COLUNA PITACOS
POR LETICIA SANTOS
*
Olá, pessoas, eu voltei e com um dos melhores livros que vocês podem ler no mundo. Não faça cara de descrença para mim, porque é verdade, esse aqui comecei a ler por indicação da editora, a culpa é da Carol mesmo, que já me fez ler o livro e continua na campanha para que veja a série, está na fila, juro que vejo, não me julguem. Comecei essa coluna com um livro emblemático sobre vingança feminina, Alex Craft foi apresentada a vocês como sendo a representação de qualquer mulher no mundo, ela poderia ser eu, você, sua irmã, sua mãe… uma mulher que cansou de ser a presa e se tornou a predadora, uma caçadora de abusadores. Aliás, estão lendo tudo direitinho? Isso aqui é uma continuidade, hein?
Em O Conto da Aia, temos um futuro distópico onde todos os medos mais íntimos das mulheres se tornaram realidade, ali, nós não possuímos voz, e é literalmente como se todas fossem mudas e nada mais que um bando de éguas parideiras, ou fantoches do estado para o controle das companheiras. É uma leitura incômoda, já aviso desde o início, o estômago precisa estar forte porque é um desafio não querer largar o livro. Esse mundo distópico cutuca a ferida do machismo, aliás, cutucar é uma bondade minha, Margaret Atwood abre essa ferida purulenta e joga sal pra arder mais. Desculpem-me pelo exagero, mas nesse livro não tem meio termo, ou você ama ou odeia, é uma leitura que dificilmente te deixa em cima do muro, é um desafio terminar, não só pelo tema espinhoso, mas porque a leitura começa a te fazer refletir sobre como nossa sociedade está marchando para um controle assustador dos direitos das mulheres, e consequentemente de nossas liberdades individuais.
O Conto da Aia é uma leitura desafiadora, e realmente penso que diferente para homens e mulheres – tenho a curiosidade de saber como um homem se sentiu lendo essa versão distópica, será fácil para vocês se colocarem no lugar de uma mulher que perdeu até o direito de falar sem permissão? Cuja castração social chegou ao ponto em que não passa de uma reprodutora que espera para ser estuprada periodicamente e que foi condicionada a achar isso uma benção? É algo que gostaria de discutir um dia.
Voltando para nossa protagonista, ela perdeu tudo, até seu nome. Passamos uma parte do livro lendo sua perspectiva desse mundo, vivendo seus dias agoniantes sem saber seu verdadeiro nome, até isso eles tiraram dela. A aia é Offred, que remete a seu pertencimento ao comandante, mas logo no começo do livro podemos ver que ela não vai ficar nessa posição para sempre, isso porque percebemos em seus pensamentos algo que vai contra todo aquele condicionamento: a resistência.
Offred é uma guerreira, ela se rebela todos os dias contra o sistema em que foi inserida, ela cria seu próprio sistema de lembrança e luta contra as práticas de apagamento dos Estados Unidos que perderam a democracia para os homens ensandecidos a procura de continuidade:
“Mas a noite é meu tempo livre. Aonde devo ir?
Para algum lugar bom.
Moira, sentada na beira da minha cama, de pernas cruzadas, o tornozelo no joelho, com seu macacão púrpura, um brinco pingente na orelha, a unha de ouro que usava para ser excêntrica, um cigarro entre os dedos roliços de pontas manchadas de amarelo.
Vamos sair para tomar uma cerveja.
Você está sujando minha cama de cinza, disse eu.
Se você topasse não teria esse problema, retrucou ela.
Daqui a meia hora, respondi. Eu tinha uma dissertação para entregar no dia seguinte. A respeito de que era? Psicologia, inglês, economia. Estudávamos coisas desse tipo. Espalhados no chão do quarto havia livros abertos, as páginas viradas para baixo, por todos os lados, de maneira extravagante.”
Foi aqui que me dei conta que as aias nesse mundo são mulheres ceifadas de uma vida que pensavam seguras, de uma vida em que acreditavam piamente que o mundo jamais chegaria ao ponto em que sua maior rebelião seria lutar para manter lembranças dos tempos em que podia ir a universidade e sair com as amigas. Uma das reflexões mais profundas que esse livro traz é o fato de que podem nos roubar tudo, até nossa identidade se fizerem esforço o suficiente, e que resistir a um condicionamento psicológico e fisicamente ameaçador é algo que dificilmente qualquer uma pode fazer. Imagine-se numa posição em que pensar em um mundo onde escolher seu companheiro te faz sentir medo de que surja alguém para te punir, ou até mesmo te matar? E o pior, eles a condicionam para sentir culpa por cada abuso que sofrem, as fazem acreditar que só estão sofrendo porque não foram boas o suficiente.
