COLUNA NO MEU TEMPO
DOUGLAS MOREIRA
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– Dors bien ma perle.
Sussurrou baixinho no ouvido de sua filha, após dar-lhe um beijo carinhoso e acariciar seus cabelos.
O estrondo que acordou Cedric no meio da madrugada lembrava um carro desgovernado adentrando a mata fechada destruindo árvores milenares como se fossem palitos de dente. O pó incessante que se levantava, aliado ao breu total e ruidoso petrificaram seu coração e o medo tomou conta de cada minúscula partícula de seu corpo prensado contra a laje que pesava em seu peito. Só conseguia enxergar aquela ponta de vergalhão de aço retorcido que estava milimetricamente afastada por menos de um dedo de seu olho esquerdo. O cheiro de gás começou a tomar conta do local… – “Ma perle! Ma perle!” gritava num esforço inumano. Eram as únicas palavras que conseguiam romper a barreira da angústia e sair de sua boca, ainda que espremidas num misto de dor e pavor, antes mesmo de pedir ajuda ou tentar entender o que havia acontecido.
A esposa de Cedric o havia abandonado dois anos antes, deixando ele e Badria, sua filha de 5 anos, por conta própria. Cedric nunca soube o motivo exato do abandono. Depressiva e doente de doença mortal no Haiti, talvez quisesse poupá-los da tristeza de vê-la definhando. Cedric se apegava a esse pensamento para tentar justificar para si mesmo o sumiço repentino de sua mulher. “Ma perle! Ma perle!” – Não havia resposta. O som que chegava ao seu ouvido direito, o que teve o tímpano salvo, era o de gritos desesperados de homens, mulheres e latidos de cães raivosos. Conforme as horas passavam e o dia não surgia, Cedric já sem forças pensava que talvez houvesse chegado o fim, aquele que seu livro de cabeceira cravava como arrebatamento. Em sua imaginação, esse dia chegaria com um sol aniquilante, onde a vida tomaria conta de sua alma convertida e ao céu seriam levados todos aquele de boa vontade. Cedric era um homem de boa vontade. Mas aquela dor e escuridão em que estava mergulhado naquele momento não traduzia de forma alguma sua imaginação. Aquilo era incompatível com a obra de Deus.
O apocalipse se pronunciou sobre Porto Príncipe naquela madrugada, num colossal terremoto. Não apenas Cedric como milhares de outras pessoas ficaram debaixo daqueles escombros por horas, dias, a espera de uma mão que os resgatasse daquela noite infindável tomada de uma neblina que petrificava os pulmões. Quando finalmente chegou sua vez de voltar à luz, amparado por um grupo de voluntários, Cedric, em estado físico deprimente, olhou nos olhos de seu salvador e com o pouco fôlego que conseguiu tomar, questionou: “Minha filha! Badria! Ela estava no quarto ao lado do meu, vocês a encontraram?”. O silêncio do voluntário e seu olhar para o vazio foram suficientes para que Cedric ainda encontrasse algumas poucas lágrimas para verter em um corpo desidratado após seis dias debaixo dos escombros. Badria, jamais fora encontrada, transformou-se em pó, assim como a vida, os sonhos, a esperança e a fé de Cedric.
Os perigos da viagem entre os destroços de Porto Príncipe e Brasiléia, no Acre, quase não foram sentidos por Cedric. Não havia mais o que sentir. Em sua parada no Peru, vindo de Quito, não conseguia vaga num dos ônibus clandestinos que levavam imigrantes ao Brasil, uma derradeira tentativa de milhares que buscavam deixar para atrás aquele amontoado de escombros à procura de um recomeço. Após uma confusão entre imigrantes e policiais locais que queriam extorquir-lhes o pouco dinheiro que carregavam, que culminou na morte de três pessoas, Cedric conseguiu a vaga deixada por um deles. Deixou na fronteira do Peru com o Brasil o resto de dinheiro que tinha, um pouco de sua fé e todo o resto de crença que tinha na humanidade. A morte, companheira de vida, era apenas mais uma passageira naquele ônibus velho de pneus carecas que cheirava a esgoto.
Ao chegar a São Paulo, destino final de tantas daquelas almas carcomidas, Cedric desceu do ônibus e ganhou um cobertor, um par de sapatos e um copo de sopa rala para matar a fome. Olhava ao seu redor, via aquela quantidade enorme de imigrantes tão perdidos quanto ele e nada, nada lhe era familiar. Mas “familiar” já não era um termo que fazia diferença para ele. As linhas vermelhas que rasgavam o branco de seus olhos demonstravam seu cansaço, sua tristeza, sua quase desistência.
