UM INCOMUM AMOR DE INVERNO – CHARLES BERNDT

São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também de despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida[1]

 

Chovia. Chovia e ventava muito. O inverno finalmente chegara ao litoral sul do país. Uma atrasada frente fria, vinda dos confins gelados da Antártida, trazia o frio que os confusos meteorologistas prometiam há algumas semanas.

Lucas descia na rodoviária de Garopaba às 17 horas e sentia que não estava suficientemente agasalhado. Os seus braços, protegidos apenas com uma fina camisa e um suéter, pareciam congelar. A pele de seu pálido rosto estava vermelha, machucada do frio e do vento, e isso o fazia parecer frágil, mais do que era de fato.

Preparara-se para aquela viagem ao sul do Brasil há alguns meses, quando havia dado início ao seu mestrado em antropologia, na Universidade de São Paulo. Decidiria estudar as populações de origem açoriana em Santa Catarina, a cultura e os costumes vindos do Arquipélago dos Açores com os imigrantes portugueses a partir do século XVII e que sobreviveram aos séculos, estando ainda presente na vida de muitas comunidades, como é o caso de Garopaba. Nascido na capital paulistana, Lucas sempre teve contato com essa cultura através do pai, que nascera em Florianópolis e que se mudara para o sudeste aos trinta anos, em busca de emprego. Lá, o manezinho[2] João conheceria Raquel, uma bela e jovem costureira, com quem se casaria e teria três filhos homens, o mais novo deles era Lucas, agora com seus vinte e dois anos.

A pesquisa do jovem antropólogo tinha como principal objetivo descrever o modo de vida das populações ribeirinhas do estado catarinense. Contudo, o que mais o interessava eram as lendas, os causos, as histórias antigas e folclóricas desta região, que misturavam elementos da cultura açoriana com as culturas indígenas, africanas e também com a de outros imigrantes europeus, italianos e alemães, principalmente. Ele guardava vivas na memória as noites em que seu pai contava muitas dessas histórias para ele e seus irmãos – histórias sobre bruxas, lobisomens, fantasmas, boitatás, curupiras, dentre outras personagens sobrenaturais que povoam nosso imaginário. Assim, depois de passar algum tempo em Florianópolis, depois de conhecer muitas vilas e povoados de origem açoriana na ilha de Santa Catarina e de estabelecer contato com alguns pesquisadores da UFSC[3], Lucas chegava a Garopaba, uma pequena cidade ao sul do mundo, onde, segundo seus moradores, estranhos casos acontecem.

Na rodoviária, Lucas pegou um táxi e pediu ao motorista, um homem atarracado e de falar rápido, que o levasse à vila dos pescadores, onde havia alugado uma casa. Quando lá chegou, pôde perceber melhor os detalhes da cidade, as casas antigas coloridas, tipicamente açorianas, próximas à praia, com suas janelas brancas, praticamente coladas ao acostamento das estradas.

– Que bom que tu chegaste antes da chuva, rapaz! – disse o proprietário da casa que Lucas havia alugado, ajudando-o a retirar as bagagens do táxi.

– Obrigado, achei que estaria um pouco menos frio…

– Pois é, pois é. Aqui o tempo é assim, meio doido. É melhor tu entrares.

Era uma casa pequena, mas confortável. Dois quartos, sala, cozinha, dois banheiros e uma varanda, de onde se podia descer para a praia.

– Meu querido – disse o homem que se chamava Joaquim, mas atendia pelo apelido de Joca –, fique à vontade, qualquer coisa que tu precisares, bate ali na peixaria do Antônio, ele sabe onde me encontrar… Ou tu podes me ligar!

– Obrigado. Qualquer coisa eu chamo o senhor, sim! – agradeceu o rapaz.

A chuva piorou naquela tarde e o frio se intensificou, conforme o senhor Joaquim havia previsto. Lucas acomodara-se e agora jantava calmamente na sala, olhando para a cortina de croché que balançava e ouvindo o vento assobiar lá fora, acariciando os beirados do telhado. Podia ouvir, ainda, o mar remexer-se com violência, as ondas debaterem-se na areia da praia. Pensava no pai, falecido há dois anos. Desde que começara aquela viagem sentia a sua presença, não acreditava em espíritos, mas de uma forma que não sabia explicar, tinha a sensação de que o pai estava ao seu lado, alisando seus cabelos, como fazia quando era menino. ”Isso é só saudade, Lucas, só saudade”, dizia para si mesmo, convencendo-se.

