É um pouco difícil escrever, quando hoje, momento em que dedico para fazê-lo, poucos dias se passaram desde da execução de Marielle Franco, quinta vereadora mais votada do Rio do Janeiro, mulher, negra, mãe, ativista dos direitos humanos e representante de sua comunidade na câmara e outros mais 46 mil eleitores. Na verdade, não é difícil escrever, difícil é não escrever, não bradar, não usar a palavra: o verbo que gera luz no início. Usar a palavra aqui e agora não é só necessário, é inevitável.
Os dedos passam pelo teclado e o que vem é o político, é o social, é o racial, e também o linguístico. Vem na mente tudo aquilo que pode estar errado, que precisa ser mudado, que precisa de ação. E verbo é ação, ainda que mais concepções lhe tenham sido dadas, verbo continua sendo ação. Falar, continua sendo ação. Quem fala, quem escreve, quem sobre algo diz: age. Ainda que um agir sem expectador, um falar sem ouvinte, sem plateia, o famoso “jogar pérolas aos porcos” continua sendo ação.
O som é silenciado no lábio que se mexe, na boca se abre e grita. Nada é ouvido, aliás, ouve-se certo barulho, um zumbidinho de mosca, mas nada é entendido, compreendido. Escutado. E por quê? Porque não falamos a mesma língua.
Não querem nos entender, compreender, escutar. Não querem. Porém, mais que isso, não conseguem. Não falamos a língua deles, não falamos a língua de Copacabana ou dos Jardins. Não falamos a língua da calma, não falamos bossa-nova, dos telejornais e programas dominicais, não falamos a língua da paz.
Não conhecemos a paz, nem a universalidade dos seus símbolos, da sua linguagem. Ela não mora na favela, ela não é nossa vizinha, nem faz parte do nosso dia-a-dia. Marcelino Freire já dizia: “a paz é muito branca. A paz é pálida”. A língua da paz não cola aqui na quebrada.
Desde sempre quiseram calar nossa voz, nosso grito, língua e identidade, os pretos que aqui chegaram, arrastados, amarrados, também foram amordaçados. A proibição, a separação: Quem colonizou não deu ponto sem nó, separou – sem dó – famílias e grupos étnicos, e para quê? Para que não falassem, para que vissem no seu semelhante um estranho.
Sempre a correta, a língua do branco é a melhor, a mais culta, a mais calma, a mais articulada. Mas nem ele, o dominante, fala através dela: unicamente propaga, idealiza, impõe. Seu motivo é falso e seu discurso vazio. Há seculos, uma política de uma unidade nacional proibiu, pautada em lei, dialetos e línguas que não o Português. Português que nunca foi nosso. Tentativa de unidade que mascarou – e ainda hoje o faz – um projeto de segregação e domínio sobre determinado sujeito e sua voz. A intenção sempre foi segregar, ditar o certo, o correto, mas não fazê-lo.
A voz do dominante é eloquente, uniforme e pacífica. Mas pacificidade precisa de sangue, sangue de quem a contraria. Nossa língua, a língua do dominado, não é pacífica, nem clama por paz, nossa língua é resistência, é mestiça, é crioula no significante e no significado. Reflete não o sangue de outrem nas mãos, mas o sangue de feridas expostas que desejam ser vingadas.
O grito sufocado por grilhões outrora, hoje resiste à tentativa de ser sufocado pela bala, pela algema, pelas barras de ferro e pela margem onde nos colocaram. Colocaram nossos corpos, nossos seres, nossas almas à margem, e dela fizemos nosso lar, na periferia fizemos casa, somos casa, e de lá não pretendemos sair.
Mas a voz quer ser ouvida, e essa, sim, sai da periferia, sai da margem. O corpo fica e a mensagem anseia chegar ao centro, à lagoa, ao jardim, ao poder, à lama. Continua na margem e pela margem, mas transcende. É preciso. A voz do dominado, ainda não escutada, é ouvida, como barulho, como zumbido de moscas que deixam de velar os cadáveres negros e partem para reivindicar a quebra de um ciclo e o porquê dos cadáveres.
Nos recusamos, porém, a falar a língua deles, a apresentadora das manhãs pede para respondermos à violência, com amor. Não. Fala-se do que vive, do que se presencia, e que se presencia ainda são cadáveres negros:
– Parem de nos matar, grito. Só enxergam os meus lábios se movendo.
Nossa voz, nossa língua que é real, ao mesmo tempo realidade, ocupa espaços, cadeiras, microfones.
– Parem de nos matar, gritamos. Começam a ver que existimos.
A língua proibida desafia a lei da Casa Grande e fala na forma que não querem ouvir sobre o conteúdo do qual não querem escutar:
– Parem de nos matar, denunciamos. Começam a ver que resistimos.
Esse grito não pode mais ser ignorado, pois agora é denúncia, aponta os males como sempre apontou, porém dá nome e face ao seu carrasco. A língua está à margem, o barulho é da margem, mas direciona-se agora ao centro, ao topo, à câmara… à mesa dos abastados. Esse grito não pode mais ser ignorado.
Marielle e outros que vieram antes dela falaram a língua da resistência, a língua proibida, a língua que não querem que seja escutada, entendida. A fala, a denúncia. A mensagem de tanto zunir, de tanto querer se fazer ouvir, irritou, incomodou, aborreceu. E a mosquinha, que apenas fazia seu zumbido ao redor da mesa dos abastados, uma hora fez pior: Pousou.
A mosca que pousa na sopa, por vezes, morre. Porém o estrago no banquete já está feito.
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Marcos Ramos é cria da periferia de Diadema – SP, Marcos é formado em Estudos Lusófonos pela Universidade de Coimbra, Licenciado em Letras -Português/Francês pela UNESP – Assis. Atualmente é mestrando em Literatura e Vida Social também pela UNESP e se encontra quebrado financeiramente, pulando hostel em hostel, por conta de um estágio de pesquisa não remunerado que decidiu fazer às cegas na Sorbonne.