ENCONTRO DE VERÃO

Coluna | Lorca


Era verão, uma noite quente e abafada de verão. Nas folhas das muitas árvores que cercavam o sítio de minha avó, não se via menor sinal de vento. O céu estava aberto, sem nuvens, a via láctea brilhava com força e a lua exibia um leve tom rubro sobre o seu habitual brilho dourado, era como se estivesse envergonhada, sorrindo com as bochechas vermelhas para o sol que a iluminava com mais intensidade, naquela noite incomum. Eu me sentia brutalmente entediado, arrependido de estar ali, de vir passar os últimos dias de minhas férias no interior. Vovó dormia tranquila e quieta em seu quarto já há algum tempo, todos os empregados também já haviam se deitado, exceto Dona Jurema, a velha babá, que antes de tomar o caminho de seu quarto, levou-me uma xícara de chá com biscoitos até a janela, onde eu estava debruçado, olhando para a rua. ”Coma, menino, está tão magrinho, coma”. Jurema sempre me tratou como um ”menino”, seus olhos nunca perceberam que eu havia crescido, tornado-me um homem prático e responsável, que acordava cedo e bebia cerveja nos fins de semana. Agradeci com um beijo e com um sorriso, mas não deixei de dizer que estava calor demais para tomar chá. Certamente ela teria me respondido: ”Não demora a esfriar, vais ver. Aqui o tempo é assim, é doido”.

Mas, apesar do tédio e de achar que não havia nada de muito empolgante para se fazer, estar ali, naquele lugar, naquele antigo sítio, comprado há sessenta anos pelo meu bisavô e que segundo a lenda havia pertencido, no passado, a um senhor de escravos, era uma experiência interessante, que me causava calafrios e deixava meu espírito inquieto. Até hoje, quando lá vou, tenho medo das paredes daquela casa. Meu falecido avô é que gostava de contar histórias macabras sobre aquela casa e sobre aquela região. Dizia ele que, em noites de lua cheia, perto da meia-noite, quem apurasse os ouvidos poderia ouvir, perto da estrebaria dos cavalos, um choro agudo de criança. Era o choro de uma criança enterrada viva, fruto do amor proibido entre uma antiga sinhá e um escravo. Vovô contava essas histórias num tom muito sério, mas ao perceber minha cara de espanto, logo forçava um sorriso, sacudia os ombros e acendia seu cachimbo, como quem diz: ”calma, é apenas uma história, guri”. Eu sempre soube que havia um fundo de verdade naquilo que ele me contava, até hoje fico pensando na quantidade de fatos horripilantes e misteriosos que devem ter acontecido naquelas terras: escravos açoitados, índios capturados, assassinatos por motivo de honra; sem falar nas histórias envolvendo magia e criaturas sobrenaturais, como a velha história do boitatá, a lenda do lobisomem, da caipora, e tantas outras.

Perdido entre esses pensamentos, entre essas nebulosas lembranças, acabei por sair de casa, queria caminhar um pouco, tomar ar, arejar a cabeça. Caminhando sozinho na noite, naquele lugar ermo, eu tentava ignorar os meus medos e receios, dizendo a mim mesmo que não havia nada a temer. Era uma noite calma, tudo estava calmo, quieto demais e, quanto mais caminhava, mas eu tinha a impressão de estar completamente só, como se o mundo todo estivesse sob um encantamento, o tempo estivesse congelado e todas as pessoas e seres dormissem. Essa ideia só me saiu da mente quando vi, ao longe, uma enorme coruja cinzenta, pousada sobre um velho pé de eucalipto, piando melancolicamente no escuro daquela noite estranha.

