OBSERVANDO MAMUTES – MURILLO GARCIA

Eu vim aqui para saber se sou esquizofrênico… ou bipolar.

Foram essas as palavras que escolhi para iniciar meu processo terapêutico, anos atrás. Talvez tenha sido o nervosismo que sempre permitiu a deturpação (ainda maior) do meu senso de humor ou o clima etéreo provocado pela poltrona confortável, uma iluminação indireta e o tique do relógio que não parava na mesinha ao meu lado, mas, sem perceber, lá estava eu vomitando diagnósticos que pudessem justificar as minhas caraminholas e a grana que estava deixando ali. Diferente de muitos que passeiam munidos dos mais diversos absurdos psiquiátricos, eu nem me dei ao trabalho de procurar o que poderia constituir uma esquizofrenia ou bipolaridade no Google. Apenas agi num misto de achismo e certo drama – Van Gogh era uma inspiração desde os anos de Enciclopédia do Estudante, Almodóvar só apareceu depois.

A primeira sessão foi um encontro do programa da Gabi com o analista de Bagé: para cada pergunta, uma resposta rápida e engraçadinha sobre as mais remotas lembranças de mamãe com o avental todo sujo de ovo e meu lenga-lenga de largar o mundo da Informática para estudar Cinema. Ou Letras. Ou Teatro. Ou Jornalismo. Ou qualquer profissão que pague bem para eu escrever. Melhor ficar com a Informática mesmo. Eis que o xeque-mate veio após 50 minutos cravados: Olha, já deu pra perceber que bipolar você não é… Então eu posso ser esquizofrênico? Você quer marcar para semana que vem? Por que você não negou a esquizofrenia? Você sabia que grandes artistas possuem traços esquizoides? Numa sensação que misturava desconforto, incredulidade e a mórbida curiosidade de saber até onde aquilo poderia dar, reapareci no consultório seis meses depois.

Sou um pouco reticente.

Comecei a segunda sessão culpando meu Marte em Peixes: se me chamam para o conflito, prefiro sacar um ukulele e soltar um “Imagine” ou um “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” – eu nunca sei o nome dessa música, mas sei que Lennon e Legião sempre caem bem. O analista perguntou se era mais fácil culpar os outros – no caso, a posição do planeta vermelho na hora que eu atravessava o corte da cesárea – do que encarar minhas próprias questões e assumir as responsabilidades que vinham delas. E naquele minuto a ficha caiu: ele culpava a Yoko Ono pelo fim dos Beatles e não devia gostar do Renato Russo, obviamente.

A semana seguinte chegou, a outra também, vieram os primeiros meses e eles se transformaram em anos. Com o avançar da análise, eu saquei que ali era um lugar de troca e de tomar contato com as vivências, hábitos e dinâmicas mais bacanas e mais estapafúrdias que me constituíam. Conteúdos que falavam sobre e por mim. Se a beleza do reflexo de Narciso lhe causou a morte pela paixão dilacerante provocada, o convite de olhar para si em um processo terapêutico não deixa de ser tão visceral: causa certo espanto, pode ser doloroso, intenso e transformador.

 É sobre ter autonomia para cutucar as próprias feridas até onde se quer ou é possível. É sobre entender que existe um espaço para ser quem se é não só no mundo, mas, antes de tudo, em si. É sobre amadurecer e encontrar leveza quando vem o peso de assumir aquilo tudo pelo que se é, de fato, responsável. É sobre fugir de todas essas responsabilidades e aproveitar a chegada dos 30 anos para culpar o retorno de Saturno por seus infortúnios, mesmo que o analista insista que as práticas astrológicas estejam longe do consultório. É sobre encontrar o sentido que existe no belo exercício de observar mamutes, como aquele no sonho da noite anterior.

 

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Murillo Garcia
 (Site), tem 29 anos, queria fazer Cinema, mas foi estudar Psicologia. Cogitou a possibilidade de morar na Espanha, mas ficou em São Paulo. Pensa em escrever um romance, mas não larga a poesia. E tem a Lua em Libra.