Enquanto jantava, ainda lembrou-se das implicâncias dos irmãos mais velhos e do modo como seu pai apartava as brigas e procurava sempre acentuar o lado bom das coisas: ”Não fique com raiva deles, Lucas, são teus irmãos, são dois bobões. Eles têm inveja porque és mais inteligente, porque um dia tu vais ser doutor!”. De fato, João, trabalhador, filho de pescadores, parecia conhecer seus filhos. Dentre os três, o mais novo seria o único a estudar numa universidade e seguir a carreira acadêmica. Lucas recordou-se uma vez mais dos seus dezessete anos, do dia em que fora visto pelos irmãos beijando outro rapaz. Os dois entraram aos pontapés e gritos dentro de casa, ameaçando-o e humilhando-o. E somente o pai, tão diferente da mãe que sempre tivera mais afinidade com os irmãos, o apoiou e o aceitou naquele primeiro momento.

– Ah, pai, que falta me fazes! Por que partiste tão cedo? – e ao dizer isso, Lucas ouviu um estampido, um barulho de vidro quebrado.

Só poucos minutos depois é que se deu conta de que um vaso com flores que estava sobre uma cômoda na sala havia caído no chão, talvez o vento o tivesse derrubado, talvez. Após recolher os cacos de vidro, algo na parede chamou a sua atenção: um pequeno retrato dependurado na parede, pintado à mão, em que se via uma bela e tranquila paisagem – uma praia bastante extensa num dia claro de sol, o mar azul e, ao longe, numa elevação, no alto de uma duna, uma casinha amarelada com janelas brancas, entre algumas palmeiras. Para sua surpresa, quando o vento balançou a cortina mais uma vez, pôde ver, pelo vidro da janela, a mesma paisagem lá fora, a praia, a casinha e o mar, com a diferença de que anoitecia e chovia muito.

*

No dia seguinte, o sol brilhava como nunca e o céu azul era cortado por brancas e calmas nuvens. Nem parecia que havia ventado e chovido de forma torrencial no dia anterior. O frio diminuíra consideravelmente e Lucas aproveitou para sair, para passear na praia, molhar os pés na água fria e salgada. A sua curiosidade levou-o para perto daquela pequena casa localizada no alto de uma duna, na direção norte da praia, que vira no dia anterior. Caminhou sem pressa e com uma calma que parecia não ser sua. Quando finalmente estava a poucos metros do lugar, percebeu que não se tratava de uma casa abandonada, pelo contrário. Da chaminé, saía uma leve fumaça acinzentada, as janelas estavam abertas e, num varal improvisado, alguns lençóis brancos balançavam, como bandeiras num mastro. No quintal da casa, sob a sombra das palmeiras, via-se algumas redes de pesca e uma canoa baleeira, ainda molhada da chuva.

Lucas se aproximou ainda mais e pode ver o interior da singela residência, que parecia bastante limpa e arejada, com cortinas brancas, vasos de flores, além de telas e quadros por toda parte, inúmeras pinturas feitas a óleo dependuradas ou recostadas num canto.

– Quer alguma coisa, moço?! – perguntou uma voz masculina, às costas de Lucas.

Quando se virou, o jovem antropólogo viu um homem de rosto simpático encará-lo. Os seus cabelos eram castanhos escuros, encaracolados, cobrindo-lhe a testa e parte dos olhos, que também eram acastanhados. A barba por fazer e a camisa regata davam-no um ar de espontaneidade e naturalidade.

– Desculpe-me. Eu não sou daqui, estava caminhando pela praia, vi sua casa de longe e fiquei curioso… – respondeu Lucas envergonhado.

O homem observou-o por alguns segundos e disse, com um semblante gentil:

– Tudo bem… Só estranhei porque ninguém nunca vem aqui. Quer café?

 Lucas não poderia negar, não depois de quase invadir aquela casa.

– Manoel, muito prazer! – disse o homem, estendendo-lhe a mão larga, marcada pelas redes de pesca.

– Lucas – disse o antropólogo, um pouco sem jeito, apertando a mão do outro sem muita força.

Os dois seguiram para dentro da casa de Manoel. Lucas sentiu um cheiro bom de café recém-feito e antes que pudesse dizer qualquer coisa, Manoel já estava a lhe servir uma xícara.

– Modéstia à parte, o meu café é muito bom. Acho que vais gostar.

– Obrigado – agradeceu Lucas sentando-se numa cadeira e voltando a reparar na grande quantidade de telas e quadros que havia na casa, a maioria depositados no chão, recostados à parede.

– Eu gosto muito de pintar, é o que faço para passar o tempo. Nem todo dia dá para pescar.

