Analisando os vilões do Universo Cinematográfico da Marvel
De psicopatas e párias sociais como Norman Bates de Psicose ou Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes a grandes autoridades políticas como o Imperador Commodus de Gladiador ou o Coronel Hans Landa de Bastardos Inglórios; de conservadores radicais como Darth Vader de Star Wars ou o Agente Smith de Matrix a figuras subversivas e revolucionárias como Roy Batty de Blade Runner ou Tyler Durden de Clube da Luta; de grandes mentes criminosas como Hans Grueber de Duro de Matar ou Lex Luthor de Superman a ameaças instintivas e irracionais como o tubarão de Spielberg ou o alien de Ridley Scott; de cataclismos naturais como os furacões de Twister ou o iceberg de Titanic a fenômenos sobrenaturais como os fantasmas de Poltergeist ou o demônio de O Exorcista; de complicados agentes do caos como o Coringa de O Cavaleiro das Trevas ou Alex Delarge de Laranja Mecânica até as mais caricatas representações do puro mal como Cruela De Vil de 101 Dálmatas ou o Dr. Evil de Austin Powers, o cinema mainstream norte-americano tem nos servido com os mais diversos tipos de vilões e vilanias ao longo de sua história.
O termo “vilão” tem origem na idade média, quando grandes senhores feudais viam seu poder aristocrático (baseado na propriedade de terras e no privilégio hereditário) ameaçado por um novo tipo de poder que se erguia nas recém-formadas cidades ou vilas burguesas. Nesta altura, quando o poder burguês (baseado no acúmulo de capital financeiro, oriundo do comércio) ainda era uma força minoritária em relação à hegemonia feudalista, os grandes proprietários de terra de linhagens nobres se referiam aos habitantes das vilas – os vilões – de maneira pejorativa, reconhecendo-os como ameaças à sua supremacia econômica e política na chamada idade das trevas.
Na modernidade, a burguesia tomou o lugar da aristocracia no topo das hierarquias econômicas e políticas em todo o mundo (graças às suas expansões mercantilistas responsáveis por dizimar, escravizar e colonizar populações americanas, africanas e asiáticas em busca de novas matérias-primas e mercados consumidores) e, assim, o termo vilão precisou ser atualizado, para designar os inimigos da nova ordem sociocultural estabelecida. O vilão moderno, portanto, passou a indicar aqueles que ameaçavam os valores, as crenças, as causas e os modos de vida burgueses: pagãos, ciganos, desempregados, mendigos, prostitutas, viciados, doentes, loucos, criminosos internacionais, governantes estrangeiros, enfim, qualquer um que não participasse dos círculos de produção e consumo ou dos modelos econômicos burgueses eram vistos como indignos, abjetos, desprezíveis, malignos.
Tais representações podem ser encontradas em diversos registros da cultura moderna: através de cartilhas religiosas, panfletos moralizantes, veículos midiáticos, e mesmo obras de arte, as forças conservadoras da sociedade burguesa sempre buscaram definir de forma clara e inequívoca o que consideravam benéfico ou prejudicial para a manutenção da ordem estabelecida, em um esforço estético que procurava definir tudo e todos em termos de bem e mal.
É claro que, desde a antiguidade até os dias de hoje, podemos encontrar obras literárias, peças teatrais e produções cinematográficas que se recusam a tratar seus personagens como simples estereótipos maniqueístas (bom / mau, mocinho / bandido, herói / vilão) e que compõem os diversos antagonistas de suas tramas de maneira complexa, conjugando neles qualidades e defeitos, atos nobres e vis, e motivações pessoais que não encerram as velhas determinações binárias de bondade ou maldade absolutas.
Também é claro que, quando tratamos de produções artísticas voltadas para o mercado de consumo e para as grandes massas, essas determinações fixas, bem definidas e simplistas garantem uma assimilação mais fácil por parte do público, que geralmente prefere ver os valores dominantes de benevolência e malevolência reafirmados em suas incursões pelo mundo das artes e do entretenimento. Talvez seja por isso que os grandes best-sellers e blockbusters dos últimos séculos ainda se valham, majoritariamente, dos tradicionais arquétipos de heróis e vilões como encarnações perfeitas do bem e do mal: Harry Potter x Voldemort, Frodo Baggins x Sauron, Transformers x Decepticons, são exemplos claros de como estas simplificações maniqueístas agradam o grande público e garantem o retorno financeiro para suas editoras e estúdios.
