COLUNA LORCA
POR CHARLES BERNDT
*
Hoje eu quero falar sobre filmes – filmes que falam de amor entre mulheres. A verdade é que sempre quando pensamos em filmes homoafetivos, surgem uma porção de sugestões, geralmente envolvendo homens. Hoje quero falar sobre as mulheres, os romances lésbicos no cinema. Desse modo, falarei sobre três filmes com essa temática, dois brasileiros e um estadunidense, que não só me encantaram com sua beleza, com sua poesia, mas com as reflexões que provocam.
Como esquecer
O primeiro filme de amor lésbico que assisti se chama Como esquecer. É um filme brasileiro, lançado em 2010, dirigido por Malu de Martino, cujo roteiro é baseado em um livro, Como Esquecer – Anotações quase Inglesas, de Myriam Campello. Assim, a estrela principal é a atriz Ana Paula Arósio, que interpreta Júlia, uma professora universitária que foi abandonada por sua parceira, Antônia.
Júlia é uma professora de literatura, que trabalha sobretudo com literatura inglesa, com uma vida estável, que se vê desnorteada depois do término de um longo relacionamento. O filme não nos diz exatamente porque as duas mulheres romperam. Em verdade, o foco está na personagem Júlia e no tempo que ela leva para superar a dor, a solidão, o abandono, a rejeição. Júlia é uma mulher independente, com uma personalidade bastante intensa, que se fecha para o mundo depois do ocorrido, tornando-se amarga e rude, em muitas ocasiões.
O filme é recheado de momentos em que Júlia lê trechos de romances ingleses, dando destaque aos romances de Virgínia Woolf e Emily Brontë, com o seu O morro dos Ventos Uivantes. Sendo assim, é interessante perceber o argumento feminista do filme, que dá espaço para as mulheres, as suas vozes, os dramas, amores e dilemas femininos. Contudo, outras questões são também abordadas, principalmente através dos amigos de Júlia, com quem ela acaba indo morar, Hugo e Lisa. Hugo é homossexual e também está se recuperando de uma grande perda: seu companheiro, Pedro, faleceu há pouco. Lisa, por sua vez, sofre ao ser abandonada pelo namorado, quando descobre que está grávida. Assim, juntos, os três dividirão lágrimas e serão fundamentais para a sua recuperação.
Apesar de ter como foco a vida amorosa de Júlia e até nos mostrar suas novas tentativas de se envolver com outras mulheres, o filme de Malu Martino fala sobre esses momentos pelos quais quase todos passamos, momentos de recolhimento, de introspecção, em que nos retraímos e cuidamos de nossas feridas, nossas frustrações. É um filme que fala sobre a outra face do amor romântico: o luto, a tristeza, a solidão vivida por muitas pessoas após o término de um relacionamento. Já dizia Freud que o luto é uma fase importante para o ser humano, é algo natural, todos o experimentamos nas mais diferentes situações. O que não pode ocorrer é o luto se transformar num estado permanente de melancolia, tornando-se o que hoje chamamos de depressão. Enfim, recomendo vivamente que assistam este filme, é uma das pérolas do nosso cinema nacional, muitas vezes vítima do nosso preconceito e vira-latismo, que só aplaude produções estrangeiras.
Flores raras
Bom, falarei de outro filme brasileiro, Flores raras, tão belo quanto Como esquecer. Devo dizer que é um dos filmes de que mais gosto, ao qual sempre retorno e me emociono. Lançado em 2013, com direção de Bruno Barreto, o filme Flores raras também é baseado em um livro, Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira. Traz como protagonistas duas mulheres, Lota e Elizabeth, interpretadas por ninguém menos que Glória Pires e Miranda Otto, respectivamente.
Para quem não sabe, o casal em questão é Lota Macedo Soares, renomada paisagista e arquiteta brasileira, conhecida por idealizar o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, e Elizabeth Bishop, uma das maiores poetisas estadunidenses do século XX, que viveu parte de sua vida no Brasil. Portanto, ambientado nas décadas de 1960 e 1970, trata-se de um filme biográfico, que retrata, de alguma maneira, uma relação que de fato existiu.
Uma das maiores inovações deste filme é, sem dúvida, o fato de ter sido gravado quase que completamente em inglês. Assim, a maioria dos diálogos são todos em língua inglesa, sobretudo aqueles que envolvem Lota e Elizabeth. Mas, é bom que se diga, nem por isso o filme de Bruno Barreto perde sua brasilidade, sua afinidade com os trópicos e com a América do Sul. Em verdade, os atores brasileiros, que são maioria no filme, falam um inglês com sotaque, ainda que correto, e isso a meu ver é completamente aceitável e justo, já que na vida real grande parte de todos nós fala inglês com sotaque, assim como o fazem os estrangeiros quando falam a nossa língua.
Flores raras é um filme que nos toca pela poesia, pela beleza sublime que evoca. As cenas em que Elizabeth está a compor seus poemas são verdadeiramente primorosas. Há que se tirar o chapéu para a fotografia, as cores e texturas do filme, que nos fazem ter vontade de comer frutas, de tomar banho de mar, de sentar sob árvores e ler ou escrever poesia. As cenas de afeto e carinho entre as duas protagonistas são, também, cheias de cuidado e beleza. Sem dúvida, é um filme para se rever sempre, que nunca parece ter sido visto o bastante.
