AOS OLHOS DOS OUTROS – KELVIS SANTIAGO

Olhar-se no espelho nunca foi fácil pra João. Tanta coisa que incomoda. O cabelo encrespado que só cresce para cima. O nariz de batata que acha grande e achatado. Os dentes até são brancos, mas os lábios tão grossos… Para João, a soma de tudo era um problema. Por que não tinha o cabelo liso e com tanto movimento, como os galãs de cinema? Por que não tinha um nariz pequeno e afilado que nem aquele youtuber que gostava tanto? Por que não tinha os lábios finos e um queixo mais saliente igual ao Mário, tão popular entre as meninas na escola? Tão popular com a Carol.

Às vezes João queria sumir.

Apesar de tudo, guardava as inseguranças para si. Nunca as transparecia. O atletismo e o handebol ajudavam-no a esvaziar a mente e encher o peito de um sentimento bom. O esporte aproximava-o dos amigos e, quem diria, fazia João ficar mais perto de Carol, mesmo ela não lhe dando bola.

*

Mário não estava nem um pouco contente com as esquivas de Carol. O que faltava, afinal, para ela ficar caidinha por ele que nem todas as meninas do segundo ano? Era bonito, atlético, tão adorado por todos. Não, não podia aceitar aquilo!

– E agora deu pra ficar de olho naquele imbecil do João! Dá pra entender? – perguntou ao puxa-saco número um que não saía de sua cola.

– Deve estar cega! Ainda por cima nordestino e tão diferente de você! – exclamou o outro.

– Como alguém consegue achar esse cara interessante? Com aquele nariz e boca parece o zelador que trabalha lá onde moro!

Na cabeça de Mário era inconcebível a rejeição. Não compreendia como tanta gente pagava pau pra um cara com sotaque de pobre e… melhor nem falar mais. Só não podia aceitar ser trocado por alguém tão inferior.

*

Carol já não sabia que tática seguir. Parecia que a cada nova tentativa incorria em erro. E, para completar, o chato do Mário continuava enchendo, sem dar espaço sequer para ela respirar. Se ao menos tivesse coragem de fazer o convite pessoalmente… Contudo temia a recusa. Até porque ele era tão popular, tão adorado por todos. E aquele sotaque, a coisa mais linda que já tinha ouvido. Tudo bem que achava engraçadas as orelhas de abano dele, mas até nesses pequenos detalhes – que para muitos seriam um defeito –  ele se fazia tão maravilhoso. Não tinha como negar: Carol estava perdidamente apaixonada por João. Até nos treinos de handebol tinha medo de se distrair com aquele sorriso sempre estampado na boca dele e acabar por levar uma bolada como pagamento. Apesar do nervosismo só de pensar em falar com ele, estava decidida: na primeira oportunidade, iria chamá-lo para sair e colocaria um fim naquela angústia. Na pior das hipóteses, ainda poderia fugir da escola. Quem sabe até do país.

*

Ainda não tinha caído a ficha para João: foi tudo tão rápido. Depois de mais um treino até a exaustão, Carol veio puxar conversa. Logo a Carol! Ele achou que era alguma pegadinha, que talvez ela precisasse de algum favor ou caderno de exercício, mas não! Ela estava ali, meio tímida, meio indiferente, puxando papo sobre o torneio de handebol que começaria dentro de alguns dias. De repente, não se sabe como, o assunto evoluiu para gosto por música, filmes, idas à praia, até que veio o inesperado: Carol o chamou para sair. Isso mesmo, Carol/ chamou/sair. O incrédulo tentava refazer passo-a-passo aquela tarde na esperança de encontrar alguma falha, algum momento de desajuste ou “bug” que explicasse que tudo não passava de um mal-entendido. Mas não: tinha sido real e o encontro seria na noite seguinte, que era uma sexta.

*

João e Carol estavam irradiantes. O brilho que emitiam era ainda mais intenso com a troca de sorrisos entre eles, o que fazia toda a escola parar para vê-los passar. O novo casal só tinha olhos um para o outro, o que os impediu de ver a atmosfera radioativa emanada por Mário.

Era inaceitável toda aquela situação. Ele, humilhado diante de toda a escola, que não enxergava que esse tal João era alguém fadado ao fracasso! Mas estava decidido, algo seria feito e seria agora, durante as semifinais do torneio. O time de Mário jogaria contra o de João: a chance de ouro que tanto almejava.

*

A partida não tinha um momento livre de tensão. João sabia que Mário nunca tinha caído de amores por ele, mas dessa vez estava impossível: não conseguia dar um passo sem ser bloqueado pelo adversário. A situação piorava à medida que João se desvencilhava e marcava um gol. Mário parecia estar cego e já não enxergava outra coisa que não o seu desejo de reprimir o João. Era tanta raiva que acabou por perder o controle e acertar o adversário que sequer tinha a bola nas mãos.

– Tá doido, Mário, qual o teu problema?

– Qual é, isso é um jogo, não aguenta pede pra sair! – zombou Mário.

Ânimos exaltados, hormônios em fúria, toda a escola parava para ver, incrédula, o show de Mário. Quanto mais João tentava amenizar a situação, dar seguimento ao jogo, mais o outro parecia se enfurecer. A atmosfera explosiva pareceu chegar ao auge quando Carol se aproximou dos dois na esperança de ajudar a contornar a situação.

