COLUNA LORCA
POR CHARLES BERNDT
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Uma reflexão sobre a importância da representatividade LGBT
no cinema, na literatura, na arte de modo geral.
Cresci em meio aos livros, desde muito jovem percebi que a literatura era um lugar fantástico, que através dela eu poderia ser muitas coisas, conhecer lugares onde nunca poderia ir, viver o impossível. Uma porta sem fim para imaginação. Foi assim que descobri Harry Potter, a história do menino bruxo que sobreviveu, que perdeu os pais quando ainda era bebê e que derrotou um bruxo que desejava ser imortal assassinando pessoas.
Harry Potter é, para além de uma história infantil sobre magia e bruxaria, uma fábula sobre amor, ódio, justiça, guerra, poder – e igualdade. Qualquer leitor percebe, facilmente, uma das principais referências de J.K. Rowling: a nossa própria história. O que é a organização dos comensais da morte senão uma alegoria dos fascismos europeus do século XX? A discriminação dos trouxas¹ e dos bruxos mestiços por parte dos seguidores de Lorde Voldemort tem, sem dúvida, sua inspiração na perseguição sofrida pelos judeus durante o regime nazista, bem como nas diversas formas de racismo existentes em nosso mundo.
Desse modo, mais do que uma obra de escapismo, de fantasia, sempre vi Harry Potter como uma obra que nos convida à tolerância, ao respeito, mostrando que todos os seres humanos são iguais e dignos dos mesmos direitos. E apesar de não fazer menção, especificamente, sobre os sujeitos LGBT, sempre encarei que subliminarmente estaria ali, também, esta causa. Há cerca de dois meses, contudo, comecei a me questionar, de modo mais sério e profundo, sobre isso: será que há, de fato, espaço, na obra de J.K. Rownling para as questões que envolvem gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais?
Apesar de ter publicado Harry Potter e as Relíquias da Morte em 2007, último livro da saga, o universo de J.K. Rownling continua a render muito pano para manga. Em verdade, parece uma mina inesgotável. O último filme que levou ao cinema a história do menino que sobreviveu só seria lançado em 2011 e em 2016 estrearia uma nova série, Animais Fantásticos e Onde Habitam. Em 2018, a Warner Bross lançará um novo filme, Animais Fantásticos e Onde Habitam – Os crimes de Grindelwald, que explorará o passado de Albus Dumbledore, uma das principais personagens da série, mentor e amigo de Harry Potter, diretor de Hogwarts e talvez um dos bruxos mais poderosos do universo mágico de J.K. Rownling. Chegamos, então, ao ponto central, que me levou a refletir sobre a representatividade LGBT no universo de Harry Potter: em 2007, a autora revelou que Dumbledore é gay, que sempre enxergara a personagem dessa forma e que, em sua juventude, havia vivido, inclusive, uma paixão com Gellert Grindelwald2.
Naturalmente, com o novo filme, previsto para estrear em novembro deste ano, muitos fãs se animaram então com a ideia de finalmente saber mais sobre a vida de Dumbledore, sobretudo no que diz respeito à sua sexualidade e ao romance com Grindelwald. Contudo, no início de fevereiro, o diretor do filme, David Yates, conforme foi noticiado por inúmeros jornais e sites na internet, declarou que a homossexualidade do bruxo não será retratada no filme. Essa declaração irritou muita gente e os fez questionar por que, afinal de contas, Dumbledore não pode ser gay, ou melhor, não pode ter parte do que é retratado no cinema? Será que se fosse uma personagem heterossexual aconteceria o mesmo?
Para responder essa pergunta, basta lembrarmos de outras personagens, como o próprio Harry, vivido por Daniel Radcliffe nas telonas, que teve, tanto nos livros quanto no cinema, sua sexualidade retratada com naturalidade. A sua sexualidade não está no centro de sua história, mas em nenhum momento houve hesitação em retratá-la, em explorá-la – vemos algumas vezes Harry beijar garotas e, depois, namorar e se casar com Gina Weasley. O mesmo vale para quase todas as personagens – todas heterossexuais. Por que, então, a única personagem LGBT da qual se tem notícia no universo de J.K. Rownling é tratada dessa forma? Por que ainda temos tanto receio e medo de colocar em cena dois atores ou duas atrizes se beijando? Por que o romance de Albus e Grindelwald não pode ser colocado no filme? Por que a autora, que assina o roteiro do filme, concordaria com isso, depois de se posicionar várias vezes a favor da causa LGBT? Por que ela está perdendo a chance de canonizar – de deixar claro, de uma vez por todas – algo que ela própria sempre viu e dividiu com o mundo, a homossexualidade de Dumbledore?
