O FIM DE UM OUTONO

COLUNA LORCA

POR CHARLES BERNDT

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Havia uma bruxa sozinha e solitária, que chorava todas as noites e morria de inveja de todas as mocinhas que moravam em seu vilarejo e que se casavam com os mais belos rapazes… Nem sempre eram os mais belos rapazes, vá lá, mas, ainda assim, eram rapazes… Seu coração mastigava-se na solidão, falava sozinha para sentir-se menos só e vivia a rogar algumas pragas quando ouvia os recém-casados passando felizes e cantarolantes, perto de sua janela – não fazia por mal, se era inveja o que sentia, sentia isso porque, antes de ser bruxa, era uma mulher. Coitada, vivia a inventar cantigas, canções tristes para embalar o tédio e as paredes de sua velha casa de tardes quietas.

Tinha-se na conta de bruxa, enxergava-se desse modo. Ouvira tantas vezes esta palavra repetida na boca dos outros que acabara por se convencer de tal – “pronto, sou mesmo uma bruxa”. Uma bruxa não muito diferente das outras, que não penteava os cabelos e nem limpava aquela sujeirinha atrás da orelha, que gostava de gatos, mas que não precisavam ser necessariamente pretos. Enfim, sua vida era esta – recostada sobre a janela, mãos magras a apoiar o queixo, casmurra, calada, metida em preto, não tinha verrugas, mas se achava feia, evitava os espelhos.

Pronto, tanto ouviu dos outros que agora “era mesmo uma bruxa, como todas as outras de que já se ouviu falar” – dizia para si, como quem tenta convencer-se com muita firmeza de algo. Só gostava mesmo de gatos, nunca possuíra ratos, corujas ou outros desses animais que o imaginário popular gosta de dizer que as bruxas possuem. Para além dos felinos, ela gostava de ouvir os pássaros – um dia, há muito, chegou a acreditar no canto de um rouxinol, que prometia dias de um futuro feliz. Este futuro de paz, grinaldas e lençóis quentes nunca chegou.

A sua casa era a cabana mais afastada e escondida daquele vilarejo. Não tinha muita paciência com crianças, mas nunca quis comê-las como muitos gostavam de dizer, preferia comer maçãs. No fundo, só queria mesmo companhia, queria braços e abraços que apertassem suas costas magras e frias, alguém que alisasse sua face áspera e descuidada.

Então, durante longo tempo, esta bruxa soube apenas ser sozinha e invejosa, envelheceu junto com as paredes, com o assoalho, com as molduras amareladas dos quadros tortos nas paredes. A sua inveja era uma inveja de olhos, nunca fez mal a ninguém, só mesmo tinha mania de rogar pragas e maldizeres, principalmente para os ladrões que invadiam a sua horta e roubavam os seus gordos repolhos. Assim, apoiada e desistida sobre a janela, ela via todos os meses muitos moços e moças casando-se naquela aldeia, jogando flores para cima, apertando-se em risos, trocando beijos em seus jovens e vermelhos lábios. Chorava às vezes, mesmo que, em regra, alguém dissesse que bruxas não deviam chorar – ela chorava.

Contudo, numa quieta manhã de outono, enquanto ainda calçava suas pantufas empoeiradas, a bruxa ouviu um inesperado toc- toc. Alguém batia à sua porta. Quem seria? Nunca ninguém batera em sua porta, quem se  atrevia? Seriam os moleques que não satisfeitos em lhe roubar legumes, vinham agora perturbar o seu constante e acostumado silêncio? Quem batia à porta da casa de uma velha e solitária mulher numa hora daquelas – tão cedo?

Abriu a porta e não se arrependeu do que viu. Ele disse “olá”, ela gaguejou qualquer coisa que não foi compreendida. “Posso entrar?” – perguntou. Ela não soube dizer “não”. Era um homem bem jovem e bem bonito, uma bruxa feia como ela nunca havia visto um homem como aquele. Ele se sentou e contou que estava com fome, que se perdera na floresta, o frio havia congelado os seus membros, o cavalo fugira… Ela, a bruxa, que agora tentava pentear os grossos e esbranquiçados cabelos, ofereceu-lhe a melhor de suas sopas, sopa de ontem, mas boa. Ele bebeu tudo, lambeu os beiços, suspirou como um homem, arrotou como um animal. Ela nem se importou, não sabia como se comportavam os homens, vira poucos homens em sua vida, sentia-se contente.

“Quer mais? Posso fazer mais sopa… Sopa de outro sabor… Galinha?” – perguntava ansiosa, mexendo as mãos, tinha mesmo medo, não sabia o que fazer, algo tremia dentro de si. Como deviam comportar-se as mulheres perante aos homens? Não sabia. Mas, mesmo com medo, decidiu que agiria como uma mulher, repetia esta palavra para si: mulher, mulher. Podia ser mais do que uma bruxa, deu-se conta disso. Um homem a olhava e ela nem sabia o que fazer! Talvez ela não fosse tão velha como acreditava ser.

