A paixão costuma ser egoísta. Não à toa, quando comparada ao amor, aquela é vista como sentimento menor, por mais avassalador que seja, por ser fugaz, apesar de intenso. O egoísmo da paixão reflete a necessidade que o apaixonado tem em suprir suas carências encontrando no outro, comumente adjetivado de “vítima”, a fonte da felicidade, a mesma que incessantemente buscamos na esperança de, um dia, encontrá-la.
No entanto, a paixão passa a ter um caráter positivo a partir do momento que a obsessão do apaixonado deixa de ser “quem” para se tornar “o que”. A paixão por ideais promoveu mudanças significativas na humanidade ao longo de sua história e foi responsável pelo surgimento de personalidades que, de meros humanos, foram alçadas ao admirável patamar dos símbolos. Listar tais nomes seria tarefa prazerosa, porém hercúlea e infindável. Mas tenho certeza de que alguns nomes foram facilmente lembrados por você, caro(a) leitor(a). O mesmo aconteceu do lado de cá.
Na ficção, acontece algo semelhante e, quando foi dada a mim a tarefa de escrever algumas linhas relacionadas ao tema da presente edição da Vício Velho, imediatamente veio à lembrança um tipo de paixão intrínseca à minha pessoa: a paixão por ensinar. Logo, não foi complicado pincelar dois exemplares que trazem em seus protagonistas modelos de tutores em narrativas que, às vésperas do início de um novo ano letivo ou nos momentos de desânimo, revigoram o entusiasmo de professores e professoras.
ERIN GRUWELL (Escritores da Liberdade, 2007)
Erin Gruwell é uma idealista. Ciente de que a escola é o espaço propício para mudanças socais, a jovem abre mão de uma promissora carreira na área do Direito para dedicar-se ao ensino. No entanto, a professora novata não imagina o tamanho dos obstáculos que encontrará pela frente, nem do quanto precisará abrir mão para a realização de um sonho.
Inspirada numa história real ocorrida no início dos anos 1990, Escritores da Liberdade (Freedom Writers) é uma produção pouco conhecida do público, mas muito comentada nas salas dos docentes de qualquer escola e entre estudantes de Pedagogia. Na trama, a Srta. Gruwell, como é chamada pelos alunos, recebe como tarefa lecionar a disciplina de Inglês para uma turma de inclusão, composta por alunos que possuem dificuldades de aprendizado. No entanto, Erin descobre que os estudantes têm, além de dificuldades, uma perspectiva limitada do que é a vida, já que são frutos da rivalidade que separa latinos, negros, brancos e orientais na violenta periferia de Los Angeles.
Em Erin Gruwell, encontramos uma paixão tamanha pela força da mudança, aquela proveniente do conhecimento, este do qual os jovens são negligenciados por aqueles que deveriam fornecê-lo. A docente precisa driblar o sistema para convencer seus superiores do potencial de seus alunos, contudo a tarefa mais desafiadora está em despertar nos jovens um olhar amoroso deles para eles mesmos, ensinando valores como tolerância, respeito e amizade. Para isso, a protagonista interpretada por Hilary Swank desdobra-se em três empregos, coloca seu casamento em risco e compromete sua relação com o pai para proporcionar aos seus pupilos aquilo que o sistema nega: um horizonte. Apenas a paixão é capaz de realizar a transformação que motivou esta modesta produção da MTV Films, em parceria com a Paramount Pictures e dirigida por Richard LaGravenese (P.S. Eu Te Amo). Longe de ser perfeito ou digno de ocupar um lugar no panteão dos clássicos do cinema, Escritores da Liberdade é um filme modesto que, em sua simplicidade, consegue dar o recado com uma linguagem capaz de prender a atenção dos jovens, claramente o público-alvo do longa-metragem.
JOHN KEATING (Sociedade dos Poetas Mortos, 1989)
Não é equívoco algum afirmar que, ao lado de Mark Thackeray (Ao Mestre, Com Carinho, 1967), John Keating é um dos professores mais queridos pelos cinéfilos. Tudo porque a visceral interpretação de Robin Williams resultou em algo maior do que uma personagem dramática: um modelo de educador que, ainda hoje, inspira professores, sejam eles iniciantes ou em fim de carreira.
O que provoca tamanho feito é a paixão que Keating tem pela vida e pela poesia, enxergando em ambas uma relação intrínseca, onde uma depende da outra para existir. É com essa filosofia que Keating inflama os corações de seus jovens aprendizes que, diferentemente dos alunos de Erin, possuem tudo aquilo de melhor que os bens materiais podem oferecer, menos o essencial: paixão. Destinados a seguirem carreiras pré-determinadas e responsáveis por atingir a excelência exigida pela escola e pelos familiares, os discentes de um tradicional colégio para rapazes são obrigados a abrir mão de seus sonhos, profundamente enterrados no âmago de seus seres.
Uma frase em latim muda tudo: “Carpe diem”, sussurra Sr. Keating, no primeiro dia de aula. É o início de uma transformação pessoal que rompe com padrões e molda o caráter singular de cada garoto, privado, até aquele instante, de identidade.
A paixão de Keating é o que faz de Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society) um filme ainda relevante, mesmo produzido há quase trinta anos. A mensagem que fica é a de que todos possuímos uma voz única, que não tem e nunca terá substituta, e que deixará de ressoar ao darmos o suspiro definitivo. Por isso, devemos “aproveitar o dia” e, nas palavras do próprio Keating, “contribuir com um verso” para a poesia da vida.
Este sim um clássico, o longa de Peter Weir transborda paixão em cada frame. A paixão pela arte, pelos versos, pelo amor, pelo ser humano, pela vida. Como cinéfilo apaixonado e professor, tenho em Sociedade dos Poetas Mortos o que gosto de chamar de “filme de cabeceira”, aquele que precisa ser visto ao menos uma vez por ano. É ou não apaixonante?
***
Vanderson Santos (E-mail) é Mestre em Letras, especialista em Análise do Discurso, cinéfilo e fã da cultura nerd/geek. Não dispensa um bom papo, muito menos um bom café.