Talvez nem J.K. Rownling nem David Yates e nem muita gente por aí que faz cinema hoje em dia tenha ideia do quanto o mundo está mudando e do quão importante é para as pessoas se sentirem representadas, assistirem filmes ou produções televisivas, por exemplo, que falem um pouco de si, dos seus dramas, problemas, daquilo que são e vivem. Talvez não mensurem, também, o quanto isso pode ser decisivo na formação de nossa personalidade, de nossa autoestima. Para uma pessoa hétero, talvez isso não seja tão evidente, já que a maioria dos filmes, telenovelas, séries e mesmo as obras literárias trazem casais e personagens heterossexuais. Mas o que dizer de pessoas trans, lésbicas, gays e bissexuais? Nos últimos anos, em muitos países, tivemos grande avanço nessas questões, tanto sociopoliticamente quanto culturalmente. Existe, sim, um número bastante considerável de filmes que exploram romances homoafetivos, mas eu me pergunto: esses filmes chegam ao grande público ou ficam presos em determinados nichos sociais e culturais? Há espaço em um filme do universo de Harry Potter, mundialmente aguardado, mundialmente aclamado, com larga bilheteria, para personagens LGBT?
Em 2017, filmes como Call me by your name e Una mujer fantástica encantaram o mundo, recebendo o Oscar de melhor roteiro adaptado e melhor filme estrangeiro, respectivamente. Então, resta-nos a questão: o mundo – este mundo de 2018, onde vivemos, em que não há hipogrifos nem feitiços a sair de varinhas mágicas – aceitaria e acolheria um Dumbledore fora do armário? Não estariam os roteiristas de Animais Fantásticos e Onde Habitam – Os crimes de Grindelwald um tanto deslocados da realidade em que vivemos? Eles conhecem, de fato, a geração que acompanha Harry Potter desde a década de 1990? Há muito, ainda, por se fazer e se lutar, grande é o número de cidadãos LGBT que morrem ou são agredidos por conta de sua sexualidade/identidade de gêneros todos os dias no Brasil e no mundo. Continuamos precisando de políticas públicas que protejam essas pessoas e garantam seus direitos e sua liberdade. E essa luta talvez fique mais fácil e doce quando a arte, a literatura, o cinema, estão do seu lado. Em 2014, respondendo uma fã que perguntara se havia estudantes LGBT em Hogwarts, J.K. Rownling respondeu: ”Mas é claro”. Em seguida, publicaria uma imagem com o seguinte dizer: “Se Harry Potter nos ensinou algo, é que ninguém deve viver no armário”. Ora, querida Joanne, por favor, não nos decepcione, não decepcione o próprio Dumbledore, que nos ensinou tantas coisas, que nos mostrou que as palavras são ”inesgotável fonte de magia”3, podendo tanto causar quanto remediar grandes sofrimentos, e que, a cima de tudo, ”São as nossas escolhas que revelam o que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades”.4
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¹ É o modo como as pessoas que não são bruxas são chamadas no universo de J.K. Rowling. Originalmente, em inglês, a palavra é muggle. No Brasil, optou-se por traduzir o termo como ”trouxa”.
2 Gellert Grindelwald é conhecido na obra de J.K. Rownling, como um dos bruxos mais terríveis da história, antes de Lorde Voldemort. Durante as décadas de 1930 e 1940, teria aterrorizado a Europa com sua sede de poder. Conheceu Dumbledore na juventude, sendo derrotado por ele, em 1945.
3 Frase dita por Dumbledore no livro ”Harry Potter e As Relíquias da Morte”.
4 Frase dita por Dumbledore no livro ”Harry Potter e Câmara Secreta”.