Voltando nosso foco para o cinema hollywoodiano, podemos observar como os grandes vilões que marcaram gerações e se tornaram verdadeiros ícones da cultura pop escapam desta dinâmica maniqueísta. Vilões que conseguem cativar o público, que têm personalidades e motivações plausíveis, que buscam seus objetivos de maneira inteligente e compreensível, tendem a ser mais marcantes e a sobreviverem por mais tempo no imaginário cultural do que aqueles que simplesmente encarnam a pura maldade e almejam a destruição ou a dominação de todo o mundo.
Tendo em vista este conflito entre a criação de grandes vilões icônicos e a utilização da fórmula maniqueísta que garante grandes sucessos de bilheteria, pretendemos analisar os vilões do Universo Cinematográfico da Marvel, cujos filmes têm configurado grandes fenômenos comerciais nas últimas décadas. O MCU (sigla em inglês para Marvel Cinematic Universe) já conta com dezoito títulos que arrecadaram um total de catorze bilhões de dólares e transformaram o universo cinematográfico da casa das ideias na maior franquia cinematográfica de todos os tempos. Uma vez que o sucesso comercial do MCU é um fato incontestável, procuraremos, neste texto, analisar como são concebidos os vilões deste universo fantástico e observar quais deles têm o potencial de se tornarem grandes ícones culturais e quais são apenas representações unidimensionais de um mal absoluto a ser combatido pelos super-heróis mais badalados do cinema na atualidade.
Começando pela trilogia do Homem de Ferro, encontramos um certo padrão entre os seus vilões. Obadiah Stone, antagonista do primeiro filme, é um acionista das empresas Stark que, apesar de atuar como braço direito do herói titular do filme, sempre invejou sua genialidade. Quando Tony Stark desenvolve a primeira versão do traje do Homem de Ferro e começa a utilizá-lo para combater o terrorismo no Oriente Médio (um tropo bem conveniente para o mercado estadunidense, diga-se de passagem), Obadiah decide produzir novas versões do traje em larga escala, e colocá-las à venda no mercado bélico internacional. Ao recusar tal projeto, Tony se coloca como um obstáculo para os planos gananciosos de Obadiah, que desenvolve uma versão mais rústica e mais brutal do traje do Homem de Ferro e acaba se lançando em um confronto direto contra seu antigo amigo e sócio. A armadura desenvolvida e utilizada por Obadiah, a Iron Monger, acaba por constituir um duplo maligno do Homem de Ferro, elemento que se tornará recorrente não apenas nesta trilogia, mas em outros filmes do MCU.
Em Homem de Ferro 2, observamos a repetição da mesma fórmula vilanesca, mas, desta vez, o rival de Tony no campo científico e empresarial, Justin Hammer, não é o mesmo personagem que encarna o duplo maligno do Homem de Ferro e se engaja em combate direto com o mesmo. Enquanto Hammer compartilha da inveja e dos objetivos gananciosos de Obadiah Stone no mercado de armas, é Ivan Vanko, o Whiplash, que, manipulado por Hammer, veste um traje semelhante ao Homem de Ferro para enfrentar o protagonista na sequência final da película. Tanto Hammer quanto Vanko têm um histórico de rejeição com diferentes membros da família Stark, e ambos são motivados por vinganças pessoais contra Tony, o que acrescenta uma dimensão interessante aos seus arcos vilanescos.
No terceiro filme estrelado por Robert Downey Jr., observamos uma mudança em relação à fórmula dos dois primeiros, onde os vilões eram rivais industriais e/ou duplos malignos do herói. Em Homem de Ferro 3, observamos um interessante desenvolvimento na trama antagonista: um terrorista oriental conhecido como Mandarim começa a atacar Tony Stark, supostamente em um ato de vingança por suas incursões anteriores no Oriente Médio. Até este ponto, parecemos estar em mais um enredo onde bondosos norte-americanos são atacados por árabes malignos, mas então, em um plot twist que desapontaria os fãs mais conservadores da série, descobrimos que o tal Mandarim não passa de um ator americano, e que os atos terroristas perpetrados no oriente médio são executados por soldados ocidentais loiros de olhos azuis (um tropo nada interessante para o mercado estadunidense) e maquinados por outro cientista ocidental, Aldrich Killian, responsável pelo experimento Extremis. Outra inovação deste filme é que tal experimento não se trata de um novo super traje semelhante ao Homem de Ferro, e, pela primeira vez na trilogia, o personagem de Downey Jr. enfrenta algo diferente de um duplo maligno. Em relação às motivações do vilão, encontramos novamente uma história de inveja, rejeição e vingança contra Tony, com Killian aparecendo como antigo rival de Stark inclusive no campo amoroso.