– São lindos, você deveria, talvez, vendê-los!?

– Eu já fiz isso. Mas não sei, hoje em dia prefiro deixá-los aqui. Não são nada de mais, sabe?

– Eu não diria isso, acho que desta vez está sendo modesto demais. Deveria falar das pinturas como fala do seu café!  – Manoel riu com o comentário e agradeceu:

– Obrigado, você é muito gentil.

– Aliás, na casa onde estou hospedado, há uma pintura muito semelhante… Não será sua, também?

Diante da pergunta de Lucas, Manoel baixou os olhos e respondeu, num tom melancólico:

– Pode ser… Mas há muita gente que pinta aqui em Garopaba, pode ser de outra pessoa.

– Bom, o traço é muito semelhante ao seu, aliás…

– E de onde você é, Lucas?  – interrompeu Manoel, pousando a xícara de café com força na mesa.

– Eu sou de São Paulo…

– E o que um moço da cidade grande faz por aqui, ainda mais em Garopaba?

– Bom, eu faço mestrado em antropologia. Estudo a cultura de origem açoriana do litoral de Santa Catarina…

– Que interessante, eu nunca conheci um antropólogo. Espero que encontres o que procuras aqui!

Neste momento, Lucas sentiu que os olhos de Manoel, onde havia uma estranha negrura, qualquer coisa de misterioso e ao mesmo tempo uma certa melancolia, observavam-no com mais atenção, como se pudessem transpassar o seu corpo, ver dentro de si. Encabulado, rompeu o silêncio:

– Obrigado. Mas se o senhor quiser, pode contribuir com minha pesquisa. No momento, estou colhendo entrevistas, relatos de pessoas a respeito das lendas e causos locais, você sabe, histórias de bruxas, lobisomens, fantasmas…

– Claro, seria um prazer. Mas somente com uma condição. Aliás, duas. Tudo bem?

– Sim… quais?

– Primeiro, não vais me chamar mais de senhor. Não sou assim tão mais velho que tu!  – Manoel levou sua mão ao ombro de Lucas, que pôde sentir uma onda de calor tomar conta de seu corpo, subindo do baixo-ventre ao coração – Em segundo lugar, peço que não contes na cidade que me conheceu e que estás vindo aqui.

– Por que não podem saber que te conheci?

– Bom, eu sou uma pessoa bastante solitária, todos me olham de modo estranho, julgam-me por viver só. Não quero que isso atrapalhe o teu estudo, que os outros não te deem as entrevistas por minha causa.

Lucas concordou com as condições, mas ficou bastante intrigado, por que as pessoas não gostavam de Manoel? Ele parecia ser tão simpático. Lembrou-se então do modo como ele próprio era tratado no lugar onde nasceu e então compreendeu. Todos aqueles que de alguma maneira são diferentes acabam por ser excluídos e vítimas do preconceito.

– Lucas, preciso ir ao mar. Por que tu não voltas no fim da tarde, ao anoitecer? Terei alguns peixes para te oferecer, além das histórias que queres ouvir, claro.

– Certo, volto depois, então!

O jovem antropólogo se animou com a nova amizade que fizera naquela manhã e prometeu retornar, para ouvir as histórias e também conhecer um pouco mais aquele homem incomum, pintor e pescador, que parecia fazê-lo reviver algo distante, perdido, talvez a presença do pai. Antes de partir, viu Manoel puxar a canoa baleeira e lançar-se ao mar, com suas redes, verdadeiro filho de Proteu. Sem que soubesse explicar, seu coração torcia para que aquele dia passasse depressa e tão logo seus olhos vissem chegar a noite, com suas promessas e encantos dúbios.

*

Ao longo do dia, Lucas aproveitou para conhecer a cidade, passear pela praça, ver o comércio, conversar com um ou outro morador mais antigo, a fim de começar sua recolha de relatos e histórias. Mas uma coisa não saía de sua mente: Manoel. Não conseguia parar de pensar no pescador, no modo simples como ele o havia tratado, na sua voz, nos seus olhos, na sua mão tocando seu ombro… Quando finalmente o sol se escondeu atrás da montanha e seguiu seu caminho para o Ocidente, Lucas já havia pegado tudo o que precisava, seu gravador, seu caderno, lápis, papel, um casaco e um guarda-chuva. Caminhando com certa pressa, logo chegou à casa de Manoel. As janelas estavam fechadas, mas as luzes acesas. No primeiro toc-toc, um homem sorridente, vestindo uma limpa camiseta branca, apareceu, abrindo a porta.

