AMAR COMO FLORBELA AMOU

COLUNA UIVOS

POR ROMULO NARDUCCI

*

… e alguns poemas de amor e desamor.

Amar como Florbela Espanca amou, foi para poucos. A poeta alentejana viveu intensamente a dor de amar imersa na solidão e no desencanto em sua alma grandiosa. Flor Bela Lobo (seu nome de nascença) dizia-se perdida, num mundo que não a compreendia e não enxergava a sua imensidão. Uma vate que caminhava sem medo de confessar suas agruras para uma sociedade patriarcal e conservadora à sua época. Era à frente do seu tempo e se fôssemos construir uma realidade alternativa e inseri-la hoje, aqui e agora, em nossa linha temporal, ouso dizer que a poeta não caberia, pois estaria além, muito além, do que chamamos dias atuais.

Florbela ingressou no Liceu Nacional de Évora, tornando-se uma das primeiras mulheres em Portugal a frequentar um curso liceal. E foi lá que teve acesso a todas as obras de autores e poetas que admirava como Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Camilo Castelo Branco, Guerra Junqueiro e Almeida Garrett. O seu “Livro de Mágoas”, lançado em 1919, evocou a emancipação literária do gênero feminino.

Decepções amorosas e problemas com a sua saúde – devido a um aborto involuntário ainda no seu primeiro casamento, que comprometeu os ovários e os pulmões desencadeando um problema de neurose -, de tudo que Florbela viveu e sofreu, nada a atormentou mais em sua vida que a perda de seu irmão Apeles Espanca, com apenas 30 anos de idade, num acidente de avião, em 1927. O amor dedicado ao seu irmão que registra em sua prosa (através dos contos “Máscaras do Destino”) e em sua poesia, ultrapassa a compreensão vã e limitada que temos sobre tal sentimento. A angústia foi tamanha que a levou à sua primeira tentativa de suicidar-se anos após a perda de seu irmão. Florbela, tentou ainda uma segunda vez sem intentar êxito. Mas em 08 de dezembro de 1930, dia do seu aniversário de 36 anos, após ter sido diagnosticada com um edema pulmonar, não suportou a overdose de barbitúricos. Deixou ainda em seu leito de morte o seu último desejo numa carta confidencial onde pedia que fosse colocado em seu caixão os restos do avião pilotado por seu irmão, quando sofrera o acidente.

“Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada … a dolorida …”

(do poema “Eu”, de Florbela Espanca)

A poesia de Florbela Espanca, quase sempre em formas de sonetos, formato pelo qual é mais conhecida em sua obra, exaltava como ninguém o amor. O amor e o amar, se podemos assim dizer. O verbo amar de Florbela atravessava as fronteiras de sua própria alma na observação do mundo ao seu redor. Quando compunha os seus versos que ponteavam a dor, solidão, êxtase e saudade, com a ferocidade da arte que, me perdoem “os” poetas, só “as” poetas têm, o fazia em sua essência natural. O anima, princípio da arte, que é o mesmo princípio feminino, estava presente em naturalidade fundamental em tudo que Florbela Espanca produzia. A sua poesia era a sua vida, é a sua confissão de existência por um mundo onde Florbela Espanca amou como ninguém jamais amou.

AMAR

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui… além…
Mais este e aquele, o outro e a toda gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que eu saiba me perder… pra me encontrar…

MULHER

I

Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta: sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!

Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então vis: “Olhem, vejam
É aquela a infame!” e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!

II

Ó Mulher! Como é fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma imagem
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

SÚPLICA

Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arminho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d’astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente…

Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! …

Vem para mim, amor…Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!…

 

DIZERES ÍNTIMOS

É tão triste morrer na minha idade!
E vou ver os meus olhos, penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!

E logo vou olhar (com que ansiedade!)
As minhas mãos esguias, languescentes,
Mãos de brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão-de morrer em plena mocidade!

E ser-se novo é ter-se o Paraíso
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!

E os meus vinte e três anos…(Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir “Que linda a vida!”
Responde a minha Dor: “Que linda a cova!”

 

*
Ilustração: Jorge Santos