VOCÊ É MINHA SPECIAL K – ROMULO NARDUCCI

Ontem

Júlio conheceu Emily numa pista de dança ao som de Special K¹, da banda Placebo. Uma rápida apresentação após longas trocas de olhares e a música tocou quando começaram a se beijar envoltos às luzes coloridas e à fumaça que tomava conta do ambiente tornando tudo ainda mais onírico. O gosto misturado de cerveja, bala Halls preta e tabaco, à excitação do primeiro toque. Ele duro. Ela melada. Quentes. Ambos fervilhando para se sentirem por inteiro, pele com pele.

Não demorou muito para se reencontrarem e viverem noites inteiras de volúpia, ébrias e felizes ao som de The Cure, The Cardigans e David Bowie. Mas era Special K, da Placebo, o tema com o qual sempre iniciavam o ritual. Era o hino profano do casal. Justamente a letra que trazia trágicas estrofes em inglês na qual nunca deram dimensão ao seu contexto literal. Júlio só fora dar conta disso quando um dia, após uma das primeiras brigas fatídicas e vergonhosas na frente de amigos num bar da Cinelândia, ao chegar em casa parou por acaso para ouvir a música com uma atenção mais apurada no seu conteúdo literal, e o seu inglês intermediário percebeu que tudo aquilo que julgavam belo, tratava-se tão somente de um mau presságio que entoava:

Sem hesitação, sem demora / Você vem como Special K / Assim como eu engoli metade das drogas / Nunca quero colidir

Sem hesitação, sem demora / Você vem como Special K / Agora você volta e não exige / Estou numa areia movediça (…)

Depois de conhecer a verdade, ainda passou imerso por cinco longos anos de um relacionamento destrutivo, de uma dependência emocional cheia de armadilhas de uma paixão acerada e explosiva, que somente chegou ao fim, quando chegaram às vias de fato.

No peito de Júlio, ficou para sempre a marca da cicatriz, talhada em meia lua pelo fundo de uma garrafa de cerveja que Emily, num ato de ciúme doentio, riscou por sobre a sua camisa preferida, deixando enfim o legado do adeus.

Enquanto levava os pontos no Pronto Socorro, Júlio amaldiçoou a paixão e praguejou com forças contra aquela música leviana. A partir daquele dia, um ano depois, nunca mais falou ou sequer esbarrou com Emily. Mas a sua imagem ainda cortava a sua memória, como aquele caco havia cortado o seu peito.

 

Hoje

Vinte e duas horas. A festa de Rock Alternativo ainda não havia começado. Aos poucos o público ia chegando e formando uma fila que começava a crescer na calçada em frente da boate. Sentiu certo orgulho ao ver o estilo do pessoal que divergia do contexto estigmatizado dos cariocas em geral.

Em pleno verão do Rio de Janeiro, uma turma vestida de preto desfilava pela quadra ao redor da boate, com roupas temáticas de bandas e adereços exóticos, algumas pessoas pareciam ter saído de algum clássico cyberpunk, um outro grupo de rapazes estava num estilo mais informal com suas calças desbotadas e camisas xadrez de botão. Sentiu-se como há muito tempo não se sentia, inserido ao contexto. Gabando-se de sua camisa nova com a estampa da banda The Smiths, sorriu com seus dentes largos de satisfação e acomodou-se em uma das mesas espalhadas pela calçada, da birosca quente e fedorenta estilo cult chamada de Pub’culo.

A Pub’culo possuía apenas um balcão cheio de luzes pisca-pisca coloridas ao estilo de puteiro de quinta categoria, uma prateleira ao fundo com todo tipo de bebidas quentes e um freezer repleto de cerveja barata. Mas o que atraía o público a fazer hora naquela espelunca era Jukebox Mp3 que ficava na entrada da porta, virada para a rua tocando tudo que era música Indie Rock.

Subitamente tomou um susto ao ver chegar à fila uma mulher morena, alta, cabelos castanhos na altura do ombro, com um corpete preto que havia um ousado decote traseiro com amarrações vermelhas, usava também uma calça de couro justa e uma bota de vinil. “Emily?” Pensou. Ela estava de costas, o que deixou o seu coração cheio de dúvidas. Sentiu um nó na garganta e o ar faltou em seus pulmões. Aos tropeços, levantou-se a fim de amenizar a angústia e foi até o balcão pedir uma cerveja com a voz embargada. Tentou se espreitar mais para o canto, buscando manter-se em posição privilegiada para poder espionar sem ser notado. Ela conversava com um grupo onde um rapaz de cabelos longos se aproximou e demonstrou-se um pouco mais íntimo. Num gole matou a longneck e pediu outra cerveja. A jukebox começou a tocar My Life is a Succession of People Saying Goodbye, na mesma hora olhou de cara feia para a máquina e resmungou: “Obrigado, muito obrigado mesmo, senhor Morrissey!”

A boate abriu e todos começaram a entrar. A suposta Emily não se virava, o rapaz a abraçou por trás dificultando ainda mais a sua identificação. Júlio sentiu um misto de ódio e tristeza ao vê-los entrarem na festa que havia escolhido para celebrar a sua liberdade. “Que liberdade?” Se indagou. Como poderia estar livre se ainda sentia resquícios daquela paixão doentia? “Não pode ser ciúmes, não pode, é apenas…” Tentava consigo mesmo argumentar ou explicar aquele nó cego dado em sua autoestima. Júlio decidiu não entrar e ficou bebendo no Pub’culo. Gastou dinheiros colocando saudosismos na Jukebox, quase chegando às lágrimas e uma mistura de uísque e cerveja o fizeram a começar uma indagação introspectiva sobre Amor e Paixão e chegou à conclusão de que tudo é tudo e nada é nada.

Sentia-se seguro, confortável, parecia ter voltado ao útero de sua mãe, quando sentiu uma sacudidela brusca em seu ombro. Vozes ecoaram ao longe. Tentou não ligar para aquela violência que tentava arrancá-lo de tamanha paz. Arfou e tentou abrir os olhos. Mas voltou a querer se embrenhar naquele escuro silente e pacífico. Um terremoto parecia, e a voz ficou mais alta e clara. “Emily!” O seu cérebro pareceu dar um clique e deu um salto para trás, tentando se equilibrar para não cair de sua cama. Até que ainda com a visão ainda embaçada, viu que não estava em sua cama e sim numa calçada. Já havia amanhecido. Teve uma confusão mental, não conseguia lembra-se de como havia chegado ali. Ao erguer o seu rosto para cima, a fim de ver quem o teria despertado da sarjeta:

“Emily?!”

“Júlio, o que faz aqui, bêbado dormindo na calçada em frente do meu prédio?” Disse Emily, com espanto.

Ela estava linda, parecia um anjo. Não estava com os cabelos curtos na altura dos ombros, seus cabelos estavam longos e tingidos de preto. Vestia uma blusinha branca e um shortinho florido e carregava uma sacola de pão.

Sentiu um alívio.

FIM?

*
Romulo Narducci (@romulo_narducci) é poeta, escritor, compositor e guitarrista da banda de rock Mangusto. Um dos idealizadores do evento Uma Noite na Taverna, realizado em São Gonçalo de 2004 a 2016. É autor dos livros de poesia “Orações Licenciosas (Ou Cancioneiro Erótico)” (2008) e “Tudo Que Morre é Consumado” (2010) e do livro de contos “Angustiolândia (Ou de Bares, ruas e bordéis)” (2015), além de ter participado de diversas coletâneas de contos e poesia.

¹Special K –  Ketamina