Ele, o homem bonito, levantou-se da mesa, olhou em volta, não pareceu muito curioso, parecia curiosidade de homem mesmo. Ela o fitou de mais perto, tentou disfarçar sua curvatura, ergueu a coluna. “O moço quer algo?” – perguntou a bruxa com uma voz desejosa em parecer doce. Ele a olhou de soslaio, ela não entendeu. “Quer?” – insistiu. Ele virou-se, deu-lhe as costas. Ela então pode observá-lo por trás: tinha belas costas, belos braços e uma bela bunda, mas o que fazem as mulheres com a bunda dos homens? “Olham” – pensou rindo-se.

Então, com o peito cheio de ar, o homem se virou para ela, olhou-a com alguma atenção e baixou os olhos, a bruxa sentiu-se como um daqueles esquilos que via dependurados no mercado, estava sendo analisada como uma mercadoria. O homem não a viu como um esquilo, conseguiu ver outras coisas. “Vem cá!” – disse ele e ela foi. Ele abaixou-se um pouco e levou suas mãos ao pescoço dela. Fez que ia beijá-la e ela, toda nervosa, tremeu-se desajeitada como bambu em meio ao vento. Foi um meio beijo, o primeiro da vida daquela mulher bruxa que da vida vira muito pouco. O homem puxou-a para si e perguntou se ela tinha uma cama. Ela disse que “sim”, “as bruxas também dormem, ora” – pensou a pobre ingênua. Foram para cama. “Não quer mesmo mais sopa?” – insistia ela, nervosa, apertando os dedos em tensão.

O homem se deitou, começou a despir-se, tirou vagarosamente todas as peças de roupa com suas brancas e delicadas mãos. Não demorou até que ficasse completamente nu. A mulher tremia-se. Tremia-se e tentava dizer algo, formar frases com sentido, mas não conseguiu, só mesmo ficou olhando todo aquele conjunto de músculos que pareciam estar todos em seu devido lugar, distribuídos e definidos harmonicamente, como se fossem uma pintura, ou uma estátua grega… Ela reparou na doce e fina pele que ele possuía, levemente bronzeada de algum sol que apanhara em tardes de primavera. Suas pernas eram grossas e firmes, as coxas pareciam suculentas como as de um frango de um bom almoço – pensou ela. Ele, como se quisesse provocá-la, passava as suas mãos delicadamente sobre o seu dorso, acariciando a cintura, o abdômen e descia até as nádegas. Seu corpo era levemente delicado, mas não ao ponto de deixar de ser másculo, sua boca era vermelha e quente, os olhos eram muito verdes e vivos, os cabelos negros… “Que homem!” – conseguiu dizer ela finalmente.

Depois de tanto pensar e admirar, a mulher desejou, finalmente, sentir o que todas as moças da aldeia sentiam. Despiu-se cautelosamente, com muita vergonha. O homem parecia calmo, olhava-a com indulgência, não parecia querer mais do que via, estava deitado sobre a cama, apoiado sobre dois travesseiros amarelados. Delicadamente os dois trocaram algum carinho, mas não demorou muito para que fizessem aquilo que todos os animais fazem, desejando sentir aquela efêmera sensação, tão rápida que logo a querem repetir. Chegaram lá – ele suando como um louco, ela cansada como uma mula que teve de subir dois montes inteiros em uma tarde de sol quente. Descansaram bastante tempo e viram, pela janela, o outono arrancar muitas folhas das árvores, sentiram algum frio e cobriram-se.

Ela ainda o olhava, com ternura e uma espécie de agradecimento que era impossível expressar através de palavras, só o fazia através de suspiros e de pensamentos. Ele fumava. Ela sentiu o cheiro da fumaça do fumo e rapidamente adormeceu, feliz, com um sorriso desconhecido em seus lábios. Sonhou que era jovem outra vez e viu-se dando a luz a uma criança linda de olhos claros. Sonhou por algum tempo, mas não demorou para que tudo ficasse terrivelmente escuro e quieto,  como se a sua consciência flutuasse sobre o mar, à noite. Como uma mariposa que deixa de bater suas asas e pousa vencida no alpendre de uma janela, já cansada de voar entre as lâmpadas das varandas, ela, a velha bruxa, fechara os seus olhos para o futuro. Aquele fora o último dia vivido por aquela pobre e esquecida mulher, que não voltou a acordar. O seu corpo não tardou a ficar gelado como o inverno que viria depois do outono.

O homem deixou a cabana sem nem mesmo dar-se conta do estado da mulher, pensou que estava a dormir e considerou melhor aproveitar a oportunidade para ir-se embora, não queria ouvi-la dizer que estava apaixonada e oferecer-lhe mais sopa. Vestiu-se, comeu um pedaço de pão que estava sobre a mesa e partiu. Roubou o primeiro cavalo que teve chance e encontrou, após muitas léguas, uma estalagem, lembrou-se que o dono era seu amigo. Pôde, enfim, beber descansadamente uma caneca de cerveja e divertir-se a contar para meia dúzia de compatriotas sobre uma incrível tarde de amor que tivera com uma pura e jovem donzela, que o recebera em uma cabana, em meio a floresta, num vilarejo distante.