VILÕES DA ARQUITETURA – NATALIA DE’ CARLI

Qual é o bem que desejamos que vença?

Em tempos difíceis custa-nos pensar que o bem possa vencer o mal. Mas que mal é esse que tem que ser derrotado e qual é o bem que desejamos que vença?

Durante quase toda a história das cidades e, consequentemente da história da arquitetura, o processo de projetar e edificar o ambiente construído-  organizar, ordenar, agenciar e desenhar o espaço físico habitado pelo ser humano -, contou com a protagonização de muitos atores que, desempenhando diferentes ações, transformaram a vida e a forma como nos relacionamos e produzimos o espaço.

Se pararmos para refletir sobre o talvez já expirado conceito vitruviano da arquitetura, o espaço construído deveria por excelência apresentar três elementos fundamentais: a firmitas (que se refere à estabilidade, ao caráter construtivo da arquitetura/resistência), a utilitas (associada à função do espaço) e a venustas (associada à beleza e à apreciação estética).

A mesma história da arquitetura cataloga uma vasta lista de referências arquitetônicas, edifícios, monumentos, palácios, grutas e abrigos, casas e fortalezas, templos e santuários, praças, parques, ruas, que vão desenhando e legislando a rotina e o ir e vir de milhares de pessoas. Determinando onde parar e onde seguir, onde entrar e por onde sair, por onde olhar: a janela, a porta, o corrimão, a escadaria, paredes, tetos, muros e grades, o concreto, o tijolo aparente, a telha, o cobogó, as texturas, a verticalidade, a horizontalidade, a perspectiva, o ponto de fuga, o traço reto, a pluma escura, o papel em branco.

E deste papel em branco surge a ideia – brilhante, iluminada, inquestionável – de como nós, reles mortais, desempenharemos nossas funções no espaço.  Nasce um semideus, o arquiteto legislador do espaço, normatizador, planejador, herói. A história da arquitetura nos conta sobre esses heróis, semideuses, bípedes, homens da elite, ocidentais ilustrados, argutos, clarividentes, sábios. Heróis como Le Corbusier, Mies Van Der Rohe, Louis Kahn, Barragán, Niermeyer, Foster e Siza, Miralles e Rem Koolhaas, Calatrava, entre outros tantos heróis. Vencedores, imbatíveis, mitos da arquitetura moderna e contemporânea.

Mas bem, se esses são nossos heróis arquitetônicos e essas são as heroicas arquiteturas construídas, quem seriam então os vilões da arquitetura na contemporaneidade, e como seus espaços ‘vilões’ vem sendo configurados?

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O principal vilão da arquitetura contemporânea, a meu ver, diferentemente dos semideuses heróis da modernidade, não são bípedes, nem se pode tocar com as mãos. Certamente exerça seus poderes ocultos no controle do mundo e da economia global através do capital, seus tratados e tendências. Por fim, legisla através de suas dinâmicas econômicas, a forma das nossas cidades e a forma como nos relacionamos no espaço urbano.

Porém, diferentemente da unicidade e individualidade dos semideuses heróis, o vilão da arquitetura contemporânea se aliou a uma rede nefasta de desprezíveis, vis, aqueles que realmente levam a cabo o conjunto de suas arquiteturas. Nessa rede malvada e hierárquica de vilões vemos os gestores e administradores urbanos, políticos sem qualidades democráticas nem senso de justiça social, construtores e promotores de dúbia reputação, construindo cidades cada dia mais desiguais, excludentes e hostis.
E nessa cadência, essa rede de vilões vai leiloando os espaços que deveriam ser de uso público e comum, produzindo cidades cada vez mais segregadas, limitadas, normatizadas e divididas. Menos praças e mais cercas e muros. Menos encontros, mais individualidade, privacidade e controle.

Encontramos, também, os vilões nas leis e planos urbanísticos votados e aprovados. Leis e planos que ampliam desigualdades, que se rendem aos interesses privados, que violam direitos, que excluem comunidades, que marginalizam setores sociais, que estigmatizam indivíduos, que ampliam a violência, que dispersam e usurpam a produção coletiva e social.

Sem embargo, a ironia dos grandes vilões da arquitetura contemporânea está quando – dentro de sua lógica de transformar as cidades em meras vitrines para suas transações econômicas e seus habitantes em meros consumidores alienados e adestrados pela vida solitária das redes sociais -, confabulam a contratação dos semideuses heróis para vender a imagem da cidade do futuro, a cidade, que só um semideus pode desenhar: a cidade vilã.

Deslumbrados com a ideia de ter seus traços concretizados na paisagem, os semideuses heróis obedecem rigorosamente seu mais novo cliente. Segue seu programa sem questionar suas leis, nem quem irá construir sua obra prima. Distanciam-se dos usuários, daqueles que deveriam necessariamente participar do processo, já que são os que realmente utilizarão e produzirão suas vidas sobre aquele edifício ou cidade a se erguer. E nesse afã criativo e vaidoso, o semideus herói inicia o traço firme no papel em branco.

Mas bem, são os semideuses heróis também vilões ou são simplesmente manipulados para promover as agendas próprias dos vilões? Vilões e heróis, quem faz o bem e quem faz o mal?

Buscando forças otimistas nas visões de mundo não-binárias de bem e de mal o sopro de esperança que vislumbro está na parte restante, naquilo que não são extremos, no que nem é herói nem vilão. A esperança está na busca por novos métodos, novas formas, o outro lado, o outro jeito de pensar e produzir a arquitetura das nossas cidades. Encontrar espaços que ainda não foram ocupados pelos vilões e nem pelos semideuses e se apropriar deles. Montar resistências. Basear-se no conceito clássico vitruviano e buscar redes de resistências firmes (firmitas), ampliar as funções e os usos dos espaços, convertendo-lhes em algo comum e de todos; expandir a função social e democrática desses espaços (utilitas) para que incluam os diferentes, que reduzam desigualdades; e garantir que a estética (venustas) não seja privilégio dos mais abastados, porém que seja livre, democrática e construída coletivamente.

Ampliar esses espaços, ocupá-los de usos sociais, participar dos movimentos pela reforma urbana, pela mobilidade, pela igualdade, pelo espaço público, reconquistar a cidade perdida, politizar os discursos, conviver em comunidade, intercambiar conhecimentos, fortalecer o comércio local e ser partícipe da vida urbana, disseminando redes de resistências. Esse é o bem que deve ser perseguido e essa é a cidade pela qual quero lutar.

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Natalia De’Carli é doutora em arquitetura e mestre em cidades e arquitetura sustentável pela universidade de Sevilha. Atualmente vive e trabalha como arquiteta e consultora em Londres e acredita que um outro mundo é possível.