– Olá, Manoel. Vim para colher teu relato, espero não estar…

– Lucas! Estava a te esperar. Eu fiz algo especial para ti. Entre.

Assim que entrou na casa, Lucas sentiu um cheiro forte, mas agradável. Era cheiro de peixe. Sobre a mesa, dois pratos, dois copos, uma panela de barro.

– Fiz sardinha. Espero que gostes! É o meu melhor prato, devo dizer…

Lucas sentou-se à mesa, um pouco inquieto e ansioso, deixando que Manoel o servisse com calma. Quando levou a primeira colher à boca, teve a sensação de ir ao céu. Era a melhor sardinha que já provara.

– Qual é o teu segredo? Está muito bom…

– Segredo. É uma receita que aprendi com minha vó.

Aos poucos, comendo e bebendo vinho, os dois homens foram se soltando, falando mais sobre si. A verdade é que Manoel era quem parecia controlar a conversa, fazendo perguntas e ouvindo Lucas falar sobre sua vida, sua família, seus sonhos… O jovem antropólogo já sentia a bochecha arder e estremeceu quando percebeu que a mão de Manoel tocava seu braço – era um toque quente, sentia-se como uma mariposa sendo tocada pela luz de um lampião.

– Quero te mostrar algo, venha! – disse Manoel pegando-o pelo braço e levando-o para fora da casa – Veja, Lucas, este é o céu daqui… Você consegue ver tantas estrelas em outro lugar?

Lucas ficou impressionado. Com a baixa luminosidade, o céu noturno estava tomado por pontos brilhantes, os braços leitosos da via láctea eram facilmente reconhecidos.

– É lindo, Manoel, lindo…

– Não tão lindo quanto tu… – dizendo isso, o pescador colocou levemente sua mão na cintura de Lucas e o beijou, na boca. Foi um beijo quente e demorado.

– Perdoa-me se estou sendo precipitado, mas quase não posso resistir, desde que apareceste aqui pela manhã, não paro de pensar em ti…

– Eu também.

– Dormes aqui? – perguntou Manoel.

– Não sei se devo. Você ainda é um desconhecido para mim.

– Um outro motivo. Aliás, dois: ficando, tu me conheces mais e eu posso te contar as histórias que prometi, ao pé do ouvido, se quiser.

Sorrindo, Lucas voltou a beijar Manoel. Há coisas que se dizem assim, com beijos. Abraçados, os dois homens voltaram para dentro da casa. Foram para o quarto de Manoel, que era muito simples, com uma cama e um pequeno guarda-roupa apenas. Com beijos no pescoço, os dois deitaram-se e entregaram-se um ao outro. Assim, aquela foi a primeira noite que o jovem antropólogo dormiu na casa de Manoel, um solitário pescador de Garopaba, que pintava telas que não mostrava a ninguém.

*

Uma semana havia se passado desde que Lucas chegara em Garopaba. Durante o dia, ele aproveitava para conversar com alguns moradores, colher o necessário material para sua pesquisa. Nos fins de tarde, contudo, quando a noite caía, ele saía sorrateiro de casa e ia ter com Manoel.

– Achei que você não viria hoje – disse o pescador, ao abrir a porta e ver o rosto pálido de Lucas. Antes de entrar, os dois se beijaram demoradamente.

– Perdoa-me. Quando estava quase saindo de casa, o proprietário da casa em que estou bateu à porta – disse Lucas sentando-se.

– E o que ele queria?

– Nada de mais. Apenas me disse para visitar sua mãe amanhã à tarde, disse-me que ela é uma das pessoas mais velhas da região e que é importante que eu converse com ela… Com certeza ela poderá me contar muitas histórias.

– Sim, é verdade, dona Amélia, além de benzedeira, é uma excelente contadeira de histórias – disse Manoel, num tom sério e tristonho.

– Você a conhece? Como sabe que se trata da dona Amélia, a mãe do senhor Joaquim?

– Bom… quer dizer…

Manoel levantou-se e se sentou ao lado de Lucas, abraçando-o carinhosamente.

– Escuta, meu querido, Garopaba é muito pequena, eu conheço as pessoas, é só isso…

– Tive a impressão que você conhece essa senhora. Acha que devo visitá-la amanhã?

Manoel encarou Lucas por alguns segundos e respondeu, num tom meigo e melancólico:

– Deve, sem dúvida. Agora, venha cá, quero te mostrar uma coisa…

Num canto, perto da janela da sala, que dava para o mar, havia uma tela, pousada sobre um cavalete. Lucas pode discernir apenas alguns traços feitos a lápis.

– É uma nova tela que você está pintando?

