Roberval e Alcides moravam em bairros relativamente próximos, frequentavam a mesma escola, torciam pelo mesmo time, mas não eram amigos. Roberval era aquele garoto popular, amigo de todo mundo, frequentador de todas as festas, convidado para todas as baladas, aquele malandro querido por todos, carismático e, ainda por cima, bonito. De uma beleza doída, indignamente bonito. Do tipo livre de espinhas e daquele desengonçado característico dos adolescentes. Tinha um jeito maroto de jogar as louras madeixas da franja por cima dos olhos azuis piscina que deixava as garotas suspirantes por onde quer que passasse. Roberval era o cara.
Alcides, por sua vez, com seus óculos fundo de garrafa, objeto fácil de desejo do bullying alheio, camisetas largas para esconder um excesso de peso aqui e ali, passava quase despercebido. Aluno dedicado, menino de ouro da família, escrevia cartas secretas que jamais seriam entregues a seus impossíveis futuros amores e as escondia debaixo de alguns tacos soltos no piso velho de madeira do seu quarto, que estampava paredes forradas de pôsteres do Batman e do Homem Aranha.
O ponto de intersecção de suas vidas, foi Jurema. Jurema não era, digamos, do tipo líder de torcida. Jurema era bonita na medida certa, educada na medida certa, nem alta demais, tampouco baixa demais. Cabelos ruivos médios, que num jogar de cabeça resvalavam em seus ombros talhados pela natação que fazia desde muito menina. De sorriso fácil e uma timidez cativante, chamava atenção por ser a garota quase inacessível, aquela que sentava na primeira fila e que tinha um estojo com canetas coloridas para separar por cores títulos, atividades e anotações em seu caderno encapado com motivos florais. Jurema era próxima de Alcides. Havia uma sintonia daquelas inexplicáveis entre eles que os aproximava. Àquela altura da puberdade, onde Alcides não conseguia se encontrar na turma dos caras populares, Jurema foi uma grata companhia de incontáveis horários de lanche e deveres de casa. Jurema foi o fiel da balança da vida dos três.
O dia em que Jurema lhe sussurrou ao pé do ouvido que amava Roberval, que era correspondida e que namoravam em segredo, foi certamente um dos piores dias da vida de Alcides. Estavam no último ano do colégio, preparando-se para as provas finais e aquela confissão feita de forma incisiva e tão apaixonada atropelou-o instantaneamente. Não encontrava palavras ou ao menos conseguia esboçar qualquer tipo de sorriso diante de uma Jurema esfuziante e perdidamente apaixonada. Jurema estranhou a reação de Alcides e perguntou se ele não estava feliz por ela, ao que Alcides começou a desfiar seu rosário:
— O Roberval, Jurema? Mas… mas que absurdo! Você não sabe da fama do Roberval? Ele certamente é o pior cara que você poderia ter escolhido! Ele, ele…
— Ele o quê? – Indagou Jurema.
— Ele não serve para você! Você é linda, inteligente, carinhosa, uma menina que qualquer cara bacana adoraria ter ao lado e o Roberval não é um cara bacana! Ele se acha! Ele já saiu com metade das meninas da escola, ele não te merece!
— Mas você nem o conhece! Retrucou.
— Não conheço, mas… Mas já ouvi falar! E onde há fumaça há fogo! Ele não serve para você. Seria muita estupidez sua querer ficar com um cara como ele. É! É isso! Você seria muito estúpida!
— Que absurdo você dizer isso Alcides! Você deveria me apoiar! Eu o amo!
— Ama? Você não sabe de nada dele! Ele pode ser um galinha, um mentiroso! Pode estar apenas querendo se aproveitar de você porque você é uma boba inocente! Uma menininha imbecil esperando um príncipe encantado!
—Boba inocente? Imbecil? Olha o que você está falando! Eu consigo sentir a inveja em você! Porque ninguém te quer, porque você nunca teve uma namorada, porque você não sabe o que é o amor, porque você é uma pessoa triste e sem sentido na vida! Você me dá pena às vezes Alcides. Pena!
