barraco novo! A gente trabalhou sem parar e deu certo. Fiz um cantinho nosso ali no pesqueiro de novo, no estacionamento agora. Vai lá visitar a gente!

Como era bom ver aquele sorriso de novo.

-Claro, vou sim! E vocês precisam de alguma coisa? Os bichinhos estão bem?

-Não, moça. Obrigado! Sabia que abandonaram uma cachorrinha lá no pesqueiro? Ela tem medo de sair na rua com a gente. Então ela tá lá no sofá. Deixei comida e água pra ela lá perto. Precisa ver que dó. Aí agora já são 4 cachorros e 3 gatos.

E matou as minhas fomes de determinação, de alegria e de bondade.

-Que bom! Fico muito contente, então posso levar o almoço de hoje pra comemorar a casa nova?

-Não preocupa não!

-Mas é pra comemorar! Como festa da casa nova!

-Então a gente aceita!

-E como eu sei que vocês estão em casa pra eu poder parar lá?

-Meu carrinho sempre tem a bandeira do Brasil pendurada bem grande, não tem como errar.

E matou a minha fome de esperança.

Desde então, eles me alimentam. Com amizade, carinho e lições de vida, e matam minha fome de caridade, felicidade e tranquilidade, me mostrando a cada dia que tudo na vida é saboroso, nutritivo e essencial para sustentar nosso corpo e nossa alma, até mesmo as frutas mais ácidas e as folhas mais amargas que a vida nos dá. Devemos nos alimentar de tudo que nos é ofertado com a mais terna gratidão, pois muitas vezes, os alimentos menos deliciosos podem ser os mais importantes para o nosso crescimento, e, depois, os frutos doces sempre amadurecem e aí, então, é só se deliciar com o doce da vida.