– É uma ideia antiga, mas que agora tem mais sentido… olhe bem. Não é familiar para ti?

Lucas aproximou-se e viu que se tratava de um homem, sentando em um sofá, a olhar para a janela. Precisou de alguns segundos para compreender que ele era o homem na tela.

– Sou eu?

– Sim, mas é só o rascunho. Quero começar a pintar hoje, agora, se permitires.

– Agora?

– Sim… Preciso que tu te sentes no sofá, olhe para a janela… Ah! É melhor tirar a camisa, também.

– Isso foi um pedido?

– Por favor…

Lucas então sentou-se no sofá, retirou a camisa e imitou a posição do desenho.

– Perfeito, senhor antropólogo! Como te sentes?

– A verdadeira Rose, pousando para Jack Dawson, no Titanic.

Sorrindo, Manoel começou a pintar o desenho, a preenchê-lo com suas tintas. Lá fora, a noite era quieta e fria. Fechando os olhos, não era impossível se imaginar no ártico, entre icebergs, flutuando sobre destroços de madeira, remanescentes de um naufrágio, a pele congelando e Jack Dawson – pobre Jack – no fundo do oceano.

*

Ao amanhecer, a primeira coisa que Lucas viu ao acordar foi o rosto de Manoel, que dormia tranquilamente ao seu lado. Os cabelos do pescador cheiravam a camomila e ele sentiu que poderia ficar ali para sempre, envolvido naquela paz, naquela calma, o barulho do mar e o sol entrando na casa levemente, como se batesse à porta devagarinho. Quando fez sinal que se levantaria, sentiu uma mão puxá-lo de volta para a cama:

– Fique mais um pouco… – disse Manoel, sorrindo.

– Bom dia, meu querido. Preciso ir… Combinei de visitar a dona Amélia. Preciso entrevistá-la.

Manoel abraçou Lucas com força e o beijou.

– Escute uma coisa, Lucas… –  disse o pescador no ouvido do rapaz – quero que saibas que foste a melhor coisa que me aconteceu nos últimos tempos. Eu esperava por ti… Não sei explicar. Tu acreditas em premonições?

– Por que dizes isso? Não gosto desse tom. Parece uma despedida…

– A vida é feita de encontros e despedidas. Despedimo-nos numa estação e nos encontramos de novo numa outra, mais à frente.

Pouco tempo depois, Lucas se vestiu e em alguns minutos caminhava pela praia em direção à vila dos pescadores. Teve a intuição de olhar para trás e viu que Manoel o olhava, da janela. Se as suas pernas faziam-no seguir em frente, seu coração lhe dizia para ficar, para voltar àquela casa, onde vivera quentes e inesquecíveis noites de amor, nos últimos dias.

*

Dona Amélia morava na rua do cemitério, não muito distante de onde Lucas estava hospedado.

– Ah, é já ali em frente, naquela casa com jardim! – disse o senhor Joaquim, que acompanhava Lucas até a casa de sua mãe.

A casa de Dona Amélia possuía um vasto e colorido jardim, com muitas margaridas, crisântemos e marias sem vergonha. Havia também muitos gatos, todos muito dóceis, que vieram se roçar na perna de Lucas, assim que ele entrou no quintal.

– Eu esperava por vocês, que bom que vieram – disse uma senhora de rosto simpático, com os cabelos muito brancos, aparentando ter mais de noventa anos.

Lucas sentou-se em um sofá e aguardou que dona Amélia se sentasse também.

– Joaquim, meu filho, obrigado por acompanhar o rapaz, agora já podes ir.

– Mas mamãe, não posso ficar e ouvir a conversa?

– Não, não. Vá cuidar dos teus negócios. Volte mais tarde, e traga-me aquele peixe. Chispa!

Mesmo um pouco contrariado, o senhor Joaquim acabou por deixar Lucas e dona Amélia sozinhos. Foi a velha quem quebrou o silêncio:

– Bom, meu filho, obrigado por ter vindo. Fui eu quem pediu ao Joaquim para te trazer aqui…

– Ah! A senhora soube que eu estava na cidade a recolher relatos?

– Sim, tudo se ouve e se comenta por aqui – disse a velha sorrindo. Queres café, chá, suco?

– Eu agradeço, mas estou satisfeito. Podemos começar, posso ligar o gravador?

Assim, durante quase cinquenta minutos, Lucas esteve a ouvir dona Amélia a narrar uma série de causos e histórias folclóricas, a maioria delas envolvendo bruxas, bernunças e pescadores desavisados, que saem ao mar em dias de tormenta.