Continuei a caminhar sem pressa, com as mãos nos bolsos, olhando para trás de vez em quando, como se quisesse me certificar de que não estava muito longe de casa. Percebi que me aproximava da parte do sul do sítio, onde há um pequeno riacho, que serve de fronteira, dividindo as terras que pertencem à minha família da densa floresta que cerca toda aquela região. Sentia, misteriosamente, de uma forma que não sei explicar, que algo me empurrava em direção à floresta, uma força estranha me implorava para seguir em frente, caminhar para dentro daquela mata, onde talvez eu encontrasse o que procurava – eu não sabia exatamente o que estava a procurar, apenas deixei meu corpo entregue às minhas pernas, tinha a sensação de que algo me controlava, de que era uma marionete.

Cheguei, finalmente, ao modesto riacho. Olhei em volta, atravessei a pontezinha que dá para o outro lado, e lembrei-me das vezes que vinha ali com meu pai e meu irmão mais velho, onde pescávamos gordos e coloridos pacus. Respirei fundo, acendi um cigarro, sentia-me mais relaxado, o ar perto da floresta era mais suave, já não sentia calor. A primeira coisa que me ocorreu foi voltar para casa, deitar-me, ler um livro. Mas parte de mim queria o contrário, queria entrar naquela mata, olhar as árvores, os caminhos escuros e perigosos daquela floresta. Decidi que não haveria mal nenhum em ceder a essa vontade, entraria apenas um pouquinho, iria apenas sentar embaixo de alguma árvore, não me demoraria. As árvores da borda da floresta são grandes, altas, velhas e com os galhos muito encurvados, quem olha de longe é capaz de imaginar que há ali uma espécie de portal mágico, pórtico secreto. Por alguns segundos acabei por me distrair, enquanto cheirava uma pequena flor, e não me dei conta de que havia uma pequena depressão no terreno. Escorreguei violentamente pela pequena ladeira de terra, sujei a roupa e ralei os joelhos em uma pedra. Mas não era nada grave, nada que me fizesse desistir, afinal, havia um motivo para estar ali… foi o que concluí depois, pelo menos.

Recompondo-me da queda, prossegui em minha provinciana e humilde odisseia. Reparei no quão escura e densa era aquela floresta durante a noite. A verdade é que fazia mais de dez anos que não visitava aquele lugar, não era de se assustar que as árvores tivessem crescido um bom bocado. Contudo, era visível que aquela parte inicial da floresta havia sido tocada pelas mãos dos homens. Via-se, por todos os lados, árvores e plantas cortadas, caminhos e trilhas que seguiam em direções diversas, para não falar na ausência de cipós. Certamente havia muita gente que visitava aquele lugar em busca de diversão, sobretudo pessoas interessadas em caçar animais – lembrei-me mais uma vez de meu falecido avô contando sobre as pacas, as saracuras e os tatus que ele capturava em suas armadilhas.

Com o tempo, após acostumar-me à escuridão da floresta, comecei a perceber sons e coisas se movendo. Vi muitas aranhas, ardilosas engenheiras de teias frágeis, um ou outro pássaro, temeroso, com a cabeça sob as asas, muitas mariposas, grilos, gafanhotos e também uma espécie de roedor correndo entre as folhas secas, no chão. Havia, sem dúvida, um milhão de olhos naquela floresta, olhos que observavam atentamente cada um dos meus passos. Minhas narinas, também, começaram a trabalhar mais avidamente, senti o cheiro de muitas flores, plantas, e tive a impressão de ter sentido cheiro de mel – devia existir, por ali, em algum lugar não muito distante, uma colmeia de abelhas. Não sei o que havia comigo, eu nunca gostei desse tipo de aventura, sempre fui uma pessoa urbana, amante do asfalto e da agitação das cidades, mas naquela noite algo novo e insólito pulsava dentro de mim – parecia um feitiço. Caminhei um pouco mais e me deparei novamente com o riacho, que nascia dentro daquelas matas, contornava nossas terras e, em seguida, desaguava em um outro rio, muito maior e caudaloso. Tinha sede, agachei-me e enchi as mãos de água. Fiquei assim durante longo tempo, observando o fluir das águas, pensando na minha vida, esquecido dos problemas. Uma leve e doce felicidade tomava conta do meu ser, senti-me feliz por estar ali, por ter a oportunidade de visitar um lugar como aquele – dizem, alguns, os mais crentes e supersticiosos, que é nesses momentos que sentimos deus, ou qualquer força metafísica, falar mais alto dentro de nós. Mas, apesar da minha criação, apesar de ter crescido num lugar demasiado supersticioso e religioso, eu havia me tornado uma pessoa muito prática e cética, não tinha tempo a perder com esse tipo de coisa. Mal sabia que isso estava prestes a mudar. Jamais pude me tornar um homem religioso, mas com certeza, graças ao que vivi naquela noite, passei a ter menos certeza sobre a vida, aprendi a duvidar, a dar crédito aos mistérios, dilemas, coisas que nenhuma filosofia, psicologia ou um manual de física podem explicar.

