COLUNA NO MEU TEMPO
POR DOUGLAS MOREIRA
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— Pai, o que é culpa?
Filippo está com 3 anos e meio e pergunta de tudo. Já falamos sobre como é o espaço – estamos num momento astronauta -, de onde vêm as estrelas, como nascem as árvores, de onde vêm os bebês, sobre o que é tristeza e alegria, o que são sentimentos, quando ele será adulto e por aí vai. Até sobre a morte já conversamos. Mas para a pergunta “Pai, o que é culpa?”, confesso que pedi um tempo a ele pra pensar e responder depois, quando eu tivesse uma resposta que se encaixasse no seu entendimento.
Talvez, essa tenha sido a pergunta mais difícil que ele já fez até hoje, e acreditem, explicar o que é “sonhar” já deu um certo trabalho. O fato é que nossa relação com a culpa, diferentemente de tristeza ou alegria, que são rápidas e intensas, imediatamente identificáveis, se concretiza com o tempo. A culpa não é um sentimento nato, ela é inserida no ser humano. É como se não fosse uma cor primária, entendem? Responder a essa pergunta é algo definitivamente importante.
Ok, estou sendo óbvio, eu sei. Qualquer das explicações que eu dê para ele hoje sobre o que quer que seja vai ser mastigada por ele durante os anos, digerida e absorvida ao longo da construção do seu “eu” e fará parte do aprimoramento do seu caráter, porém, “culpa”, me trouxe uma profunda reflexão sobre como devo iniciar essa conversa com ele. Meu filho é sincero, emocional, questionador e principalmente, literal. Ao aprender a explicação sobre uma palavra nova, ele passa dias pensando sobre aquilo e tentando encaixar a palavra em uma de suas milhares de conversas.
Tenho pensado muito sobre culpa. Criar filhos muda completamente a sua percepção sobre esse sentimento. Você se sente culpado durante boa parte do tempo. Quando põe no berço chorando por dez minutos na espera de que ele pare de chorar sozinho – “Estou abandonando meu filho!” – já lhe vem à cabeça imediatamente. Culpa quando pega demais no colo e as pessoas vêm lhe dizer que você está mal acostumando seu filho, criando um dependente (Mas, não o é?), como se o grande risco fosse ele chegar aos quinze anos e ainda estar a pedir colo! Culpa se não pega no colo – “Estou abandonando meu filho!” – Afinal, ele quer e precisa do meu colo! Culpa por tê-lo deixado descer por cinquenta metros numa bicicleta sem freio por conta de uma piscada de olhos e ficar repassando a cena na cabeça por milhares de vezes imaginando incontáveis terríveis finais, todos diferentes daquele real onde ele só ralou o queixo. Culpa por ter deixado aquela assadura evoluir, por tê-lo deixado se esborrachar no chão porque você insistiu em colocar aquele tênis que ainda está grande para o pé dele, mas você queria de toda forma que ele usasse! Você sente culpa quando ele está com quarenta graus de febre no seu colo na fila da emergência, e lembra que no dia anterior foi mais incisivo e até rude com ele quando pela décima vez aquele copo de suco foi jogado ao chão enquanto ele estava em cima do sofá tentando dar uma pirueta num êxtase de energia! Culpa, culpa e mais culpa. Ela se transforma numa companheira ativa de viagem nessa grande jornada que é criar filhos.
Comumente, quem tem um segundo filho, no meu caso uma filha, sai de cara dizendo aos quatro ventos “Ah! O segundo é muito mais fácil! Trocas ininterruptas de fraldas são tiradas de letra! Privação de sono já não me faz querer discutir a relação no meio da tarde! Um choro mais longo e sem explicação imediata não é prenúncio de uma doença grave e incurável!”. A sensação de culpa parece menor, menos intensa e mais palatável. Ledo engano. Você se culpa quando o mais velho está tomando banho, cansado de um dia de atividade intensa e lhe pede o colo que já está ocupado pela mais nova. Aqueles olhinhos carentes te consomem até a profundeza do estômago. Você sente culpa quando não consegue parar para brincar com ele porque a mais nova chora e você tem que ligar a TV para distrai-lo. Culpa porque após desligar a TV você ainda não tem tempo para brincar com ele porque a mais nova continua no seu colo! Culpa quando você o pega no colo e deixa a mais nova no carrinho chorando com sono! Meu Deus!
Falando assim, pode até parecer que a paternidade é um buraco de culpa sem fim. Não é. A verdade é que a culpa, ao lado do sentimento inexplicável de transcendência que é criar um filho, ou seja lá quantos forem, é algo que te faz ser uma pessoa melhor. Lidar diariamente com esse sentimento e não permitir que ele te danifique por inteiro, mas que te danifique na proporção do molde, é a evolução do ser humano acontecendo em tempo real! Existem aqueles que dizem: “Ah, eu desencanei! Não me culpo mais!”. Essa expressão que se ouve de muitos pais, do alto de uma empáfia que só se compara a “Seu filho de 3 meses não dorme à noite? Nossa, o meu dorme doze horas!” – E isso é uma forma cruel de contribuir para a culpa do outro, diga-se de passagem – é uma verdade e uma mentira ao mesmo tempo, como um gato de Schrödinger. Você não desencanou da culpa! Ela está lá, presente, te fazendo dizer isso! Não nego que seja uma forma de se defender, de lidar com ela inclusive, mas dizer que você “desencanou”, como se de repente você tivesse apertado um botão e se livrado de um peso quase estagnável e se tornado uma pessoa que agora vive no olimpo da criação, convenhamos, é mentira. E se trata de uma verdade mentira, porque você pode de alguma maneira desencanar da piração que isso pode trazer, mas não vai parar de culpar-se.
Trocando em miúdos, para finalizar essa filosofia de boteco sobre a culpa (Freud deve estar se revirando ao ver um pai fazendo essa análise rasteira e furreca sobre culpa, quando a culpa evidentemente é da mãe), no que tange à criação de filhos, ela deve ser encarada como engrenagem importante da roda gigante. Não há forma de desvencilhar-se dela e nem deveríamos querer isso. Há de se transformar isso em combustível renovável, porque ser pai e superar culpas e desvios fará parte da sua vida por um longo, longo tempo. Fato.
Como é fato, também, que você vai errar, vai falar mais alto, vai gritar, vai deixar que ele se machuque quando poderia ter evitado, vai arrasá-lo emocionalmente com um sonoro “não” vez ou outra, vai sentir seus olhinhos de raiva quando contrariado, vai sentir-se devastado porque não teve tempo de brincar e ele dormiu antes de você chegar, você vai sentir muita, muita culpa. Você vai dormir chorando por incontáveis vezes acreditando estar fazendo tudo errado e se questionando enquanto gente! Você vai se culpar. E quer saber? Lide com isso. E não desista, porque lá na frente você ainda vai precisar encontrar uma forma de dizer para o seu filho, de alguma maneira, de preferência resumida e inofensiva, o que significa “culpa”.
Ps.: Não se culpe por adiar a resposta, ok?