É PRECISO SE DESPIR

COLUNA NO MEU TEMPO 

DOUGLAS MOREIRA

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Não. Este texto não é sobre sexo. Na última semana celebrou-se o “Dia Internacional em Defesa dos Direitos da Mulher”. Particularmente não gosto dessas datas “comemorativas” sobre algo que não deveria ser comemorado. Os meios de comunicação estamparam em suas capas manchetes como “Conheça a primeira mulher a pilotar um avião”, ou “Como venceu a primeira mulher empreendedora no ramo de oficinas mecânicas”, transformando novamente em clichê uma data que deveria ser reflexão sobre como ainda somos seres das cavernas em relação ao assunto, para no dia seguinte deixarem tudo isso de lado e voltarmos a ser complacentes com notícias devastadoras como saber que vivemos num país onde mais da metade dos votantes habilitados são mulheres e sua representatividade no congresso não passa de 20%. Ou nos depararmos com a quantidade crescente dos números de violência contra a mulher, sem que algo concreto e efetivo seja realmente feito.

É de passar mal, é um soco no estômago. E foi assim, com um soco no estômago que abri meu Facebook no dia 09 e vi a mensagem de uma amiga* onde ela dizia: “Antes de nos parabenizar pelo nosso dia, lembre-se que hoje não é o “Dia da Mulher”, mas o “Dia Internacional pela Defesa dos Direitos da Mulher”. Quem sabe dando o nome correto a gente não evita o desconforto de ter que explicar toda hora que não é festa, é luta”. Essa frase me pegou e me perseguiu durante todo o dia. Não sou de compartilhamentos no Facebook, mas isso eu compartilhei. Não por fazer a linha politicamente correta, mas porque é isso o que ocorre. Em tempos de leituras rápidas, somos compelidos a ler a primeira linha de um texto e não clicar no “veja mais”, por pura preguiça. Compartilhei porque a frase curta sintetiza o primeiro pensamento que deveria vir à cabeça das pessoas não apenas numa data como essa, mas todos os dias.

Lembrei de quando era garoto e trabalhava como office boy. No alto do início da minha adolescência, por volta dos 13 anos, eu era um exemplo de menino educado, gentil, que absorvia tudo ao meu redor, que queria agradar e fazer as coisas certas. Lembro-me que no “dia das mulheres”, os homens adultos que me cercavam, gerentes e supervisores, e que me serviam de referência no trabalho, mandavam bombons para as secretárias que trabalhavam no escritório dentro de envelopes de correspondência interna, pediam que eu entregasse logo e que tomasse cuidado para não amassar, com seus sorrisos largos pregados no rosto, certamente vislumbrando em suas cabeças que a retribuição, em caso de sorte, poderia ser uma ligação insinuante de um futuro de sexo sem compromisso. Ninguém estava preocupado com a devida importância da data. Para eles, os bombons e as flores eram apenas um recado velado, algo do tipo: “Veja como eu sou gentil, vamos para a cama?”. Aquilo representava, em suas cabeças fálicas, uma oportunidade de dar aquela escapada num fim de tarde e avisar em casa que houve um problema no laboratório e que teriam que ficar até a noite no trabalho.

Obviamente, eu não tinha como discernir aquelas intenções como tenho hoje. Não tinha maturidade. Para mim, era apenas gentileza. Um padrão. Era o que se fazia no dia das mulheres. Não era. Aquilo era o machismo em vigor no auge de sua rotação. Para aqueles homens, aquelas mulheres de segunda classe, (Coitadas, secretárias!), jamais alcançariam um posto de chefe de laboratório, ou de departamento pessoal. Poderiam, no máximo, chegar a supervisora do restaurante ou da limpeza. Eu aprendi aquilo. E por anos, sem ser levado de forma alguma a questionar o real sentido daquilo, a podridão inserida naqueles gestos, carreguei flores e entreguei bombons. Quando não para os outros, fazia por conta própria. O ambiente em que me tornei homem me fez absorver esse tipo de conceito e confesso que demorei muito tempo para pôr a cabeça fora da Matrix e entender o real sentido da data. Da luta. A minha geração foi criada num mundo machista e torna-se imprescindível, despir-se de tudo e recomeçar do zero. Despir-se dos conceitos incutidos na nossa alma e no nosso caráter e entender que somos sim iguais, que temos os mesmos direitos, e que nós, que conseguimos esfregar os olhos e enxergar a realidade da disparidade de tratamento entre homens e mulheres, temos que fazer algo agora. É urgente. É necessário.

