UMA PRIMAVERA QUE VEM – CHARLES BERNDT

Era primavera, mas chovia, como chovia. Era primavera e chovia como se fosse outono, ou inverno. Os vidros frouxos da janela balançavam, tremiam-se, debatiam-se. Fernando estava incomodado. ”Droga de vento, droga de vida”, disse para si mesmo depois de apagar o cigarro num vaso onde uma ressequida e insistente violeta tentava sobreviver. Fechou a janela, sentou-se no sofá, não ligou a TV, preferiu ficar olhando para a parede. Os seus olhos se detiveram numa velha tapeçaria, dependurada na sala do seu apartamento, onde se via reproduzida uma bela cena familiar: sob uma grande árvore, um frondoso canhoeiro, em meio a savana africana, um casal de leões descansava. Ela, a leoa, apoiada nas duas patas, olhava para frente, atenta a qualquer movimento estranho na relva: um coelho, um veado, um antílope. Ele, o rei da selva, dormia, esticado e despreocupado, os olhos fechados, confiante de que sua fêmea acharia facilmente uma presa, o alimento do dia. Aquela tapeçaria pertencera à sua mãe, Fernando a via desde criança, mas só agora olhara de fato para ela, só agora parou para observá-la. A tranquilidade e a paz dos grandes felinos soaram como um insulto, um tapa na cara, um riso de deboche. Sentia-se incomodado, raivoso, os olhos tremiam e as mãos estavam fechadas, cerradas. Talvez sentisse inveja, talvez quisesse estar sob aquela árvore, tranquilo, com a cabeça no colo de alguém. Lembrou-se de alguém. Fumou novamente, vestiu um casaco e o frio não passou.

Chovia e Fernando voltou a sentir raiva da chuva. Há duas semanas que chovia assim, sem parar. Ele, que trabalhava em casa e morava num confortável apartamento de um confortável edifício, localizado num confortável bairro, além da privação dos passeios que costumava fazer pelo parque durante as manhãs, não podia dizer que a chuva prejudicava, em grande escala, a sua vida. Mas tinha de pôr a culpa em alguma coisa, tinha de ter algo para amaldiçoar e do que reclamar. Senão explodiria. Sejamos complacentes com o rapaz, ele está sofrendo. Sofrendo de amor, é preciso dizer ainda.

”Eu te odeio”, disse ele para um homem cujo crime único era o de não amá-lo, quer dizer, o de ter deixado de amá-lo. Estava agora em frente ao seu computador. Torturava-se: na tela do computador o rosto do criminoso, sorridente e feliz, olhando-o com doçura. Apertou o botão direito do mouse, outra foto aparecera: os dois abraçados e felizes, no zoológico. Lembrava bem daquele dia, foi há três anos, no seu aniversário. Atrás deles, uma gigantesca girafa, melancólica, parada, olhando para o nada. Aquela girafa não parecia inocente, parecia triste, parecia entendiada, parecia conhecer um pouco da vida, da solidão que é a vida. E os dois ali sorrindo, abraçados diante dela, tão tolos, tão inocentes.

”Chega. Não posso mais fazer isso comigo”, fechou a tela do computador, levantou-se como um animal acuado e feroz. Foi até a janela, de novo. Chovia ainda, mas agora um pouco mais fraco. Fernando decidiu-se. Não ficaria em casa como um animal enjaulado. Iria levar seu ódio para passear. Pegou o seu casaco marrom no cabide, vestiu suas botas, bateu a porta e saiu.

Começou a caminhar pelos quarteirões da cidade, os passos largos, atravessava as ruas e nem sequer reparava nos semáforos. Queria desafiar a morte, ser violento. Teve sorte, chegou vivo e ofegante numa praça larga, cercada por árvores e com uma velha figueira no centro. A chuva ficara ainda mais fraca, as pessoas caminhavam com menos pressa, olhavam para os lados, evitando as poças. Fernando seguia com raiva, olhando para o chão, as mãos fechadas nos bolsos. ”Eu te odeio, eu te odeio”, dizia para si quando via um homem parecido com aquele que amava, atravessando a rua ou parado a fumar numa esquina qualquer.

Mas de repente Fernando parou, olhou em volta e reparou que havia um certo movimento no centro da praça, um pequeno grupo de pessoas amontoava-se ali, ”O que está a se passar?”. A raiva diminuiu, seus tentáculos brancos de espuma perderam espessura, ele a engambelou com curiosidade. Quando chegou perto o bastante, entendeu o que se passava. As pessoas haviam parado para ver e ouvir três velhinhas que cantavam na praça, sentadas em banquinhos de madeira, os rostinhos simpáticos e as vozes não se podia dizer que não eram agradáveis. Fernando relaxou, sentiu o corpo descontrair-se, tirou as mãos dos bolsos. Ficou a ouvir aquela singela cantoria. Certa paz enfim.

Ratoeira bem cantada
faz chorar, paz padecer;
também faz um triste amante;
o seu amor esquecer1

Então, em algum lugar distante, dentro de si, uma fera se remexia, uma fera que temia a morte – um búfalo, um touro, um minotauro talvez. Algo dentro dele se desestabilizava, modificava-se, algo acabava. Quando ele colocou uma nota de dois reais na pequena caixinha de madeira que havia perto dos pés de uma das velhinhas, um animal negro e grande foi levado pela enxurrada, desapareceu, afogou-se, e ninguém ouviu os seus mugidos. E depois a chuva parou, não voltou mais naquele dia. O céu continuou cheio de nuvens e cinzento, a frente fria continuaria sobre a cidade, mas dava uma trégua para que os mortais pudessem respirar um pouco, enterrar seus mortos, esperar o sol e a primavera que, mesmo atrasada, haveria de vir, haveria.

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1 Cantiga do folclore açoriano, muito cantada em Florianópolis e em regiões do litoral catarinense, de origem e cultura açoriana.

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Charles Berndt, (Instagram) é brasileiro e ilhéu de Florianópolis, tem 26 anos, é professor, estudante de doutoramento em literatura da UFSC e metido a poeta, vulgo apanhador de palavras.