—Você pensa tudo isso de mim?
—Você pode ir agora Alcides. – Disse Jurema, após se levantar com olhos marejados e decepcionada por ter acreditado que contava o maior segredo de sua vida ao melhor amigo do mundo e de repente haviam ambos destilado todo tipo de despautério um ao outro.
A partir daquele dia, Jurema assumiu seu namoro com Roberval e distanciou-se imediatamente de Alcides, para tristeza de ambos. Mas Alcides não engoliria tudo aquilo que havia ouvido de Jurema. O sentimento que ele carregava agora era escuro, pesado, ele queria se vingar.
Os dias de Alcides tornaram-se nublados. Aquele relacionamento não lhe descia a garganta, por motivos óbvios. No auge daquela conturbada adolescência, tudo o que ele não queria era ver o seu amor platônico se emaranhando num relacionamento real. E agora havia raiva envolvida. Era um péssimo primeiro passo na emocional e atribulada vida adulta.
Alcides passava seus dias pensando em formas e maneiras de atrapalhar aquele relacionamento e quem sabe findá-lo, na esperança de que uma única chance se fosse dada. Era difícil para ele, rapaz tão dedicado à vida direita, ter dentro de si sentimentos tão antagônicos. Cada dia era um martírio, porque por mais que ele quisesse que o relacionamento dos dois terminasse, não queria que Jurema sofresse a ponto de não mais querê-lo por perto, mesmo após um suposto fim do namoro. Tinha medo de tê-la magoado muito com aquelas palavras ditas no calor da irracionalidade juvenil – ainda se ouvia repetindo “Estúpida!” e isso o consumia diuturnamente -, e de magoá-la ainda mais profundamente diante de qualquer gesto impensado. Apesar de sentir raiva também do que ela havia dito e ter dentro de si aquele sentimento de revanche, ele por outro lado a queria por perto. Era algo paradoxal, infantil. Alcides precisava pensar… E pensar ao estar enfiado numa tempestade de sentimentos não era exatamente a coisa mais simples de se fazer. Alcides sofria em silêncio, mas sua cabeça não parava, tampouco seu coração.
Alcides teve então a ideia genial de contratar um carro de som com entrega de flores e bombons para fazer algazarra na frente da casa da Jurema. Contratou o serviço por telefone para que ninguém soubesse que se tratava dele e pagou via transferência bancária. A balburdia patrocinada por um tal de “Ezequiel”, namorado a distância da coitada da Jurema foi um baque no namoro dela e de Roberval. Aquele relacionamento que já se estendia por quase dois anos após o fatídico “Estúpida”, foi definitivamente abalado, pois Roberval não entendia o que Jurema não conseguia explicar. – Quem é Ezequiel? – Perguntava odioso! – Eu não sei! – Respondia chorosa. Findou-se então o que havia.
A reaproximação entre Jurema e Alcides foi lenta. Um ano se passou para que sorrisos entre os dois voltassem a brotar de forma espontânea e a parceria fosse retomada. Alcides protegia aquele segredo com o afinco de quem protege a própria vida, e não conseguia imaginar o que Jurema faria se soubesse do que ele foi capaz. Mas soube. No dia em que tinham combinado de comer uma pizza e Jurema o aguardava na sala, o telefone de sua casa tocou e Jurema, numa gentileza, atendeu. Era da empresa de eventos que um ano atrás havia feito um evento para o senhor Ezequiel, queriam saber se ele tinha interesse em repetir a homenagem, dessa vez com desconto por ele já ser cliente. Quando Alcides saiu do banho, Jurema já não estava lá. E nunca mais esteve. Alcides, moço bom, não havia sido moldado para vingança.
Jurema e Roberval se casaram quatro anos depois na igrejinha da cidade. A festa foi numa modesta chácara nas redondezas para parentes e amigos. Já no fim da noite, quando os convidados se encontravam com seus teores alcoólicos já bastante alterados, dançando e cantando músicas bregas que são a tônica de qualquer casamento, a noiva foi avisada de que um rapaz estava na entrada e precisava lhe falar. Perguntou ao porteiro se o rapaz havia se identificado e surpreendeu-se ao ouvir que sim: Ezequiel.