Destaco, ainda, o modo como o filme mostra as personalidades de Elizabeth e Lota, duas mulheres bastante diferentes. A primeira é uma arquiteta, bem-sucedida, com uma autoestima incrível, confiante e que gosta de tomar decisões. A segunda é uma mulher doce, delicada, sensível, calada, que não teve uma vida muito fácil e que se refugia nos versos e no álcool. O filme de Bruno Barreto ainda não deixa de tocar em questões políticas, retratando o momento em que o golpe militar, em 1964, é engendrado pela elite brasileira. Um dos amigos íntimos de Lota era o político e jornalista Carlos Lacerda, um dos líderes civis do golpe militar. É interessante perceber o espanto de Elizabeth diante desses acontecimentos, a sua surpresa e revolta com a ruptura democrática e a passividade de muitos brasileiros. Isso fica nítido quando, no dia do golpe militar, Elizabeth vê alguns homens jogando vôlei na praia de Copacabana.
Gostaria de concluir com um poema escrito por Elizabeth Bishop e que vemos no filme em um momento bastante íntimo, quando a poetisa lava os cabelos de Lota, na banheira, e pensa num poema:
THE SHAMPOO
The still explosions on the rocks,
the lichens, grow
by spreading, gray, concentric shocks.
They have arranged
to meet the rings around the moon, although
within our memories they have not changed.
And since the heavens will attend
as long on us,
you’ve been, dear friend,
precipitate and pragmatical;
and look what happens. For Time is
nothing if not amenable.
The shooting stars in your black hair
in bright formation
are flocking where,
so straight, so soon?
– Come, let me wash it in this big tin basin,
battered and shiny like the moon.
– Elizabeth Bishop, A Cold Spring, 1955.
Carol
contém spoiler
Também baseado em um romance, intitulado The Prince of Salt, escrito por Patricia Higsmith e publicado em 1952, o filme dirigido por Todd Haynes e lançado em 2015 conta a história de amor de Therese Belivet (Rooney Mara) e Carol Aird (Cate Blanchett). Este é um daquele filmes que você assiste e tem a sensação de que não mudaria nada, está tudo ali, perfeito, desde as atuações até a trilha sonora, que é das mais belas que conheço, a fotografia etc.
É difícil definir quem seja a protagonista do filme, embora ele leve o nome de Carol. Em minha opinião, Therese é quem está no centro da história e Carol é a personagem que mudará sua vida, que a fará tomar decisões, que a tirará da zona de conforto. Assim, o romance entre essas duas mulheres, entre Carol, uma abastada e elegante dona de casa, que está à beira de um divórcio, e a jovem e ingênua Therese, que trabalha numa loja de presentes, será marcado por momentos de grande sedução, em que, mais do que as palavras, são os olhares que dizem tudo.
O mais interessante é que se trata de um filme cujo protagonismo está inteiramente na mão das mulheres, em suas angústias e em sua capacidade de lutar contra o mundo que as quer dominar, calar, controlar. Carol Aird é uma mulher independente, mãe, que decide abrir mão de um casamento infeliz e viver sua vida, assumir seus desejos. Acredito que mais do que tratar sobre o amor das duas mulheres, o que já é um ato revolucionário numa sociedade extremamente machista e misógina, sobretudo nos anos de 1950, o filme de Todd Haynes se debruça sobre algo ainda mais profundo e atual: a emancipação feminina.
De fato, a personagem vivida por Cate Blanchett não só dará seu amor a Therese, mas será crucial para que esta se torne, também, uma mulher independente, lute por seus sonhos e não se renda tão facilmente à dominação masculina. Na última cena do filme, ao vermos Therese ir ao encontro de Carol, é justamente isso que nos está sendo dito, que as duas não só ficarão juntas, mas que decidiram lutar por sua emancipação, serem as donas de seus corpos e de seus destinos.
E mais filmes…
Gostaria de sugerir, ainda, outros filmes com essa temática, sobre os quais não comentei, mas que valem a pena serem assistidos: Sister my sister (1994), Boys don’t cry (2000), The Hours (2002), Cloudburst (2011), Pariah (2011), La vie d’Adele (2013), La belle saison (2015).
_______________________________
1 O XAMPU / As explosões permanecem sobre as rochas, / os líquens, crescem / espalhando cinza, choques concêntricos. / Eles têm um encontro/ para atender os anéis ao redor da lua, embora / dentro de nossas lembranças não tenham sido alterados. / E desde que os céus estejam assim / acima de nós,/ você permanece, caro amigo, / precipitado e pragmático; / e olha o que acontece. Pois o Tempo é / nada se não for favorável. / As estrelas cadentes no seu cabelo preto / na formação de brilhante / estão reunindo-se, / tão simples, tão cedo? – Vem, deixa eu lavá-lo na bacia de lata grande,/ esburacadas e brilhante como a lua. – Elizabeth Bishop; tradução de Nina Rizzi