– Obrigado pela sua contribuição, dona Amélia… Foi de grande ajuda…

– Não tem de quê, meu filho, não tem de quê. Uma velha como eu pelo menos ainda serve para contar algumas histórias antigas! – disse dona Amélia bem-humorada.

Neste momento, os olhos de Lucas pousaram num quadro na parede. Na pintura, via-se uma mulher sentada numa cadeira, com um gato no colo. Ao fundo, um jardim, repleto de flores.

– Ah… Lá está. Eu amo essa pintura – disse a velha, num tom melancólico.

– É lindo…

– Sou eu na pintura, sabe? Eu e o Floriano, um gato que já se foi, muito querido. É claro que eu também pareço mais nova… Essa pintura deve ter uns quinze anos.

– E quem foi que a fez?

– Meu neto.

– Lembra-me uma outra pintura, que está na casa onde estou hospedado…

– Sim, sim. Também é dele. O que ele mais gostava de fazer era pintar, desde menino… Eu comprava tintas, telas, papéis, e ele pintava… Tanto talento.

– Mas onde ele está? Não pinta mais?

– Ele morreu, meu filho. Há três anos.

– Sinto muito…

Dona Amélia levantou-se e foi até um outro cômodo. Quando voltou à sala, trazia uma tela nas mãos.

– Veja, esta foi a última pintura que ele fez, está ainda inacabada… – disse a velha entregando a tela nas mãos do rapaz.

Quando os olhos de Lucas pousaram naquela pintura, ele sentiu seu coração disparar e seu estômago contrair-se. Nas suas mãos estava o mesmo quadro que vira Manoel pintar na noite anterior. No centro da pintura um homem jovem, de pele pálida, sem camisa, sentado numa cadeira, a olhar para a janela de dentro de uma casa simples. Sem que pudesse explicar, ele sabia que ele era o homem naquela pintura.

– Como se chamava o seu neto, dona Amélia? – Perguntou, embora já soubesse a resposta.

– Manoel.

Lucas não aguentou. Sem nem mesmo se despedir de dona Amélia, levantou-se e saiu correndo. Atravessou o quintal e ganhou a rua. Corria feito um louco, em direção à praia, à casa de Manoel. Não poderia ser verdade, o homem com quem estivera naqueles últimos dias estava vivo, tinha certeza disso, havia sentido seu calor, seu corpo… Qual seria a explicação para aquilo tudo? Enquanto corria, tentava se acalmar, dizer a si mesmo que encontraria Manoel sentado, costurando uma rede, olhando para o mar, pronto para abraçá-lo e beijá-lo.

Quando finalmente chegou à casa de Manoel, Lucas não reconheceu o lugar. A casa estava completamente abandonada, como se não fosse habitada há anos, com as janelas e as portas quebradas. Dentro da pequena residência, não havia nada, somente alguns móveis de madeira, já apodrecidos, e, pelos cantos, via-se alguns pincéis, recipientes com tinta velha e seca. Desesperado, Lucas ainda reuniu forças para um grito: MANOEL! Uma gaivota, assustada, voou da palmeira. Parecia um dia comum de inverno.

*

Durante três dias, Lucas esteve trancado em casa, não saiu nem viu ninguém. Nas três noites, sonhou com Manoel e também com seu pai. Sonhou que os batiam em sua porta, com flores nas mãos. O pai tentava convencê-lo a abrir a porta e Manoel lhe pedia desculpas, dizia que deveria ter contado tudo desde o início. E então despertava do sonho, sem que pudesse responder ao pescador.

Mas na manhã do quarto dia, alguém de fato bateu à porta, pela manhã. Lucas reuniu forças e decidiu abrir. Para sua surpresa, era uma velha senhora, vestida com botas, capa de chuva e um pacote nas mãos.

– Bom dia, meu filho. Está chovendo. Posso entrar?

Sem jeito para dizer não, Lucas deixou que dona Amélia entrasse. A casa estava uma bagunça, mas ele não se importou, convidando-a para se sentar na sala.

– Eu fiquei preocupada. Tu saíste correndo da minha casa… Como estás, meu filho?

Sem responder, Lucas encarou a senhora e só desta vez reparou que ela tinha os mesmos olhos de Manoel, isto é, o neto é que deveria ter os mesmos olhos da avó.

– Meu filho – continuou a idosa –, eu vim aqui para te dizer uma coisa. Preciso que me escutes.

– Tudo bem, dona Amélia. Sou eu quem deve pedir desculpas, pelo modo como deixei a sua casa naquele dia… Não foi minha intenção, mas…  – Lucas teve que parar, mal conseguia segurar o choro.

