COLUNA BLACKTUDE
POR LETICIA SANTOS
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Já escrevo aqui sobre literatura há um tempo, e quando recebi o convite para essa coluna sobre negritude estava no meio de uma avalanche de opiniões e discussões no trabalho, entre amigos, em grupos e em tudo quanto é lugar sobre um filme lançado recentemente (talvez nem tanto agora, releve), dito filme se chama Pantera Negra, e pasmem, tem elenco maiormente negro. Por que isso é tão chamativo e colocou a mim e a muitos negros na posição de ter que ouvir de brancos que não entendiam todo o fuzuê sobre o filme? Porque eles estão acostumados a serem representados e a gente não, então, resolvi falar sobre representatividade no entretenimento, talvez soe mais formal do que sou usualmente, mas tentei fortemente não ficar acadêmica.
Desde muito pequenos somos expostos a uma série de estímulos externos que podem não moldar nossa personalidade, mas têm uma parcela importante nos padrões de comportamento que desenvolvemos. Por exemplo, cresci no Brasil com cabelo crespo e a pele escura, e isso me fez ouvir a vida toda que meu cabelo era duro, cabelo de Bombril, pixaim e uma série de epítetos, crianças são criativas, viu? Enfim, durante minha criação tive meus pais dizendo o tempo todo como meus cachos são bonitos, e como eles gostavam das minhas “molinhas”, então, nunca passei pelo processo de alisamento, mesmo querendo. E por que eu queria tanto? Porque minhas amigas tinham cabelo escovado e com prancha, as princesas, atrizes, cantoras… a maior parte das mulheres consideradas belas tinha cabelo liso e eram brancas de nariz aquilino. Então você pode estar se perguntando o que uma coisa tem a ver com a outra, e eu explico: somos rodeados por padrões e eles ditam muito sobre como nos vestimos, nos portamos e até penteamos o cabelo. Esse mecanismo tem nome e vários estudos registrados, como, por exemplo, em Moscovi (1978) podemos ver sobre representação social que:
“No final das contas, ela produz e determina os comportamentos, pois define simultaneamente a natureza dos estímulos que nos cercam e nos provocam e o significado das respostas a dar-lhes. Em poucas palavras, a representação social é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos.”
A questão é que, apesar de ser uma parcela significativa da população, os negros não são largamente representados no entretenimento de maneira positiva e isso reflete na maneira com que a sociedade nos vê. A sociedade reproduz o padrão cristalizado pela maioria, vemos o negro com uma representação e o branco com outra. Quantos personagens em novelas dos anos noventa eram negros e não estavam representados como escravos, motoristas, domésticas, criminosos ou moradores de comunidades? A mulher negra foi hiper-sexualizada desde sempre, e não apenas no carnaval, a luxúria dos homens para com o corpo da mulher negra e sua “fogosidade” são lendárias na cultura brasileira, e é resultado de séculos de esteriótipos. O famoso “não sou tuas negas” quando uma mulher quer pedir respeito, é tão racista quanto machista, quem são essas “negas”? As negras da rua que não tem pudor e ficam exibindo o corpo? De onde isso saiu? Notem que são as “negas” e não as brancas. O racismo nosso de cada dia está tão entrelaçado com o cotidiano brasileiro que deixamos de percebê-lo.
Tendo claro o que é representação social, podemos voltar ao entretenimento e descobrir que os negros são pobremente representados na maior parte dos casos. O furor causado por Pantera Negra tem muito a ver com o fato de que é um filme feito com atores negros em uma nação africana que não foi saqueada e vilipendiada por brancos. Nesse filme, podemos finalmente ver uma nação negra que usa com orgulho e naturalidade seus cabelos em diferentes texturas e volumes, que valoriza sua ancestralidade tribal e que não é representada como uma população com mau desenvolvimento e faminta por falta de vontade de crescer. Wakanda é mais do que um país fictício da Marvel, e aqui não estou discutindo se gostamos ou não das publicações e dos filmes, e sim que eles são uma evolução simbólica muito importante. Ah, mas virão os especialistas dizendo que há outros heróis negros, o Luke Cage (vive num bairro violento e que luta contra gangues, mais do mesmo), Hancock (o alcoólatra descontrolado), e mais alguns que não vou analisar agora. Mas, o fato é que os outros heróis negros nunca tiveram o alcance e a imagem positiva que Pantera Negra teve, eles mostraram para um monte de crianças que negros podem ser cientistas brilhantes, eruditos e chefes de estado – é importante mostrar homens e mulheres negros em posições de destaque, porque representação social importa, ela define como a sociedade em geral vê e reage ao objeto representado.
Para mim, é claro e nítido como o entretenimento é importante e essencial na vida das pessoas, mas talvez seja porque dediquei boa parte da vida a analisar e consumir literatura, entretenimento esse onde minha raça sofre muito com má representação. Termino o texto por aqui com uma pergunta: você estranha ver negros na mídia e nos produtos de entretenimento com representação de alta classe? Se sim, pergunte-se o porquê, questione-se e tente evoluir. Nunca é tarde para sair da zona de conforto.