Tenho um filho e uma filha e não posso empurrar para a geração deles a revolução e a luta por direitos iguais. Eles precisam crescer não apenas sabendo a importância da igualdade entre gêneros, todos os gêneros. Eles precisam que isso faça parte do seu caráter. Precisam viver num mundo onde isso seja coisa do passado. Onde essa visão equivocada de mundo e importâncias seja apenas literatura histórica, onde aprendam que esse genocídio diário que vivemos hoje seja algo para ser lembrado e combatido diariamente. Precisamos evoluir agora, porque não podemos delegar às nossas crianças que lá na frente deem sorte de compreender que bombons e flores não desculpam nada! A nossa responsabilidade é imediata, combatendo de toda a forma esse mal inserido na nossa sociedade e criando nossos filhos para serem não apenas pessoas melhores do que nós somos, mas que sejam infinitamente melhores.

Poucos dias atrás ouvi num debate de rádio que temos que ensinar nossos filhos homens a também arrumar a cama, a também cozinhar, porque isso não é só serviço de mulher. Como assim? Ainda designamos esse tipo de tarefa como serviço de mulher? Da mãe? Como a mãe que cria filhos e o pai que “ajuda”? Pai não ajuda, pai cria junto! Pai não tem que dividir tarefa! Porque não é algo a ser dividido! É compartilhado! Deveria ser praxe! Qual a dificuldade em entender isso? Sim, ainda agimos assim e esse é o nosso machismo diário desfilando sua presença retumbante na nossa cara. Temos que ensinar nossos filhos homens que arrumar a cama ou fazer comida é algo que seres humanos fazem! Não importa o sexo! Não quero que meu filho cresça fazendo distinção entre coisa de homem e coisa de mulher! Quero que meu filho cresça acreditando em coisas de seres humanos! Gente igual! Porque o somos cacete! Assim como também li um texto onde um colunista da Folha, pai recente, disse: “Minha filha já vai nascer feminista”! Mas ora pois! Entendo o que ele quis dizer porque refleti sobre o seu texto, mas sinceramente, ele já está definindo o que a sua filha vai ser? Ela já decidiu que vai ter uma filha feminista? E isso não é também uma forma inconsciente de machismo? Aquele paternalismo enraigado no nosso DNA que teima em decidir o que nossas mulheres serão? Perdoe Duvivier, mas eu vou criar a milha filha para ser uma mulher livre, que tem absoluta consciência de quem é e o que quer, uma filha que vai decidir por si própria quem ela quer ser, quais bandeiras vai defender. E para isso eu preciso contribuir agora para transformar o mundo que vai se apresentar pra ela.

Sei que o mundo hoje não gira assim e isso pode parecer utópico ou papo de homem fazendo média”, mas reitero: Precisamos mudar o mundo agora, esse é o momento, essa é a nossa missão”. Nós somos os adultos aqui. É preciso despir-se e reinventar-se, porque se nós não tomarmos agora a frente dessa batalha já, não haverá um mundo justo onde a minha filha poderá ser livre ou a sua feminista. Continuaremos vivendo num mundo dividido entre briguinhas sobre quem deve lavar a louça, arrumar a cama, ou que é importante o pai ajudar a criar os filhos.

(*) Frase da Vilma Rosa