– Sente-se aqui ao meu lado – pediu a mulher. Obedecendo, o rapaz sentou ao seu lado e sentiu-se melhor quando ela apertou sua mão. – Sabe, continuou ela, eu chamei você na minha casa porque tinha uma desconfiança.

– Uma desconfiança, dona Amélia?

– Sim, desconfiança, intuição de gente antiga, chame do que quiser. Mas sabe, meu filho, no dia em que morreu, Manoel esteve na minha casa. Foi quando ele me entregou a sua última pintura, pediu para que eu a guardasse. Sabe o que ele me falou?

– O quê?

– Que ele havia sonhado com um rapaz… Com um rapaz que ainda não conhecia, mas que um dia iria conhecer, que viria de longe para Garopaba. Disse, ainda, que havia pintado aquela pintura para não esquecer quando o visse.

Lucas ouvia com atenção, tentando encontrar algum sentido nas palavras de dona Amélia, que continuou:

– O meu neto era um homem diferente… Ele era como tu, meu rapaz, sabe?! Ele não se interessava por gurias, mas por guris. Isso fez dele uma pessoa solitária. Quando tinha vinte e cinco anos, deixou a capital, onde morava com minha filha, sua mãe, e veio para cá. Decidiu comprar aquele terreno perto da praia, onde construiu aquela casa e lá viveu por alguns anos, pescando, pintando e vendendo seus quadros na feira de artesanato. Até que um dia aconteceu aquilo…

– Aquilo o quê, dona Amélia?

– Voltando do centro da cidade, numa manhã de sábado, dois homens o perseguiram, o espancaram e o assassinaram ali mesmo, no quintal da sua própria casa. A polícia disse que foi um assalto, uma tentativa de roubo, qualquer coisa assim. Mas eu me pergunto até hoje: o que eles roubariam do meu neto, que não tinha quase nada? Por que não levaram nada, nem mesmo os quadros? Eu sei porque mataram o meu neto, moço. Ele foi morto porque era diferente. Muitas vezes eu vi as pessoas comentando sobre ele, falando baixinho, acusando-o de coisas que não fez, excluindo-o e o discriminando.

Lucas tinha o rosto tomado por lágrimas. Apertava com força a mão de Dona Amélia, reunindo forças para poder responder algo:

– Obrigado por vir aqui me contar tudo isso, dona Amélia. É muito importante para mim.

– Eu sei que você o conheceu. Sei que esteve lá e que o viu, que conversaram.

– Mas, dona Amélia, como isso é possível? O seu neto morreu há três anos e eu, sem que possa explicar, estive com ele durante vários dias. Não só nos vimos ou conversamos, nós nos tocamos, a senhora entende?

– Entendo. Entendo e acredito. Se ele tivesse me contado que havia conhecido você, eu teria tido mais cuidado naquele dia em que tu foste à minha casa.

– A senhora também o vê?

– Nos sonhos. Aliás, nesses três dias ele mal me deixou dormir em paz. Pediu para que eu viesse aqui, conversar contigo, tu sabes como ele é teimoso… Aqui está, este quadro é teu – disse dona Amélia entregando o embrulho a Lucas. Rasgando o papel, Lucas viu, mais uma vez, aquele misterioso quadro que supostamente Manoel havia pintado e entregado para a avó, há três anos, antes de sua morte.

– Mas e este quadro? Sou eu nesta pintura?

– Meu filho, tens a prova nas tuas mãos – disse a velha sorrindo.

– Manoel sonhou comigo antes de me conhecer… Será possível?

– Sim… Talvez vocês até já se conhecessem, de outras vidas, não é assim que dizem por aí? Que nós não morremos, que renascemos e que nos reencontramos!?

– Sabe, dona Amélia, eu vim para cá em busca de ouvir e recolher histórias e causos fantásticos para minha pesquisa. Quando é que imaginaria que eu próprio me tornaria o protagonista de uma história dessas?!

– Coisas da vida e do destino, meu filho. O que tu viveste com meu neto talvez tenha acontecido em outro plano, dentro da cabeça de vocês dois… Tu aqui e ele lá, do outro lado da vida. Mas por que o que acontece dentro das nossas cabeças não é real, não é de verdade?

Emocionado, Lucas abraçou dona Amélia e uma vez mais chorou. Sentia-se, contudo, em paz. Quando olhou para a janela, através do vidro, teve a sensação de ver um homem apoiado no portão, os cabelos encaracolados ao vento, vestindo uma regata branca e sorrindo. Manoel parecia feliz, talvez ele não voltasse para aquela casa, no alto da duna.

