ENSAIO SOBRE A VIOLÊNCIA – RÔMULO DE FREITAS

A violência ao longo da história recebeu diferentes tratamentos, interpretações e resignações. Cada sociedade tinha sua forma de violência, e é verdade que ela sempre andou lado a lado com a configuração do homem tanto de seu espaço tangencial, como do seu espaço civilizatório.

Não é novidade a proposta conceitual, tanto na literatura quanto na filosofia, que alimentar nossos impulsos destrutivos é tão intenso e necessário quanto a própria subsistência. No presente texto, usaremos o filme “Os oito odiados” de 2015, oitavo da carreira do diretor norte americano Quentin Tarantino, para tratar de um dos temas mais presentes no cinema, assim como também em outras formas de expressão humana.

Ao falarmos sobre a trilha que deu o Oscar ao grande mestre Ennio Morricone, em 2016, temos algo tão impactante quanto sua clássica “The Ecstasy of Gold” – trilha de “Três homens em conflito” (The good, the bad and the ugly, 1968) de Sérgio Leone, porém não tão épico e heroico.

“L’Ultima Diligenza per Red Rock”, música que abre a película, já nos coloca dentro de toda ambientação sinistra e sombria, tanto pelas metáforas imagéticas de uma estátua fúnebre de Jesus Cristo – similar a um cemitério e evocando o sacrifício supremo como pagamento dos pecados, justamente a forma que a moral cristã coloca os impulsos humanos mais primitivos -, como a violência aqui tratada. A imagem sacra é colocada em primeiro plano, enquanto a diligência se aproxima ao fundo. Fica claro aqui que estão todos condenados, indo em direção as suas mortes, porém antes disso vem o julgamento e o expurgo, o que observaremos a seguir.

O que está sendo julgado é de fundamental interesse aqui, possuímos uma fórmula já bem consagrada nos filmes de terror de cabana, nessa obra, especificamente, apropriada de outro gênero cinematográfico, o Western. Temos o estranhamento e a tensão necessária, ao mesmo tempo enquanto essa mesma estrutura é desconstruída para denunciar um demônio que nos agride bem mais profundamente que apenas nosso senso de moral.

O demônio representado é a condição histórica de opressão, muitas vezes violenta, mas por vezes apenas simbólica. O próprio nome que a obra se apresenta implica em uma provocação, no original “Os oito detestáveis” (The Hateful Eight) já nos despe de qualquer hipocrisia ao assumir que todos os presentes nessa cabana não são heróis, todos possuem interesses próprios nem um pouco altruísta, todos homens de violência, produto dela, ou que a utilizam enquanto instrumento de um mundo que todos sentem prazer em integrar, possuem motivações apáticas ao caos dos tempos de mudança a sua volta.

O contexto em questão é no pós-guerra de Secessão estadunidense (1861-1865), depois da abolição da escravatura e derrota dos confederados, o nome do filme é uma referência direta aos oito estados escravagistas a base do sistema da monocultura latifundiária do Sul dos EUA, que se opuseram a Abraham Lincoln.

Aqui a violência assume um papel ostensivo e sádico, algo que dialoga com a utilização da mesma como instrumento de dominação e poder, não apenas por uma razão de honra, o que aproxima mais esses personagens do arquétipo do vilão, e os distância do herói clássico.

O filosofo francês Gilles Lipovetsky, conhecido por suas teorizações da hipermodernidade em uma das suas obras mais importantes, o ensaio filosófico “A era do vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo”, trata em seu capítulo final “Violências selvagens, violências modernas” uma interessante reflexão do caminho que a violência e a crueldade passaram, de valores antropológicos legitimados a comportamentos patológicos – apesar da violência ter sido assimilada dentro da amálgama da civilização, acabando por ser um instrumento de perpetuação de poder, com o Estado possuindo seu monopólio, e licença total de utilização da mesma.

Nas sociedades de sangue, como por exemplo a Asteca e os índios Tupinambás, em “tempos primitivos” a violência possuía suas raízes em estruturas sociais prévias, o culto a honra e a vingança nessas sociedades de sangue, era a forma de equilíbrio, o que trazia assimetria entre as vozes dos vivos e dos mortos era um imperativo social, e independia dos sentimentos e afetos das pessoas ao redor.