Lembrando de algo? Sim, é a cultura do estupro elevada a máxima potência, já que aqui é sancionada por um estado ditatorial, e que parece feito para tirar toda e qualquer esperança. Contudo, como podemos observar na história mundial, aqueles que são oprimidos podem aguentar até certo ponto, mas sempre tem o desejo da ruptura com o poder, de se livrar do opressor, e já aprendemos que Offred é uma lutadora, uma mulher resistente acima de tudo, ela enverga, mas não quebra e esse é seu maior trunfo. Ainda que não se confundam, a resistência dela é em muitas partes uma resistência mental, a capacidade de reconhecer que o sistema está tentando anulá-la e se rebelar contra isso o quanto pode sem comprometer sua segurança. A verdade é que é fácil se reconhecer nas atitudes dela, de desejar uma revolução, mas de não querer se colocar em risco pela causa, isso porque ela sabe que qualquer coisa que faça pode refletir em vidas de entes queridos e seu maior medo é ser confrontada com a possível tortura daqueles que ama, porque ela sabe que diante disso vai ceder e se tornar aquela que deu motivos para o sofrimento de muitos.
“Sei que isso não pode estar certo, mas penso de qualquer maneira. Tudo que me ensinaram no Centro Vermelho, tudo a que resisti, flui para dentro de mim numa torrente. Não quero dor. Não quero ser uma dançarina, com os pés no ar, minha cabeça um retângulo sem rosto de pano branco. Não quero ser uma boneca dependurada no Muro, não quero ser um anjo sem asas. Quero continuar vivendo, de qualquer forma que seja. Renuncio a meu corpo voluntariamente, para submetê-lo ao uso de outros. Eles podem fazer o que quiserem comigo. Sou abjeta. Sinto, pela primeira vez, o verdadeiro poder deles”.
Durante toda a narrativa vemos que ter o poder de escolha retirado de você vai muito além de não ter direitos. O estado nessa distopia não controla só corpos com o uso já conhecido de táticas de poder, como estupro recorrente, mortes públicas, torturas e jogos de poder. Não, a coisa é muito pior, o sistema contra o qual as aias resistentes devem lutar é um sistema pensado para torná-las reféns, para levá-las a crer que fizeram a escolha de servir – que escolha é essa quando não se tem outra opção? – O ser humano se adapta a tudo, e para sobreviver termina por se moldar aos padrões mais desumanos, o esmagamento contínuo da individualidade, do direito a controlar o próprio corpo e próprio pensamento é aturdidor. É intensamente agoniante se colocar no lugar da nossa narradora. O que faríamos se tivéssemos quase nenhuma perspectiva de liberdade? Qual seria nossa decisão no momento em que ela selou o destino de seus abusadores? Esse livro não tem um final comum, ele não foi escrito para ser uma fábula, a verdade é que ele é duramente real. Quando foi que num período histórico conseguimos justiça e todos os pingos nos “is”? O final do livro pode ser frustrante para alguns e genial para outros, mas o fato é que ele é a vingança suprema, a disseminação de um conto que perpetuará por anos dentro daquele mundo os horrores aos quais uma sociedade inteira impôs as suas mulheres. E não quero dar spoilers, mas é curioso que no final do livro aconteça o que comumente ocorre na nossa sociedade, trocando em miúdos e mantendo o mistério, posso dizer que aquela velha música dos Racionais funciona aqui também: até pra Jack tem quem passe um pano, e para você que não é fluente na língua dos manos aqui da periferia, até pra estuprador tem quem arrume justificativa.
A vingança no conto da aia é a mais amarga que apresentei até agora, não só porque usou o sistema para acabar com um inimigo imediato, mas porque ficou longe da nossa catarse tão desejada, ficamos com o desejo de ver sofrimento, de ver os poderosos caindo graficamente, e isso só mostra como o povo deseja sangue e circo na mesma medida em que deseja vingança. Somos seres humanos, e portanto queremos representação gráfica que vencemos, feliz ou infelizmente O Conto da Aia nos dá as duas possibilidades, porque duvido que você termine esse livro sem ter pensado em pelo menos duas maneiras de capar o comandante e matar todo mundo naquela sociedade, ainda que possa se frustrar em como o conto termina dolorosamente realista. Boa leitura aos corajosos, vale a pena.