COLUNA PITACOS
POR LETICIA SANTOS
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Pessoal, eu voltei para encerrar nossa lista de indicações sobre Vendetta, e termino analisando uma das melhores obras que já tive o prazer de ler na vida. A Trilogia Millennium, de Stieg Larsson, uniu em três livros de tirar o fôlego tudo o que eu amo numa narrativa policial: personagens interessantes e bem desenvolvidos, trama bem amarrada e uma narrativa hábil.
Lisbeth Salander, cuja grandiosidade como personagem não perdeu nada de qualidade em três volumes relativamente grandes, é a personagem feminina em tramas conspiratórias mais bem caracterizada que já li, e foi escrita por um homem que, para mim, mostrou-se incrivelmente despido dos machismos e clichês tacanhos que podemos encontrar numa heroína de mistério e suspense em muitos livros célebres no mundo da literatura. Um dos pontos crucias sobre Lisbeth, é que ela já começa o livro se destacando pela aparência, Stieg Larsson escolheu descrevê-la como alguém que não se encaixa nos moldes da sociedade, e manteve isso do começo ao fim de sua obra. Cheia de tatuagens e piercings, cabelo preto com corte esquisito, pálida e magra demais, Lisbeth não nos parece, num primeiro momento, importante para a trama, já que temos um jornalista bem-sucedido de meia idade que parece tomar toda a narrativa para si. Ledo engano e estratégia fantástica desse saudoso escritor, Lisbeth é a peça que move a trama toda dos três livros, ainda que no primeiro, Super-Blomkvist – amo o apelido -, tenha papel central na investigação do sumiço de Harriet, esse enredo é o ponto de partida para conhecermos a verdadeira heroína da trilogia, que é a Lisbeth.
A trama inteira dos três livros converge para contar a história da personagem mais cativante dos últimos tempos, Larsson nos leva através das lembranças dela e das impressões que causa nos homens a seu redor para mostrar o ser único que sua heroína representa. E Lisbeth é um anjo vingador, não um anjo cheio de beleza e pureza, ela literalmente julga e distribui castigos o tempo todo. E ela odeia homens que odeiam mulheres, simples assim, caras legais tem passe livre, eles são legais, mas para ela não existem monstros, os homens que desprezam mulheres mostram isso violentamente, e ela responde violentamente, sempre. A vingança de Lisbeth é tanto por mão própria quanto por manipulação de terceiros, ela é uma vítima sim, como podemos ver ao longo da narrativa, mas, ela toma a situação em suas mãos e devolve dor com dor, e reconquista o controle, fazendo o que muitas mulheres desejam, que é tirar de seus abusadores algo que eles tiraram delas em certo ponto: dignidade e controle.
Ela desceu da cama, abaixou a cabeça e examinou sua obra com olhar crítico. Seus talentos artísticos eram limitados. As letras, irregulares, lembravam um desenho impressionista. Ela utilizara o vermelho e o azul para tatuar a mensagem, escrita com letras maiúsculas e em cinco linhas que cobriam todo o ventre dele, desde os mamilos até o púbis: SOU UM PORCO SÁDICO, UM CANALHA ESTUPRADOR.
Recolheu as agulhas e guardou as bisnagas de cor na mochila. Depois foi lavar as mãos no banheiro. Sentia-se consideravelmente melhor ao voltar para o quarto.
— Boa noite — disse.
A satisfação plena que sentimos ao ler como ela castiga e desfruta o ato de devolver a dor que recebeu é de subir aos céus, porque não é comum vermos mulheres valendo-se por si mesmas com a mesma liberdade de pensamento e ação que muitos homens. E esse mecanismo de enfrentamento direto e eficiente passa por todos os livros da trilogia, de forma que em todos podemos ver como a mente dela trabalha para chegar a um ponto em que possa efetivamente se vingar de todos que a machucaram, enquanto recompensa quem a tratou bem. Mas, um dos melhores pontos é que ela não é de maneira nenhuma uma Mary Sue à prova de balas, a fragilidade de sua vida, e o fato de que angaria ao longo da trama vários amigos para ajudá-la, só mostra como a personagem é bem construída. Lisbeth não pôde derrotar os inimigos sozinhas, ela teve que contar com a ajuda daqueles que foram cativados por suas maneiras honestas e brutas, que a apreciaram pelo que ela realmente foi.
A vendetta de Lisbeth é extremamente envolvente, porque é contra o homem que de certa forma a moldou, as ações dele foram o gatilho para sua visão clara do mundo e do que era certo e errado. Ser genial não foi por si só um fator determinante na vida dela, e sim o fato que conheceu desde muito pequena seus inimigos: os homens que achavam que mulheres eram mercadoria para usar, bater, estuprar e matar. Comecei essa seleção de livros – para o especial Vendetta – com a Alex Craft, e termino com a Lisbeth, as duas lutaram contra os lobos de suas vidas, mas só uma delas os venceu completamente, a diferença? Lisbeth nunca duvidou em nenhum momento que sua vingança contra eles era certa, a dor deles não a deixou com remorsos, a deixou satisfeita. Sua incapacidade de reconhecer em abusadores sistemáticos seres merecedores de empatia foi seu maior mérito, para ela, vingança era como matemática: você tem que equilibrar a balança, dor se paga com dor. A maior vingança de Lisbeth foi se libertar das amarras, derrubar seus inimigos foi uma consequência. Leiam essa trilogia, não vão se arrepender.