O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA

COLUNA PITACOS 

POR LETÍCIA SANTOS

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Essa semana vamos lutar e amar junto com dois jovens nas ruas caóticas de uma cidade dividida pelo ódio e pela sede de justiça.

Voltei, e para a sorte de vocês estou ignorando o calor em prol de falar de um livro maravilhoso que ganhei de presente de aniversário junto com uma festa de tema da Mafalda (amigos maravilhosos que eu tenho, né?), vamos falar sobre amor urbano e violência, vamos falar sobre O Ódio que você Semeia, da Angie Thomas, e talvez eu me alongue um pouco, me perdoem pela empolgação.

Confesso que quando ganho livros controlo cuidadosamente a expressão facial, porque ao abrir o pacotinho retangular a chance de eu fazer uma careta involuntária, já que minha linguagem não verbal grita, é alta. Não é que eu não goste de ganhar livros, eu adoro, mas tenho gostos bem definidos e as chances da pessoa errar são altas.

Nesse caso, foi amor à primeira vista, nunca tinha ouvido falar do livro e já fiquei curiosa por ver uma jovem negra na capa segurando um cartaz, li a sinopse e a minha linguagem não verbal passou para super alegria. Geralmente sou uma leitora rápida, mas têm livros que leio devagar para não acabar logo, esse foi um dos casos.

O livro conta a vida da Starr, com dois erres mesmo, viu? Ela é uma garota negra que vive duas vidas distintas, uma na escola particular de brancos em um bairro onde seus pais pagam por uma educação melhor para os filhos, e outra no bairro periférico violento e perigoso onde mora e onde estão as raízes e história de sua família.

Essa dicotomia é discutida por ela desde o primeiro capítulo, é uma reflexão sobre como os negros se comportam entre os seus e entre os brancos, e de como na cidade e no bairro dela, conviver com o pessoal do outro lado também é um problema. Toda a dinâmica do livro está centrada na percepção dela do que é ser uma jovem negra em diferentes locais da sociedade, então, esteja preparado para ler um livro com forte teor racial, ainda que não seja só isso.

O título traduzido ao português é sigla T.H.U.G L.I.F.E, de uma música do Tupac, que em inglês significa “The Hate U Gave Lil’ Infants Fucks Everyone” (o ódio que você dá para as nossas crianças fode com todo mundo), e que também foi o nome de um movimento que o rapper iniciou para valorizar a vida dos negros, que morrem muito mais nas mãos da polícia que os brancos.

Por que falar tanto sobre isso? Por que raça é importante nesse romance juvenil largamente premiado? Porque Starr começa o livro vendo um amigo de infância morrer, é uma parte pequena da narrativa, se passa em quatro páginas de quase quatrocentas, mas é uma passagem que está marcada na minha memória, tanto pela tensão quanto pela crueza do acontecimento. Ler sobre uma adolescente vendo o melhor amigo de infância morrer diante de seus olhos, por ser um negro em atitude suspeita, me fez pensar nos meus amigos, pensar que podia ser eu ali, sem reação, sem chão.

Esse é o ponto de partida, mas certamente não dita um tom triste na obra, e sim de desafio, de superação, foi uma surpresa, eu esperava algo mais pesado quando comecei. O que me surpreendeu gratamente, também, foi a parte do romance, Starr tem um namorado branco, que é um dos pontos de conflito mais interessantes na obra, principalmente para mim. Sou filha de um casal interracial, estou acostumada com esse tipo de situação, seja na família, nos amigos ou no Brasil em geral, mas para a Starr, naquela cidade dos Estados Unidos isso é um problema, ou no mínimo causa desconforto em várias camadas da vida dos dois, e isso é fascinante e assustador ao mesmo tempo.

O amor dos dois me conquistou, e isso é bem raro de acontecer em livros com romance, porque geralmente vejo tudo quanto é defeito na relação, e odeio os boys lixos que as protagonistas insistem em amar, mas, como uma suave brisa no calor desse verão, surgiu o princeso escrito pela Angie Thomas.

Chris ganha o posto de namorado adolescente adequado e encantador para os livros de jovens adultos que já li. Ele é branco e sabe que isso o diferencia da namorada, ele tenta aprender, ele escuta, ele respeita o espaço da Starr e isso é lindo de ler. Gosto de como o namoro dos dois evolui no livro, de como continuam juntos mesmo com os acontecimentos violentos na cidade, porque em O Ódio que Você Semeia, o amor dos dois já existe, mas precisa resistir a uma verdadeira revolta na cidade. Não é seguro ficar nas ruas quando boa parte da população clama por justiça e vingança pelo assassinato de mais um de seus jovens, mas esses dois estão lá, juntos e enfrentando o mundo para ajustar a realidade para algo aceitável para eles.

Nesse livro, você vai ver a evolução de dois adolescentes, de como o amor deles se encaixa perfeitamente e resiste no meio de um clima tenso e conflitos entre a polícia e a população do lado mais pobre e mais vulnerável da cidade. É repetitivo dizer, mas ler esse tipo de romance me faz pensar que, infelizmente, ele poderia se passar aqui em São Paulo ou no Rio, ou em qualquer capital do Brasil, os problemas urbanos só mudam de CEP na maior parte das vezes, e isso é triste de constatar. Mas, amor urbano também é resistência, e Starr e Chris são adoráveis e amadurecem muito nesse romance. Recomendo fortemente.