O encontro foi rápido, pois Jurema não estava para muita conversa e a festa a aguardava. Além do quê ela não queria que Roberval visse Alcides ali. Tudo o que ela não queria era um furdunço no dia do seu casamento. Alcides a cumprimentou com um oi tímido, estendeu a mão e lhe entregou uma carta. Baixou o rosto, quicou o chão com a ponta do sapato e disse, de forma baixa e realmente sincera: — Desculpa.
Foi embora sem olhar para trás. Jurema ficou ali, sentada em cima da borda do vestido já suja de barro, com a carta na mão. Ao abrir, leu numa tacada só:
Querida Jurema.
Certamente você não me esperava aqui hoje. Nem eu me esperava. Eu não queria vir e relutei o que pude para não estar aqui. Mas cá estou. Tanta é a minha falta de coragem, e o tamanho da minha vergonha, que não consegui ficar em frente a você por dois minutos. Dois míseros minutos. Precisei escrever esta carta para lhe pedir as minhas mais sinceras desculpas. Acho, de verdade – e espero que acredite – que no fundo, nunca tive a intenção de lhe fazer mal. Eu simplesmente nunca soube o que fazer, porque guardar dentro de mim aquele amor infinito e ver tudo desmoronar no exato momento em que você me disse que amava o Roberval, foi devastador. Foi devastador, principalmente, por você dizer tudo aquilo, antes de mim.
E assim como alguns anos atrás você me escolheu para dizer que estava apaixonada – hoje sabemos – pelo homem da sua vida, eu queria te dizer que eu também estava apaixonado. Eu apenas não estava pronto para lidar com isso ainda e eu pensava, naquela época, que talvez você pudesse me ajudar. Amei Roberval desde o primeiro dia em que eu o vi, ainda por volta dos meus 10 anos de idade, brincando com uns primos dele que moravam na minha rua. Aquele moleque loirinho, divertido, que soltava aquelas gargalhadas gostosas e me chamava pra jogar no time dele, apesar de eu ser ruim de bola de doer, me tomou por assalto ainda muito novo. Eu nunca compreendi, eu nunca consegui falar sobre, eu nunca aceitei, porque aqui nessa cabeça, isso nunca foi certo. Mas o que é certo, não é? Amei-o de uma forma inimaginável… e por anos, quando encostei a cabeça no travesseiro a noite, era com a imagem dele que eu queria adormecer. Ali, no meu travesseiro, no escuro do meu quarto, com os olhos fechados, ele era meu, só meu, eternamente meu. E, na minha imaturidade, acreditei que você o havia roubado de mim. Que estúpido! Ninguém rouba ninguém de ninguém, porque ninguém pertence a ninguém.
Me perdoe pelo mal que causei. Me perdoe não ter dito nada disso antes. Não tive tempo. Não encontrei o tempo. E hoje, no dia do casamento de vocês, eu acho que é uma ótima oportunidade para sair pela vida, em mangas de camisa, buscando alguém, buscando a mim mesmo. Acredito que não nos veremos tão cedo. Vou embora, viver outros ares, viver quem sou, ser quem sou, vou lá… cantar em outras árvores.
E, apesar do tempo ter passado, fico feliz por ter sido você a primeira pessoa para quem eu pude dizer tudo o que eu sempre quis dizer. Você, a minha amiga Jurema.
Tchau Ju. Seja feliz.
Jurema passou a ponta dos dedos nos cabelos ruivos, assentou-os levemente atrás das orelhas, guardou a carta em algum lugar dentro do vestido, sorriu pequeno e disse baixinho:
Tchau meu passarinho…
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Douglas Moreira (@dougmoreira) é natural de Rio Grande da Serra/SP. Mora em São Paulo há quase 20 anos. É ator formado pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Marido da Perla, pai orgulhoso do Filippo e da Aurora.