DISTANTE

COLUNA NO MEU TEMPO 

DOUGLAS MOREIRA

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Ser pai é muito difícil.

Iniciar esse texto, assim, com um clichê clássico, talvez seja a melhor forma de falar sobre algo que realmente é muito difícil: criar uma criança.

Durante muito tempo, ainda sem filhos, você ouve de todas pessoas ao seu redor que já tem seus rebentos, que a sua vida vai mudar quando você tiver os seus, que seu coração passará a bater do lado de fora, dentro daquele pequeno ser, ou que suas noites nunca mais serão as mesmas, seja quando o pequeno ou pequena está doente, exigindo de você aquela sentinela permanente, ou quando já dorme a noite toda, mas ainda assim seu sono é levado como num stand by permanente porque a qualquer momento dum pesadelo vai surgir um choro desesperado.

Criar filhos envolve inúmeras decisões diárias: Pensar em quando e de que forma você vai liberar o açúcar e, após liberado, tentar fazê-lo compreender porque ele não pode comer um pedaço de bolo de chocolate uma hora antes do jantar. Você se sentirá como se estivesse em meio à uma intrincada negociação do destino do mundo quando tiver que explicar que, em algum momento antes do banho, ele terá que encerrar a brincadeira e, mesmo após um combinado bacana feito há apenas dois minutos de que serão só mais “cinco vezes” de duplos twists carpados em cima da cama do papai e da mamãe, um choro dramático e desesperado tomará conta do quarto, acompanhado de incontáveis “Só mais um pouquinho!” e muito esperneio enquanto você o carrega para o box porque ele se recusou pela milésima vez de encerrar o momento acrobático.

A quantidade de “nãos” que você fala, em algum momento, vai lhe incomodar. Possivelmente aí, você dará um salto de quatro casas à frente nessa coisa que é ser pai. Verá que a criança precisa fazer coisas com as quais aprenderá o que são consequências. Precisa cair no box para aprender que a água e o sabão são uma mistura fatal quando se tenta saltar como um coelho; que aquele galho encontrado na rua e magistralmente transformado em espada vai para o lixo após a segunda ameaça de acertá-lo na cabeça da irmã pequena. Crianças precisam de limites, mas também precisam de uma certa folga para que nestes pequenos erros do cotidiano consigam formar a base que os ajudará a lidar com grandes erros na vida adulta.

Você se preocupa com a educação dos seus filhos, com a alimentação balanceada, com o que ele está vendo na TV, com o plano de saúde, com as vacinas, com a formação do seu caráter, com o consumismo, você se preocupa com tudo! Realmente – olha o clichê novamente – criar filhos é muito difícil.

Sim, muito difícil. Mas a sua preocupação diária certamente não é se esconder para que uma bomba que venha a cair perto de onde você mora não mate a você e seus filhos num milésimo de segundo. Tenho uma certeza absoluta que não passa pela sua cabeça que uma nuvem de gás sarin ou de cloro puro possa entrar pela janela da sua casa, sufocando os seus pequenos, causando-lhes convulsões e sangramentos, e lhes tire a vida sem dar qualquer chance de defesa. Criar filhos é muito difícil, mas criar filhos na Síria ou em qualquer desses países em guerra civil de ordem política ou religiosa pelo mundo deve ser um tanto ainda mais complicado, não?

De forma alguma a ideia é dizer “Olha como você é feliz e não sabe, porque há gente morrendo num país em guerra civil e você está reclamando da conta de luz”. Não cabe comparação. Mais ainda: não é justo fazer comparação. Odeio essa conversa do “nós e eles”. Nosso cotidiano já está extremado o suficiente para fazermos apologia a esse tipo de pensamento binário. Vivemos a nossa guerra particular diária com violência crescendo de forma assustadora, balas perdidas encontrando alvos indefesos, sensação de insegurança ao ir na padaria comprar pão pela manhã, carros sendo alvejados por “dezenas de balas” (ouvi isso essa semana no rádio) no Rio de Janeiro, mas que poderia ser aqui em São Paulo ou em qualquer lugar do país. Definitivamente, temos os nossos próprios problemas. E não se trata, também, de despertar de repente para uma tragédia que acontece há anos, mas que só agora, por conta de algumas imagens na TV, conseguiu lhe atingir. O pior da tragédia de longo prazo é que vamos nos acostumando a ela e a dor vai ficando inconscientemente suportável. Endurecemos.

 Esse texto trata única e exclusivamente de uma coisa: compaixão.

Sinto um nó na garganta, entristeço profundamente quando vejo uma criança na rua pedindo esmola, passando frio, ou ainda bebê no colo da mãe, que pede esmola e, também, passa frio numa das esquinas da nossa cidade. E sinto um nó na garganta e uma tristeza sem tamanho quando vejo aquela imagem de um menino sentado na ambulância, sozinho, com pais mortos, olhando as mãos completamente ensanguentadas e sem conseguir entender o que está acontecendo. Fico me perguntando em quem essa criança se transformará? Que criança morreu ali, naquele exato momento em que encara as mãos sujas de sangue e qual nasceu no lugar? Haverá outra coisa na vida daquela criança que não seja a lembrança daquele momento horrível da sua vida, eternizado pelas lentes das câmeras de TV? Eu choro porque não consigo entender o porquê de tanta tristeza e tragédia serem injetadas de forma irremediável nas veias daquela criança.

Fico a pensar em como aqueles pais colocam a cabeça no travesseiro a noite sabendo que o teto pode desabar num piscar de olhos. Penso que deve ser desesperador não ter a quem recorrer. Eles estão completamente a mercê do destino. Cruel, diga-se de passagem. Qual será o tamanho da dor de um pai que coloca seu filho na cama a noite e não sabe se estará vivo na manhã seguinte? Qual será o tamanho do amor e da coragem que faz um pai colocar seus filhos num bote para tentar atravessar o Mediterrâneo em busca de um lugar onde serão vítimas eternas do preconceito, onde sempre serão vistos como a ralé do mundo, serão tratados como não pertencentes de pátrias “caridosas” até o fim de seus dias, mas de onde bombas não caem do céu? Talvez, tudo o que queiram é dormir com frio agarrados a seus filhos debaixo de uma ponte que certamente estará lá no dia seguinte.

É certamente utopista da minha parte querer um mundo lindo, de pessoas felizes e livre da guerra. Porém, hoje, eu gostaria que esses pais e mães da Síria tivessem a oportunidade de terem como preocupação, única e exclusiva, a difícil tarefa de negociar com seus filhos a hora do banho.

 

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Ilustração: Van Gogh