Ao longo da história do cinema, o gênero Horror sofreu alterações e os contos clássicos góticos deram espaço para muito sangue e gore. No final dos anos 70, surgiram os primeiros Slasher movies, filmes do subgênero do Horror caracterizado pelo protagonismo de assassinos em série. A fama desse tipo de filme se estendeu até o início dos anos 90 e ainda hoje conquista fãs de todas as idades.
Aqui nosso objetivo é entender como o cinema representa o ponto de ignição para que um sujeito inicie sua trajetória de assassinatos. Tais películas carregam consigo um sentido dúbio, com esses grandes vilões obtendo atos em contradição de suas motivações, isso é, utilizar de violência extrema como forma de adestramento moral, trazendo a intrínseca mensagem de ironia evidenciando a subjetividade desses mesmos valores defendidos. Para exemplificar essa grande desconstrução que o terror slasher possui, nós vamos divagar sobre duas obras indiscutivelmente referenciais do gênero: Sexta- Feira 13 (1980) dirigido por Sean S. Cunninghan e Halloween (1978) dirigido por John Carpenter. A utilização de datas comemorativas para a criação de dias desastrosos no cinema do gênero terror foi uma verdadeira febre em meados de 70, quando o famoso diretor John Carpenter resolveu utilizar o Halloween. O próprio nome do filme referencia uma festa com um sentido profano muito forte, o que salienta o contraponto de moral vs impulso. Esse mesmo conflito seria de fundamental importância para o desenvolvimento psicológico do personagem central e um dos maiores ícones do terror, Michael Myers.
Ao início do filme somos apresentados ao personagem em sua infância. O diretor utiliza a câmera em primeira pessoa e o interessante é que essa técnica de filmagem coloca o espectador na visão de Michael Myers. Podemos perceber que ele é uma criança introvertida, característica que traz traços da personalidade do mesmo mais à frente. Outro ponto que podemos destacar é a forma como a sua irmã mais velha o trata – friamente e sem importância – e é nesse momento que conseguimos detectar o gatilho para os seus impulsos violentos que mais a frente levará Myers a ações extremas.
Durante a primeira sequência do filme, testemunhamos o primeiro assassinato que marca o início de sua trajetória e uma data que ficará marcada para o resto de sua vida, ao se deparar com sua irmã mais velha nua após uma relação sexual com o suposto namorado, Michael utiliza a faca de cozinha e a esfaqueia diversas vezes, em seguida, seu namorado. Após o ocorrido Myers é encontrado pelos pais em choque em frente a sua casa.
Ao longo do filme, quando Myers já se encontra em sua fase adulta, o espectador se depara novamente com um cenário violento. O protagonista inicia seus assassinatos na mesma data que o de origem, no caso, o Halloween. O ponto aqui é a eterna procura de vítimas que lembrem a sua irmã e o seu primeiro ato de crueldade. As características buscadas seriam jovens, babás, consideradas promíscuas em uma visão moralista – o que enfatiza ainda mais essa teoria é o fato da maioria das mortes ocorrerem durante os atos sexuais das garotas.
O formato de Halloween deu origem a vários filmes do gênero, principalmente na década de 80, dentro dessa gama de filmes podemos destacar Sexta-feira 13, que além de também utilizar uma data marcante, nos traz perspectivas interessantes à nossa análise. Não é Spoiler que no primeiro filme da série o assassino original não é Jason Voorhees, mas sim a sua mãe. A questão da superproteção que Jason sofre por ser uma criança especial é marcada pelo dia em que ele se afoga durante suas férias no acampamento, por falta de atenção dos monitores, que estavam transando ou bebendo na floresta aos arredores. A partir disso, toda a sua trajetória é marcada por atos selvagens que compõem uma vingança a jovens, seguindo os mesmos preceitos de moral que o remetem àquele dia gravado em sua memória.
Analisando os dois filmes podemos perceber que há uma diferença entre os assassinos: Michael é um produto da moral justificada através da violência e dos traumas que passou em sua infância, enquanto a mãe de Jason é a agente precursora que, no caso, inicia a propagação do que seria a moral e a vendeta é sua justificativa para atos cruéis.
Bom, para podermos dissertar de uma forma melhor sistematizada, é necessário estabelecer alguns conceitos. Iniciemos com a “Moral”. Mariela Chaui, em sua “Iniciação à Filosofia”, estabelece a moral como sendo um hábito, tendo em vista a sua semântica com origem no termo latim mos, moris que significa “o costume”, sendo ele um conjunto de abstrações sedimentados em nossa cultura ao lado da noção de verdade e justiça, que guiam as ações do todo social.
Partindo desse pressuposto teórico, nos aproximamos fortemente do perspectivismo de Nietzsche, no qual o juízo de valor moral é normativo, algo que tende à homogenização de comportamentos legitimados por tal princípio ético – que em nossa civilização tem origem judaico-cristã – origem da crítica de Nietzsche. O Perspectivismo, assim como o nome sugere, é advindo da prerrogativa enquanto forma de poder: é verdadeiro, justo e moral.
Inferimos, então, que esse conjunto de abstrações foram instituídos como forma de controle reativo do que Nietzsche chama de “Vontade de Poder”, os impulsos primordiais humanos.
Chauí acrescenta “Diferentes formas sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamento sociais que pudessem garantir a segurança física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.”
Nietzsche, em sua obra lançada postumamente “Vontade de Poder”, considera elementos de maior complexidade “Todas as virtudes são estados fisiológicos: nomeadamente as funções orgânicas principais, sentidas como necessárias, como boas. Todas as virtudes são paixões que foram refinadas a estados elevados. Compaixão e amor pela humanidade como desenvolvimento do impulso sexual. Justiça como desenvolvimento do impulso de vingança. Virtude como prazer na resistência, vontade de poder. Honra como reconhecimento do semelhante e do equivalente.” Ele vai mais além, “Minha tentativa de compreender o juízo moral como um sintoma e uma linguagem cifrada, nos quais se denunciam processos de crescimento ou insucesso fisiológico, tanto quanto a consciência de condições de crescimento e conservação.” (…).
Niezsche considera a moral advinda do cristianismo um sinal de decadência da civilização, onde as forças reativas que geram tais abstrações, transformam o mundo tangível e ordinário em algo impuro, sobre os preceitos de pecado, onde é elegido um prêmio transcendente para todos que negam seus impulsos primordiais, que como citado anteriormente, para ele são as causas principais da elevação do espírito humano.
Temos aqui o ponto principal do peso e da culpa que criaram os demônios dos personagens apresentados, Michael Myers e Senhora Vorhees. O que tais filmes nos apresentam é exatamente essa contradição, a constante repressão dos impulsos pelas forças moralistas, criaram exatamente aquilo que foram instituídas outrora para evitar. Temos o símbolo da decadência moral defendida por Nietzsche exemplificado no cinema pelo gênero de terror slasher.
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Beatriz Brassaroto (@biabrassaroto) tem 23 anos e é publicitária. Seus maiores interesses são literatura, cinema e arte. Gosta das obras de Stephen King, tem como principal referência cinematográfica Alfred Hitchcock e é simplesmente apaixonada por Twilight Zone.
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Referências:
CHAUI, Marilena de Souza. Iniciação a Filosofia. 2° edição. Editora Ática, 2015
NIETTZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tradução Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Francisco José de Moraes. Apresentação, Gilvan Fogel. Ed. Contraponto. 1° Edição.2008.