Era uma quarta-feira de outubro, primavera repleta de árvores floridas, muitos pássaros cantando, quando João nasceu. Mas ninguém se importou muito com isso, afinal era o sexto dos oito filhos de seus pais. Sabia que, como acontecera com seus irmãos mais velhos, também seria despejado de casa quando tivesse condições de se virar sozinho. Considerava natural a criação para o mundo e entendia essa lei da vida – Meus pais não conseguiriam fazer mais do que isso por mim! – ele sempre enfatizava.
Com muita insistência da sua família formou-se em engenharia. E não é que ele era bom nisso! Desde garoto tinha muita habilidade com construções e aproveitava tudo o que encontrava no quintal de casa para inventar coisas, nem se interessava pelos brinquedos de seus irmãos ou colegas.
João havia saído da casa dos pais há alguns meses e dormia em locais provisórios, principalmente nas obras que acompanhava. Possuidor de um network invejável, amigo de todos, tinha sempre trabalho e teto pra dormir. Não tinha interesse em firmar moradia, adorava o fato de ser nômade e ter o espírito livre. – Não preciso dizer que horas chegarei em casa e muito menos com quem!
Completando 18 meses de nomadismo foi convidado para participar de um projeto grande na cidade vizinha a sua. A empresa para a qual prestava serviços ganhou o processo de licitação para a revitalização de área verde no centro da cidade. O projeto duraria 5 anos, mas a sua presença seria necessária somente nos dois primeiros. Com a empolgação de um recém-formado, correu para esse desafio. Ali conheceu muita gente da sua área e de áreas diferentes: engenheiros, arquitetos, matemáticos, biólogos, veterinários. No meio de tantos indivíduos um se destacou. Ela era despojada, piadista, distraída com o mundo, mas muito compenetrada no seu trabalho. Eram muito parecidos em não querer qualquer outro vínculo na vida que não fosse o empregatício. Desde o início ficaram muito próximos, primeiro num grupo de seis pessoas e todos saíam para comer no mesmo lugar, nos mais diversos horários do dia, inclusive saídas noturnas. Depois o grupo foi se dissipando até que restaram apenas ela e João. Ele não percebeu o momento exato em que ficou dependente dela, mas quando estava prestes a cumprir seu prazo no projeto veio uma sensação ruim ao pensar em como ficaria sem vê-la e resolveu investir, afinal não tinha nada a perder. Ela não ficou surpresa com a proposta de namoro e ainda caçoou dele pela demora.
Era interessante observá-los, parecia que ela e João estavam mesmo destinados a ser um casal. No trabalho assobiavam e cantarolavam durante o dia todo, a felicidade transbordava. Criaram uma ligação tão forte que em pouco tempo definiram um objetivo de vida, o de construir um lar, um cantinho seguro, onde pudessem fazer morada e constituir família. Quem diria?
Então, acostumados a trabalhar no ramo das construções, passaram a garimpar materiais e acabamentos para o lar. A natureza foi o ponto de partida, nela os dois buscaram inspiração, e mesmo que fosse na busca de um simples graveto, eles estavam juntos, era assim o tempo todo. Arquitetaram minuciosamente cada cômodo, estavam determinados nessa empreitada. As obras foram conduzidas a todo vapor e o trabalho foi árduo, mas pareciam incansáveis. O lar estava pronto, bem longe da correria e barulhos da cidade, completamente isolado, como queriam. João fez questão de construir uma pequena sala todo equipada para que ela mantivesse seu hobby na fotografia, um cômodo escuro, sem janelas, mas com excelente sistema de ventilação. E para ele um estúdio onde poderia tocar sua gaita sem incomodar a concentração dela.
Ambos deram adeus a vida nômade, aceitaram propostas menos atrativas de trabalhos para que pudessem permanecer na mesma cidade, com um futuro mais previsível. Até a educação dos filhos estava programada, desde o ensino infantil até o momento em que definiriam seus destinos.