Assim, saciadas a minha sede e a vontade de estar naquele lugar, já me sentia com sono. Teria voltado para casa de vovó se não tivesse acontecido algo terrível. Quando fiquei de pé e dei alguns passos, dando as costas para o riacho, vi algo que deixaria qualquer pessoa com as pernas cambaleantes: uma gigantesca e volumosa jararaca enrolada numa árvore, encarando-me com seus olhos frios e sua língua demoníaca. Naquele momento entendi porque dizem que o disfarce preferido do demônio é a cobra. Permaneci em choque, parado, congelado, amedrontado como um sapo ou um rato diante de seu maior predador. Se se tratasse de uma pessoa com um pouco mais de bom senso, ela teria imediatamente se lançado para trás, talvez a serpente até se esquivasse. Mas não, eu me mantive parado, cara a cara com o monstro, que era uma monstruosa jararaca, daquelas que eu nunca havia visto e nem pretendo voltar a ver. O inevitável aconteceu, a serpente encolheu sua cabeça para trás e num sorrateiro e ágil bote mordeu-me no ombro. Imediatamente caí no chão, gritando de dor e desespero. A cobra desapareceu, como se tivesse se dado por satisfeita.

Eram dois pequenos furos no ombro esquerdo, mas eu sentia como se me tivessem arrancado um braço. Pensei em me levantar e correr, mas não reuni forças, o veneno daquela cobra parecia agir em meu corpo de uma forma alucinadamente veloz. Meu ombro, meu braço e em seguida parte do meu dorso estavam dormentes, eu já sentia os meus olhos revirarem e começava a ter dificuldade para engolir a saliva. No entanto, antes que o beijo da morte se consumasse, algo de surpreendente aconteceu. Vou descrever apenas aquilo que vi, com a visão enviesada, sentindo tanta dor que mal pude dar conta de tudo que se sucedeu em minha frente.

Eu estava no chão, deitado de lado, com a mão direita a tentar estancar o sangue que corria pelo ferimento causado pela cobra. Senti, então, que a floresta estava sendo tomada por um forte e inexplicável vento, uma ventania, uma estremecedora corrente de ar que parecia vir do chão, balançando árvores, galhos e folhas, milhares de folhas. Tive a impressão de ver, diante de mim, uma imensa quantidade de folhas, muitas delas secas, formando uma espécie de nuvem, um aglomerado incomum de folhas de árvores, que flutuavam na minha frente. Eu vi, então, uma grande quantidade de poeira ser levantada do chão, unindo-se às folhas, que giravam incessantemente. Aos poucos, aquele aglomerado flutuante de folhas e terra tomou forma e vi surgir o impossível: uma figura humana, com um pouco mais de um metro e sessenta de altura, robusta, com um hálito doce de flor e olhos brilhantes. Em minha mente, eu estava certo de que havia morrido e que fora para o inferno. Aquele devia ser o barqueiro Caronte, responsável por levar minha alma a uma funda e fumegante cratera, no centro da terra. Mas, para minha surpresa, em vez de me sentir mal, eu começava a me sentir melhor, a dormência e a dor que haviam tomado meu corpo desapareciam vagarosamente e eu me sentia como se estivesse a ser colocado numa banheira de água morna. Por breves momentos, delirei e imaginei que havia voltado a ser bebê, minha mãe devia estar a me dar o primeiro banho. Alguns minutos se passaram e voltei a enxergar normalmente. Para o meu espanto, aquela criatura, formada a partir da nuvem de folhas e poeira, ainda estava ali, segurando meu corpo com suas mãos quentes. Com sua boca, ele sugava com os lábios a picada da cobra.