– Agora você, Carol, vai defender esse daí? Vai dizer o quê, que tá com peninha dele? Se não aguenta um jogo, pede pra sair! Tipinhos como esse não chegam muito longe mesmo…

O silêncio surgido de repente era constrangedor. O sentimento de embrulho que aparecia no estômago de João e a incredulidade diante das palavras que saíam da boca de Mário eram demais para ele. Não, não era possível que aquilo estivesse acontecendo, bem diante de seus olhos, na frente de toda a escola.

– Hein? O que você quer dizer com isso? Quem é você pra falar do futuro de alguém? Você realmente acha que um rostinho bonito e um monte de menininha boba aos teus pés significam algum futuro? Cada palavra martelada por Carol era um golpe em Mário. Não, aquela situação já estava chegando longe demais, dane-se tudo, ele não ia ser feito de palhaço ali na frente de todos.

– Eu tenho muito mais futuro! Tenho grana pra estudar o que quiser na faculdade. Quem me negaria um emprego? E sim, esse rostinho aqui vai me garantir muita coisa. Você deveria ter escolhido melhor namorado, viu? Porque esse daí, com esse sotaque, esse nariz e esse cabelo horrível, quais são as chances?

Não há palavras que possam descrever aquele momento. Ao redor, todos se entreolhavam, boquiabertos, diante daquelas palavras. Carol ficou com algo preso na garganta: não se sabe se vontade de dar um grito, de mandar Mário ao inferno, ou mesmo de chorar. Olhava para João, que até então estava imóvel, e temia o pior: que alguma besteira fosse feita. A atmosfera pesada daquele momento pareceu durar uma eternidade.

Respirando fundo, João sentiu dentro de si como que uma corrente de alta voltagem que parecia eletrizar suas mãos e pernas e incendiar o coração. Olhou para Carol, que pela primeira vez parecia à beira de um colapso; olhou ao redor, para todos os colegas e professores e lembrou, quase que imediatamente, de sua família. Pela primeira vez, ao ouvir palavras tão duras vindas de alguém que até então parecia ser um cara legal, notou uma coisa: como tinha orgulho de seus pais. Não que isso nunca tivesse passado por sua cabeça antes, muito pelo contrário. Mas agora, naquela fração de segundo, pôs-se a imaginar tudo que os pais certamente passaram para que ele tivesse a vida que tem. Pôde entender melhor o que os pais queriam dizer enquanto preparavam-no para um mundo que não aceita as diferenças e só então compreendeu melhor o orgulho que sentia por eles serem exatamente como eram. Orgulho pela cor da pele, pelo tempero do sotaque, por cada característica que herdara e que lhe dava força para erguer a cabeça quando muitas vozes, especialmente as mais silenciosas e veladas, faziam parecer que tudo aquilo era motivo de vergonha. Não, eles não entendiam nada.

– Mário, eu me orgulho muito do ser humano que sou em cada detalhe. Vozes como a sua nunca vão me calar. Eu achava que você até poderia ser um cara legal: descolado, bom jogador. Agora dá pra ver que tem um vazio em ti. Qual o problema, Mário? Que baixa autoestima é essa? É essa a forma que tu encontrou pra se sentir superior a mim? Tu consegue ouvir ao teu redor, Mário? Consegue ouvir que todos ao teu redor acham absurdo tudo isso que tu falou? Porque se tu acha que tudo o que foi dito é normal, dá uma olhada ao redor e tenta ver com teus próprios olho como tu tá corroído por um veneno chamado preconceito!

De fato, até aquele momento Mário parecia não enxergar nada além de toda a raiva que sentia. Agora que o sangue começava a esfriar, ia percebendo os olhares de reprovação e desprezo. Mesmo as tão amadas fãs pareciam decepcionadas. De repente, toda a escola se agitava. Começou com uma só voz, não se sabe bem a de quem, e passados poucos segundos, toda a escola batia palmas e gritava pelo nome de João. Toda aquela energia parecia encher o peito do rapaz de uma alegria e orgulho sem tamanhos enquanto Mário mais parecia encolher de tamanho.

*

O time de João acabou perdendo as finais, mas o sentimento em seu peito era de uma grande vitória: continuava tendo ao seu lado uma namorada incrível e amigos com quem podia contar. As provas para a universidade haviam passado e tinha certeza de seu bom desempenho. Os seus pais, que haviam preparado uma surpresa, compraram passagens para que a família – incluindo Carol– fossem passar as férias em Jericoacoara, oportunidade perfeita para voltar à sua terra. De vez em quando ainda lembrava da discussão com Mário, daquela sensação esquisita que era experimentar o ódio alheio, e de como era triste perceber que havia pessoas com um coração tão marcado por maus sentimentos. O fato de Mário ter sido expulso do colégio e de seus pais terem chegado a um acordo na justiça para evitar consequências mais graves faziam com que João se sentisse justiçado embora um tanto triste, pois ele é daqueles que mesmo diante da vitória em batalha não deixa de lamentar o destino de quem é derrotado. E naquele caso, João só podia torcer para que Mário tivesse aprendido sua lição e entendido que nutrir aquele tipo de ódio pelo próximo só trazia destruição pra si mesmo.

*
Kelvis Santiago (@kelvissn) é cearense e apaixonado por histórias. Não dispensa um bom filme e nem uma boa cerveja. Cabra da peste e da poesia. Formado em Letras e servidor da Universidade Federal do Ceará.