Três anos se passaram e sequer sinal de filhos. Tinham “pencas” de sobrinhos a essa altura. A relação foi ficando pesada e cheia de cobranças. Não frequentavam mais os lugares juntos, eram vistos separados na padaria, no supermercado, confraternizações dos respectivos trabalhos.
Um certo dia João notou uma movimentação diferente no seu trabalho, estavam evitando conversar com ele, contudo sussurravam na sua ausência. Não era bobo, sabia que estavam falando sobre ele, mas o quê? Não conseguia descobrir e estava paranoico. Recebeu uma mensagem de um colega que dizia: – João, há dias as pessoas comentam sobre você. Não gostaria de estar no seu lugar sem saber o porquê. Meu código de conduta me obriga a ser a pessoa a te contar que está rolando uma fofoca sobre uma traição da sua esposa. Só sei que é um cara do trabalho dela. Amigo conte comigo para o que precisar!
Nesse dia João chegou em casa e foi de imediato olhar o celular dela, porém a senha era outra. Há quanto tempo ela teria trocado? Nunca tinha ido a lavanderia, mas naquele dia foi cheirar as roupas que estavam no cesto de roupas sujas na expectativa de sentir outro perfume nas roupas dela. Não notou nada de diferente no seu comportamento ultimamente, mas estavam tão distantes que possivelmente não notaria mesmo. Ela seria capaz de traí-lo? Passou dias observando cada movimento, reações, roupas, maquiagem da sua esposa e nada, nada de nada. Ela sim notou João diferente, estava mais atencioso, conversando sobre o dia a dia, interessado na vida dela. Estavam se reconectando? Apesar das tentativas de reaproximação ambos sentiam que não existia mais entrosamento, mesmo assim continuavam se relacionando. Parecia difícil assimilar que o casamento não estava dando certo, seria um fracasso em suas vidas e isso eles não admitiriam.
Após semanas, ele finalmente decidiu seguir sua esposa. Certo dia, em que ela dizia estar na manicure, ele confirmou sua traição ao vê-la entrando num hotel. Não pôde acreditar que aquilo estava acontecendo. Permaneceu em choque por horas. Nem foi trabalhar e passou o tempo todo pensando em como seria sua vida dali para frente. Pensou muito antes de voltar para casa e quando chegou sua esposa já estava lá como de costume. – Boa noite, precisamos conversar – Ela parou o que estava fazendo para dar atenção ao que ele estava dizendo – O que acha de irmos ao Chile mês que vem? Nunca vimos neve! – Empolgada ela respondeu que sim.
Novamente se tornaram aquele casal invejado por muitos. Nos dias que se passaram, até a data da viagem, estavam unidos como nunca. Malas prontas, check-in realizado com antecedência e João revela: – Tenho uma surpresa para você, está na sua sala! Ela vai correndo para a sala e lá encontra uma caixa grande com um cartão. Distraída e muito curiosa nem escuta a porta fechar. Abre a caixa e vê sua comida preferida, um conchiglione aos quatro queijos. Não entende e só então abre o cartão que dizia: – Aproveite sua última refeição!
Uma nova primavera marcaria a vida de João. Ele pegou sua mala e rumou para o aeroporto, sorridente, lembrando de como era um bom engenheiro! Foi tranquilo, havia conectado o escapamento de um motor a diesel no sistema de ventilação da sala de fotografia onde abandonara a sua esposa. Por sorte, em algumas horas ela morreria asfixiada ou, se desse errado, morreria de inanição em muitos dias. Não tinha como dar errado.
Já no aeroporto, foi tranquilamente despachar a mala. Ao chegar a sua vez, deu os documentos para a atendente, depositou a bagagem na esteira rolante e confirmou com firmeza – Sim, sou o João de Barro.
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Maiara Leme mora em São Paulo e é veterinária. Gosta de cantar no banheiro e em karaokês. Assiste séries à prestação e não vive sem requeijão. É mãe coruja de dois gatos vira-latas – Traça e Two Fu – e de um cachorro burguês, o Sparky.