Voltei a mim e entendi o que se passara, ou pelo menos, construíra em minha mente uma versão, uma explicação, para o ocorrido. Eu não tinha como explicar nem entender o surgimento daquele ser, nem poderia dizer quem ele era, mas percebi imediatamente o que ele havia feito para me salvar: dando-se conta do meu estado, levara a boca ao meu ombro, ao local onde a cobra me mordera e sugara com toda sua força o veneno que se espalhava por todo meu corpo. Não sei de que maneira ele fez isso, mas não havia dúvidas de que havia me salvado. Levantei-me do chão e o encarei com medo, observando-o minuciosamente. Os seus cabelos eram vermelhos como o barro, talvez até fossem feitos de barro – ou o barro é que é feito de seus cabelos, não sei. A pele era levemente morena, parda, da cor das folhas secas das árvores, ainda que às vezes ele parecesse possuir outros tons de pele, variando entre uma espécie de amarelo esmaecido e um laranja muito quente, que lembra o sol nos fins de tarde da primavera. Os olhos eram verdes, como as folhas novas das árvores, e tinham um formato redondo, com cílios pequenos. Mas o que mais me impressionava era a forma como ele me olhava, até hoje não sei dizer se me reprimia, se estava curioso, se me achava um tonto ou se me admirava. Ele não estava nu, mas parecia vestir apenas uma espécie de tanga, ou um pedaço de folha ou pano qualquer, cobrindo o seu sexo. O mais impressionante, contudo, foi o que vi depois, e que me fez desviar o olhar: os pés, os seus pés, estavam virados para trás, na direção oposta ao seu corpo e ao seu rosto. Percebendo o meu espanto, ele rompeu o nosso silêncio e disse, na minha língua, num tom debochado: ”Calma, é só um truque! Eu sou um fazedor de descaminhos, com meus pés assim, ninguém nunca me encontra, a não ser que eu queira!”. Eu forcei um sorriso, mas continuava tão assustado quanto antes.

Eu não sabia o que dizer, mas havia dentro de mim um mar de perguntas, eu queria saber quem ele era, onde vivia, por que estava ali, por que me ajudara, que tipo de poderes e habilidades possuía. Ele limitava-se a sorrir, analisando-me, com um ar curioso de criança. Mas, sempre que eu desviava o olhar por breves segundos, ele mudava sua expressão, olhava-me com força e intensidade, eram os olhos de um homem, um homem que me desejava, que me queria possuir, da mesma forma como possuía aquele lugar, aquelas árvores e animais. Permanecemos nesse jogo, nesse lusco-fusco de olhar e desolhar não sei por quanto tempo, mas tempo suficiente para eu sentir fome. Tive a certeza que ele podia ler meus pensamentos quando fez surgir, de forma mágica, uma maçã, que me ofereceu gentilmente. Não era uma maçã grande, mas após dar a primeira mordida percebi se tratar de uma fruta especial, capaz de matar a fome de uma família inteira, com apenas uma mordida. Eu me senti revigorado, recuperado das forças e do ânimo, já nem me lembrava da jararaca e da dor que sentira. O estranho sujeito sentou-se perto de uma grande árvore e fez um gesto para que eu fizesse o mesmo. Sentamos os dois na terra úmida da floresta.