Por muito tempo, o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder, em suas manifestações e rituais. Para uma sociedade onde predominam os sistemas de aliança, a forma política do soberano, a diferenciação em ordens e castas, o valor das linhagens, para uma sociedade em que a fome, as epidemias e as violências tinham a morte iminente, o sangue constitui um dos valores essenciais; seu preço se deve, ao mesmo tempo, a seu papel instrumental (poder derramar o sangue), a seu funcionamento na ordem dos signos (ter um certo sangue, ser do mesmo sangue, dispor-se a arriscar seu próprio sangue), a sua precariedade (fácil de derramar, sujeito a extinção, demasiadamente pronto a se misturar, suscetível de se corromper rapidamente). Sociedade de sangue – ia dizer de ‘sanguinidade’: honra de guerra e medo das fomes, triunfos da morte, soberano com gládio, verdugo e suplícios, o poder falar através do sangue; este é uma realidade com função simbólica”. (FOUCAULT, 2006: 160).

A existência do Estado, tira a simplicidade da violência e a transcende para outro patamar, tão cruel quanto em seus tempos pretéritos, porém com uma nova roupagem de civilização. A guerra se transforma em uma máquina de expansão e conquista, assim como a equidade da vingança é substituída por uma sociedade disciplinar, onde os suplícios são assimilados e utilizados para a manutenção do território, onde muitas vezes os déspotas se utilizam de uma retórica religiosa ou algum outro tipo de ídolo como a democracia, para estabelecer seu poder utilizando vingança.

O carrasco itinerante Oswaldo Mobray (Tim Roth), entrega uma das mais célebres frases do filme, que simboliza de forma singular a forma com que o Estado se apropria da vendeta em sua estrutural penal subjetiva: “A parte boa da justiça de fronteira é que ela é muito satisfatória. A parte ruim é que pode ser errada, ou certa… A diferença sou eu: o carrasco. Para mim, não importa o que você fez. Quando eu te enforcar, não vou ter nenhuma satisfação com a sua morte, é o meu trabalho. Eu te enforco em Red Rock, vou para a próxima cidade, e enforco alguém lá. O homem que puxará a alavanca que quebra seu pescoço será um homem desapaixonado. E esse desapego é a própria essência da justiça. A justiça entregue sem desapego sempre corre o risco de não ser justiça

Os tipos de violência e sua legitimação são apenas um dos sub-textos dessa obra, tal como quão grande é a distância da retórica do devir, e como a manutenção da sociedade é fundada sobre opressões, mortes e articulações escusas. O filme se finaliza de forma irônica, mostrando a hipocrisia do “American dream”, e nos mostra que todos somos vítimas da própria violência que produzimos, mesmo quando somos frutos da mesma.

Os personagens principais simbolizam setores que organizam historicamente a sociedade, grupos mais fortes contra os grupos mais fracos, e grupos híbridos originalmente oprimidos, mas que se contaminam pela violência entrópica e, por muitas vezes, enxergamos isso como justificável alimentando assim esse ciclo que persiste desde os primórdios da história, representado pelo ex-major Marquis Warren das forças da União de Lincoln (Samuel L. Jackson).

A conquista do poder, a vaidade e a violência andando lado a lado, a provocação a respeito de nosso sistema punitivo e nossa moral, o quão é tênue e subjetiva a linha que separa o bem e o mal, o certo e o errado, o legal e o ilegal; e o quão preocupante é o que isso evidencia. A máxima que Tarantino nos deixa, é a mesma da famosa frase de Nietzsche em sua obra “Além do Bem e do Mal”: “O que digladia com monstros deve cuidar para que, na luta, não se transforme também em monstro. Quando tu olhas, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”.

 

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Rômulo Ribeiro de Freitas Junior (@romuloribfreitas) tem 25 anos, é geógrafo em formação. Seus maiores interesses encontram-se entre Filosofia, Geografia, Literatura e Cinema, autor de ficção de maior influência é Alan Moore, tendo como principal referência cinematográfica Stanley Kubrick, é apaixonado por Breaking Bad.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 17. ed. tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006
LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Tradução: Juremir Machado da Silva.1°ed. Manole, 2005.
NIETZCHE, Friedrich. Além do bem e do Mal. tradução: Paulo César de Souza. 3° reimpressão: Companhia de Bolso, 2006.