As fórmulas vilanescas utilizadas nesta trilogia (especialmente nos dois primeiros filmes do Homem de Ferro), se repetiriam em diversas produções do MCU: em O Incrível Hulk, o cientista Bruce Banner enfrenta Emil Blonski, um soldado que, invejando as capacidades físicas do gigante esmeralda, se transforma em seu duplo maligno, o Aberração; em Capitão América – O Primeiro Vingador, Steve Rogers também enfrenta um duplo maligno, o Caveira Vermelha, outro super soldado modificado geneticamente que atua a serviço dos nazistas; em Homem-Formiga, Scott Lang enfrenta um ex-sócio das indústrias Pym, Darren Cross, que recria a tecnologia do traje de encolhimento para fins bélicos e gananciosos; em Doutor Estranho, o herói titular encara outro mestre das artes místicas, Kaecilius, que almeja se utilizar dos mesmos conhecimentos arcanos do protagonista para fins egoístas e tirânicos; e em Pantera Negra, ainda que o vilão Erik Killmonger tenha motivações bem fundamentadas e politizadas, ele acaba por vestir um traje semelhante ao do protagonista para o embate final entre ambos.
Além deste tropo recorrente do vilão se apresentar como um duplo maligno do herói, se diferenciando dele apenas pelas motivações, em geral, mais radicais, mais violentas ou mais inescrupulosas, outra ameaça comum oferecida pelos vilões do MCU é a genérica vilania de destruição ou dominação do mundo. Em Vingadores, o vilão Loki pretende se utilizar de um exército alienígena para dominar a Terra; em Capitão América: Soldado Invernal, Alexander Pierce, um agente da HYDRA infiltrado na SHIELD há décadas, pretende usar um novo sistema de segurança para reativar um projeto nazista e dizimar dois terços da população terrestre; em Thor: O Mundo Sombrio, o elfo negro Malekith pretende usar uma joia do infinito para dominar os nove reinos; em Guardiões da Galáxia, o vilão Ronan pretende utilizar outra joia do infinito para destruir a galáxia; em Vingadores: Era de Ultron, a inteligência artificial desenvolvida por Stark e Banner inicia um plano para extinguir a humanidade da Terra; em Guardiões da Galáxia Vol. 2, Ego, o Planeta Vivo, pretende reconstruir diversos planetas à sua imagem e semelhança, destruindo-os antes; e em Thor: Ragnarok, Hela, a Deusa da Morte, pretende dominar os nove reinos e governá-los com sua tirania implacável.
Quando retiramos estes dois arquétipos vilanescos recorrentes no MCU (o duplo maligno do herói e o tirano destruidor de mundos) observamos apenas alguns vilões que tem personalidades, histórias, trajetórias, motivos e objetivos realmente bem desenvolvidos. Falemos então do próprio Loki, no primeiro Thor; do Barão Zemo, de Capitão América: Guerra Civil; do Abutre, de Homem-Aranha: De Volta ao Lar; e também do Erik Killmonger, de Pantera Negra, que, apesar de entrar no arquétipo do duplo maligno usado de maneira metodológica nos filmes do MCU, acaba tendo um arco mais maduro do que os outros vilões citados nesta seção.
O primeiro Thor, dirigido pelo cineasta e dramaturgo Kenneth Branagh, nos traz em Loki um vilão extremamente humano, que maquina grandes planos e traições com o único objetivo de conseguir a aprovação e a admiração de seu pai. Apesar de resoluto em seus desígnios, Loki se nos apresenta como um vilão multifacetado que, se por um lado rompe todas as barreiras morais para executar seu plano contra a raça dos gigantes de gelo, por outro, revela uma devoção incondicional a Odin, seu pai adotivo, e uma inquebrantável afeição pelo irmão Thor, alvo do amor paterno que o deus da trapaça tanto almeja. Em seu arco dramático, observamos como Loki procura evidenciar a arrogância e a irresponsabilidade de Thor ao mesmo tempo em que cria um conflito entre dois reinos para elevar-se heroicamente durante a resolução do mesmo. Nesta trama onde herói e vilão apresentam personalidades e objetivos diversos, mas igualmente complexos, sensíveis e críveis, conhecemos um dos vilões mais marcantes e cativantes de todo o MCU.