Eu estava ansioso para ver o que aconteceria, sentia em meu peito um forte desejo de tocá-lo, de me aproximar mais, de descobrir seu corpo e seus segredos. Ele começou a assobiar levemente, seus lábios começaram a produzir uma doce e melancólica melodia, percebi que estava a chamar algo ou alguém – invocaria outras forças sobrenaturais? A minha curiosidade permanecia aguçada, mas ela se dissipou quando vi quem descia pelos galhos de uma árvore e surgira diante de nós: era a cobra, a jararaca que me ferira e que agora parecia dançar diante de nós, enrolando-se no corpo daquele sujeito – em minha mente, eu estava convencido de que ele era o Curupira. Percebendo o terror que se instalara dentro de mim, ele segurou minha mão e disse: ”não tenhas medo, sou filho desta terra, irmão das cobras e de todos os seres que aqui vivem, ela não vai te machucar, não mais”. Aquelas palavras me deixaram aliviado, o medo, pouco a pouco, deixou de crescer dentro de mim, e em alguns minutos eu permitia que ele colocasse a jararaca em cima de mim, sobre os meus ombros. Dançamos, dançamos os dois de mãos dadas, sob a luz da lua, com a serpente enrolada em nossos corpos. Percebi que aquela dança, aquele ritual, era uma espécie de reconciliação, eu estava fazendo as pazes com o meu algoz, com aquela que me mordera e me envenenara. Não sei qual o intuito de tudo aquilo, mas eu me sentia muito bem e não posso dizer que não foi divertido.

Depois de muito rodopiar e dançar, eu estava jogado ao chão, de barriga para cima, suando e respirando loucamente, com a voz ofegante. O Curupira, se é que esse é mesmo o seu nome, estava ao meu lado, olhando fixamente para cima, para folhas das árvores, onde transparecia o espectro luminoso da lua. Eu me virei de lado e o encarei, olhei de um modo que ele sabia exatamente o que eu queria. Sem pensar muito e com um leve sorriso nos lábios, ele tocou meu corpo, acariciou meu abdômen, meu peito, meus braços, meu pescoço. Em pouco tempo, eu sentia uma estranha força agir em meu corpo, era como se meu sangue estivesse a correr de uma forma tão rápida que não conseguia sentir nem ver as coisas de um modo claro. Tudo o que sentia era um intenso, grande e rompante prazer. O Curupira lambia o meu dorso, meus pelos, levava sua língua até os confins do meu corpo, fazendo-me gemer, gemer, ganir como um lobo. A verdade é que muitas vezes pensei que eu estava, de fato, a me metamorfosear, ora em uma serpente, ora em um lobo, cão, raposa, garça, macaco, porco-espinho, borboleta… Não sei explicar, foi um mar de sensações inexplicáveis, mágicas, vibrantes, que só cessaram quando senti, dentro de mim, escorrer um vívido e espesso líquido, talvez seiva ou orvalho das plantas.