Sua nova residência era uma barraca velha de camping com dois buracos, atracada debaixo de uma ponte no Glicério, nome que ele jamais conseguiria pronunciar da maneira local. Durante o dia buscava espaço entre os pedintes e os vendedores de balas e carregadores de celular, na tentativa de limpar um ou dois para-brisas e daí conseguir o café da manhã, almoço e o jantar. Na maioria das vezes, dava-se por satisfeito quando conseguia qualquer um deles.
Avisado por um amigo que poderia ganhar um pouco mais ajudando a descarregar malas dos tantos ônibus clandestinos que chegavam à capital, diuturnamente, trazendo gente de todos os cantos, trocou o pano surrado que limpava vidros nos faróis pelo resto de músculos e força que ainda tinha em seu corpo corroído. Todos os dias e por inúmeras vezes à noite, encarava novos olhares perdidos e recém-chegados a nova terra de oportunidades, as quais não lhe inquietavam, tampouco traziam conforto. Descrente, carregava malas e só.
Como num dia qualquer, viu aquele ônibus que trazia venezuelanos fugindo da miséria estacionando numa esquina suja do centro. Correu para tentar ser um dos primeiros a trabalhar. As portas se abriram, inúmeras pessoas saíram apressadas como se tivessem um compromisso inadiável, correndo para pegar suas malas antes que fossem pilhadas por algum grupelho espertalhão que sempre rondava o local em busca de propensas vítimas. Cedric pegou uma mala verde remendada nas mãos, levantou-a a procura do dono para forçá-lo um serviço desnecessário na tentativa de arrancar um trocado e teve pouco tempo de reação para o que se seguiu. Aquela mulher franzina que trazia em seu colo um bebê de traços finos, desacompanhada, esticou-lhe as mãos pedindo que Cedric a entregasse sua mala. Ele percebeu que a mulher era tão miserável quanto ele e imediatamente desistiu de tentar cobrar qualquer centavo. Ainda esticava a mão que segurava a mala para entregá-la à coitada, quando sentiu um soco na altura das costelas. Foi um pandemônio! Uma dezena de malandros fazia um arrastão na saída dos passageiros e, violentos, acertavam e roubavam tudo e todos que estivessem à frente.
Cedric foi ao chão e quando levantou a cabeça no meio daquela confusão, viu a mulher desesperada segurando a mala numa das mãos e sem o filho na outra. Haviam levado seu bebê e ela gritava desesperadamente para que alguém a ajudasse. No meio do corre-corre era cada um por si e ninguém por todos. Menos Cedric. Há muito ele não tinha mais nada a perder e sabia exatamente o tamanho do sentimento daquela mulher e de onde vinha o ar que se dava corpo aqueles gritos insanos num apelo gutural de ajuda. Cedric levantou-se com o tanto de forças que ainda tinha e, em disparada, perseguiu o malandro que levava consigo uma bolsa velha possivelmente vazia e o bebê daquela mulher que transtornava na calçada. Correu a ponto de perder o ar e não parar para retomá-lo. Quando viu o homem entrar numa pensão daquelas caindo aos pedaços no miolo do Glicério, imaginou que o cercara. Chutou porta por porta que encontrou pelo caminho até encontrar aquele infeliz escondido dentro de um guarda-roupas, denunciado pelo choro do bebê. Lutaram. Cedric proferiu uma quantidade incontável de socos naquele homem… bateu na miséria que assolou sua infância, no abandono da esposa… socou com ódio o terremoto que destruiu sua cidade, espancou sem piedade a morte que levara sua filha… cansado, respirou fundo e se levantou, deixando o alvo de sua ira desmaiado no chão. Caminhou lentamente para fora da pensão trazendo a criança consigo. Suas mãos ensanguentadas carregavam aquele bebê e em seu rosto, podia-se encontrar até mesmo uma certa ternura. Cedric não sorria há tanto tempo que seus músculos do rosto haviam se desacostumado a estirar-se.
A mãe da criança ao vê-lo, correu em sua direção, tomou-lhe o bebê dos braços, sentou na sarjeta da rua Lava-pés e beijou o filho como se houvesse nascido pela segunda vez.
Cedric sentou-se de frente a mulher, limpou o choro dela com a manga de sua camisa ensanguentada, sorriu e após um breve momento, tentou se levantar, mas não conseguiu. Aquela cena o capturara. Desejou viver para sempre aquele momento de felicidade que, de alguma forma, ele havia proporcionado. Tentou novamente ir embora, porém, suas pernas já não lhe obedeciam.
A poça de sangue que se acumulava ao seu lado denunciava a profundidade que atingiu o canivete do ladrão em seu baço. Cedric deitou sua cabeça no colo daquela mulher, fechou lentamente seus olhos e voltou a Porto Príncipe… sentiu o cheiro do mar, viu a rua de sua casa, colocou sua filha na cama, deitou-se junto dela, acariciou seus cabelos, deu-lhe um beijo no rosto e sussurrou em seu ouvido:
“Durma bem minha pérola”.