*

O calor era intenso no centro de São Paulo. Lucas caminhava com certa pressa no meio da multidão e do barulho de carros ensurdecedor. Dirigia-se a uma apertada viela, famosa por seus cafés, livrarias e lojas de livros usados, os chamados sebos. Gostava de vir ali desde criança, folhear e descobrir livros antigos, era como entrar em um universo paralelo.

Depois de caminhar por alguns minutos, reparando tranquilamente nas vitrines, Lucas entrou em um dos sebos de que mais gostava. Assim que entrou no local, seu olhar cruzou com o de um rapaz, que estava atrás do balcão, um novo atendente certamente, já que é a primeira vez que o vejo aqui – pensou.

Os olhares dos dois voltaram a se encontrar mais uma vez e Lucas reparou que o atendente se aproximava, vinha até ele, no fundo do sebo.

– Com licença, eu posso te ajudar, procura algo em específico? – disse o rapaz, que tinha os cabelos e os olhos muito negros e um sotaque diferente, agradável de se ouvir, certamente da região norte do país.

– Olá, na verdade estou só olhando mesmo – disse Lucas sem jeito. O atendente, um tanto decepcionado, sorriu e voltou ao balcão.

Alguns minutos depois, o antropólogo voltou ao balcão:

– Perdoa-me… eu lembrei de um livro que estou procurando há muito tempo. Você pode ajudar?

– Claro! Qual seria o livro?

– Chama-se O livro dos espíritos, de Allan Kardec.

– Ah! Claro! Temos muitas edições d’O livro dos espíritos, siga-me, por favor – o rapaz levou Lucas até uma prateleira mais afastada, onde havia não só o livro o qual ele procurava, mas inúmeras obras semelhantes.

– Aqui você vai encontrar todo o pentateuco espírita e há também as obras de André Luiz… – o atendente parecia estar animado enquanto falava sobre aqueles livros.

– Obrigado… Vou dar uma olhada com calma…

Mas antes que ele desse as costas, Lucas perguntou:

– Desculpa-me a intromissão, mas você já leu esses livros, sabe algo sobre…

– Espíritos?

– Isso, espíritos.

– Bom, eu sou espírita, nasci em lar espírita. Posso dizer que sei alguma coisa, sim.

– Fascinante…

Então, durante quase meia hora os dois estiveram a conversar sobre espiritualidade, mediunidade e fenômenos espíritas.

– Perdoa-me, eu ainda não sei teu nome – disse Lucas.

– Emmanuel.

– Como o mentor do…

– Sim, como o mentor do Chico Xavier. Como te disse, meus pais são espíritas.

– Sou Lucas.

– Como o evangelista?

Os dois rapazes riram, trocaram número de telefone e combinaram de tomar um café num outro dia, após o trabalho de Emmanuel, para conversar sobre espíritos, mediunidade e poderem se conhecer melhor. Enquanto seguia para casa, já no metrô, o jovem antropólogo, que defendera sua dissertação de mestrado no mês anterior, lembrava-se com carinho do que vivera em Garopaba. No meio da viagem, da janela do vagão, ao parar em determinada estação, viu, a alguns metros, dois homens vestidos de branco, parados, aguardando um metrô que seguiria na direção inversa. Lucas reconheceu então seu pai e Manoel, sorrindo e acenando para ele. Com lágrimas nos olhos e perdendo-os de vista, quando o vagão começou a se mover novamente, o jovem antropólogo compreendeu o que Manoel dissera no último dia em que se viram: A vida é feita de encontros e despedidas. Despedimo-nos numa estação e nos encontramos de novo numa outra, mais à frente.

Em seguida, ainda com lágrimas nos olhos, abriu o livro que comprara no sebo e leu, na folha de rosto: ”Sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens; as leis morais, a vida presente, a vida futura e o futuro da Humanidade…”. Sentiu que tinha muito ainda por estudar e conhecer. Parafraseado Shakespeare e indo um pouco mais além, considerou que talvez nossa filosofia já tenha não só suposto, mas desvendado muitos mistérios. Somos nós, orgulhosos e vaidosos, cegos de coração mais do que de olhos, que nos negamos a enxergar o óbvio. A vida vai muito além do que muitos de nós supõe e ele próprio tinha experienciado isso no último inverno, de um modo bastante incomum.

[1]              Trecho da canção Encontros e despedidas, composta por Milton Nascimento.
[2]             Manezinho ou manezinho da ilha é o nome popularmente utilizado para designar os nativos de Florianópolis.
[3]             Universidade Federal de Santa Catarina.

 

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Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.