Eu estava exausto, mal tinha forças para abrir os olhos. Ele continuava sobre mim, beijando-me de leve, com sua boca quente, vulcânica, voraz. Adormeci assim, sentindo os seus cabelos ruivos sobre o meu rosto. Não sonhei, foi um sono fundo e pesado, era como se o próprio deus Morfeu vivesse dentro de mim. Quando acordei já era de manhã, o sol estava nascendo, e a noite já não existia. Para minha surpresa, eu estava só, completamente nu, deitado, de bruços, no meio da floresta. Eu o procurei por todos os lados, mas foi inútil. As minhas roupas estavam jogadas sobre uma rocha. Vesti-me e, desconsolado, caminhei durante algum tempo, não tinha escolha senão voltar para a casa de vovó. Saí da floresta e não pude deixar de olhar para trás. Suspirei fundo. Onde ele estaria, em que lugar daquela mata viveria, onde era o seu esconderijo? Todo o sítio ainda dormia, vi apenas um ou dois empregados, aqueles que acordam cedo para ordenhar as vacas. Cumprimentaram-me, ”acordado tão cedo, patrão? Caiu da cama, foi?”. Entrei na casa, atirei os sapatos a um canto e fui para o meu quarto, queria deitar em minha cama, apesar de não sentir sono. Fechei os olhos e lembrei de tudo, revivi minuciosamente aquele sonho – teria sido um sonho? –, busquei, na memória, cada detalhe daquela aventura – tantos gostos, cheiros, odores, visões, espasmos, sensações únicas e intraduzíveis através das palavras. Acabei pegando no sono novamente, acordando muito tempo depois, perto do almoço, vovó era quem me cutucava: ”meu neto, o que se passa? Está doente, dormiu tanto… que carinha é essa?”. Eu disse que não era nada, que estava apenas relaxando, aproveitando minhas férias para dormir o quanto quisesse. Mas, todos sabemos como são as avós, essas mulheres sábias, meio bruxas, que sabem ler como ninguém o olhar e as palavras das pessoas, sobretudo quando essas pessoas são seus netos. Ela, então, me olhou de soslaio com seus olhos pequenos e disse: ”Essa sua cara é a cara de quem teve um sonho bom! Viu passarinho verde? O que está escondendo?”, ”Se o passarinho era verde, vó, eu não reparei!”, rimos os dois juntos, nos abraçamos e fomos tomar café na varanda, lembrando de coisas boas do passado, almoços, encontros e jantares familiares.

Mas e o Curupira? Pois bem, até hoje é um mistério. Já revirei aquela floresta inteira, aquela mata, e não voltei a encontrá-lo, nem mesmo seus rastros, suas pegadas invertidas, seus descaminhos, como ele mesmo disse. Também nunca mais cruzei com outra serpente ou ser ameaçador, é como se aquele ritual, aquela dança com a jararaca nos ombros, tivesse sido uma espécie de contrato de paz – ”não faças mal à natureza e ela não voltará a te ferir”. Hoje eu sou praticamente o dono daquele sítio, vovó está ainda viva, mas deixou os negócios por minha conta. Prometi a mim mesmo que, enquanto estiver vivo, ninguém derrubará uma única árvore daquele lugar. Quero que aquela floresta permaneça viva, intocada, para que o meu amante de uma única noite não perca o seu lar, a terra de onde ele brotou magicamente e que está sob sua tutela. Eu nunca consegui esquecê-lo, nunca consegui desvendar seu mistério, nem mesmo sei quem é – se o curupira, um elfo ou, talvez, um espírito da floresta. Eu não sei. Também nunca contei essa história a uma outra pessoa – somente agora é que me deixei vencer e gravo no papel o que vivi, ou o que sonhei, quem sabe. Muitas vezes, quando me sinto entediado, sem nada para fazer, como naquela noite, caminho sobre a pontezinha de madeira, atravesso o riacho e entro na floresta. Então, rogo aos céus para que a jararaca reapareça, quem sabe ele não me venha salvar novamente? Nós então dançaríamos eternamente, como dois perdidos, descaminhados, amando sem cansar sob a lua, sob a luz do sol, em meio às raízes, flores, folhas, insetos, dentro da terra e debaixo da água fria. Desta vez, não permitiria que ele se fosse, iria agarrá-lo e, com todas as forças, eu o obrigaria a me aceitar, a me tornar parte de sua vida, de seus mistérios. Mas, se ele resistisse e me rejeitasse, não me restaria outra coisa senão declarar: deixa, querido, deixa o veneno da cobra agir, tomar meu sangue, deixa-me morrer aqui, enterra meu corpo, minhas dúvidas, minha ansiedade…. E faz nascer dos meus restos uma planta, que um dia dará uma flor, que, à noite, no verão, atrairá com seu perfume homens solitários e perversas serpentes.