Helmut Zemo, vilão de Capitão América: Guerra Civil, também comete assassinatos, um atentado terrorista e um jogo conspiratório de acusações falsas e revelações de segredos para executar sua vingança contra os Vingadores. Mas, apesar de romper com as barreiras morais que o definem indiscutivelmente como um vilão, o sobrevivente de Sokovia não almeja a destruição ou a dominação mundial, mas a destruição dos próprios Vingadores. Tendo perdido sua família durante a desastrosa intervenção dos heróis mais poderosos da Terra em Era de Ultron, Zemo quer revelar as falhas, os crimes e as vilanias dos próprios super-heróis, colocando-os uns contra os outros em um embate onde todos estão moralmente comprometidos. Seu plano é certamente bem-sucedido, uma vez que, ao final da trama, parte dos heróis são criminalizados e terminam foragidos, enquanto outros mostram suas facetas mais tirânicas, aliando-se ao governo para perseguir seus antigos aliados. Devido a essa grande reflexão crítica levantada sobre a atuação e a conduta dos Vingadores, Zemo aparece como um dos vilões mais interessantes deste universo cinematográfico.
Adrian Toomes, o Abutre, vilão de Homem-Aranha: De Volta ao Lar também se destaca entre os vilões do MCU ao levantar uma interessante crítica às implicações sociais dos movimentos monopolizadores de grandes corporações como a fictícia Stark Industries. Relegado ao desemprego e à pobreza depois de ver seus contratos públicos autoritariamente revogados pela mega empresa de Tony Stark, o personagem de Michael Keaton não sabe o que fazer para sustentar sua família e seus colaboradores. O rancor e o ressentimento em relação a Tony Stark, bilionário responsável por privar-lhe de sua única fonte de renda, e em relação a uma sociedade onde grandes tubarões do capital tem apoio legal e oficial para destruir concorrentes menores indiscriminadamente, levam Toomes à vida do crime, mas, antes de se tornar um mero supercriminoso equipado com tecnologia alienígena, o personagem mostra sua fidelidade aos seus empregados e à sua família, em um arco vilanesco que nos parece sempre plausível e, de certa maneira, justificável.
Finalmente, Erik Killmonger, de Pantera Negra, é outro vilão que, apesar de romper as convenções morais e legais do mundo ocidental em sua jornada pessoal, revela interessantes motivações para empreender tal jornada. Membro exilado da linhagem real de Wakanda, Killmonger pretende reclamar seu direito ao trono do reino afro-futurista, não apenas para “dominar o país e governá-lo com punho de ferro”, mas para corrigir as injustiças sociais sofridas por todos os afrodescendentes ao redor do globo. Indignado com o fato de Wakanda guardar toda a sua riqueza e o seu desenvolvimento tecnológico apenas para si e para os seus, o vilão interpretado por Michael B. Jordan tem como objetivo final dividir toda esta herança econômica e cultural com todas as comunidades africanas e afrodescendentes do mundo. Apesar de sua revolta se manifestar de formas radicais e violentas, o suficiente para qualificá-lo como vilão junto ao público, Killmonger acaba por mostrar que o justo e benevolente rei T’Challa precisa evoluir muito em termos de altruísmo e equidade não apenas para com outras nações africanas, mas para com toda a humanidade.
O fato de destacarmos apenas quatro vilões do MCU como grandes antagonistas em termos de complexidade dramática não é fazer pouco das outras produções cinematográficas deste universo já celebrado diversas vezes tanto pela crítica quanto pelo público. Basta lembrar que, em todos os cinco filmes do universo cinematográfico da DC, sempre encontramos vilões pertencentes ao arquétipo de destruidores de mundos: seja o General Zod, de Homem de Aço; a dupla Apocalipse/Lex Luthor de Batman v. Superman; o Incubus de Esquadrão Suicida; o Ares de Mulher-Maravilha; e o Lobo da Estepe de Liga da Justiça, todos, até agora, se mostraram carentes de motivações e arcos efetivamente convincentes.
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Eduardo Gerdiel Batista Graça graduou-se em letras português-inglês pela Universidade Federal Fluminense. Obteve título de mestre, pela mesma universidade, ao defender a dissertação “O corpo político e o corpo elétrico: mecanismos de poder e linhas de fuga em O morro dos ventos uivantes e Mrs. Dalloway”. Atualmente cursa o doutorado em literatura comparada na mesma instituição, com a pesquisa “Linhagem Beatnik: precursores e legatários”.