IDA À PADARIA – DANIEL ROESSLER

Ao ser perguntado sobre sua paixão, ele não hesitou. Mas também não pôde formular nada em palavras. Tampouco expor de imediato o que lhe movia. Isso era bastante comum em Alexandre. O silêncio. Completaria 35 anos naquele mês, outubro de 1992. Sua vida sempre fora uma vida comum, como é a vida de toda a gente. Longe da imaginação que permeara a sua adolescência, aquele ano se delineava diferente a ele: sem mais sonhos, pretensões individuais e desejos de modificar o mundo. Acabava, então, todo o delírio – como eram referidas pela mãe as aspirações de Alê, da juventude. Enfim adulto. Pensava com ele.

Levantou da cama, andou até a janela e abriu-a. Admirou o sol por alguns segundos. Foi à cozinha e pôs água a esquentar. Passou café e, enquanto o cheiro tomava o ar, pensou sobre a sua rotina. Era sábado, mas passaria o dia inteiro revisando requerimentos do trabalho. Pretendia realizar o acumulado durante a manhã, reservaria a tarde para os hobbies. Mal acabava de pensar e lembrou-se de que, naquela etapa da vida, havia deixado de lado o prazer pelos truques de mágica. Trabalha, Alexandre. Trabalha, Alexandre. Não há tempo para bobagens, repensou.

Era o fim dos tempos. Câmara aprova a instauração de processo de impeachment contra Collor. Dias depois, massacre no Carandiru. Não era o que imaginava com a redemocratização. Queria pensar em futuro, acreditar em mudanças, para si e para o mundo. Dirigiu-se até a sala, onde mantinha uma mesa cheia de papéis. E era assim. A mesa de trabalho no canto direito, virada para a parede. No outro extremo, uma estante cheia de livros. Mais ao centro, ficava o sofá, com as costas para a parede direita; logo à frente, a televisão. Quando chegava do trabalho, era por ali que costumava ficar, assistindo à programação, anestesiado. A TV servia como terapêutico depois dos problemas diários no setor da prefeitura em que trabalhava.

Acomodou-se na cadeira e começou a analisar a papelada que acumulara na semana. Mantivera-se bastante reflexivo naqueles dias anteriores ao de seu aniversário, o que o fizera ter mais documentos para revisar do que o habitual. Deu um gole em seu café, bateu duas palmas, esfregou uma mão na outra e iniciou a leitura das folhas. Todas elas cheias de teor burocrático. Nada de interessante. Nada sobre a vida como se deve viver. Nelas o que há são cálculos. Um mais um, dois; dois mais dois, quatro. E, naquele momento, Alexandre deu-se por si e percebeu que, desconsiderando toda a teoria, aquilo que era realmente ilusão. Deixou de lado.

“Vou ligar para alguém. Sair. Beber. É isso. Diversão. Conversa sobre liberdade. Sem rotina. Sem cálculo. Combinar uma festa de aniversário. Balões. Doces. Como festa de criança. Também álcool. Óbvio. Álcool. Adulto precisa de álcool para ser quem ele é”. Empolgou-se. Levantou de súbito. Separou a carteira e foi ao supermercado. Cebola. Abobrinha. Alho poró. Pimenta. Vinho. Sim. Um vinho para depois do almoço. Ótimo. Admirou a garrafa e pensou alto, olhando-a na diagonal, “Aqui tem sábado meu”. Bossa-nova no 3 em 1. Cheiro de cebola fritando. Taça cheia. Talvez viver fosse mais do que calcular. Serviu-se mais e entrou pela tarde, bebendo. Deitou-se no sofá. Acordou ao anoitecer, com dor de cabeça.

Domingo. Sete da manhã. Vindo do interior, os seus hábitos não mudaram muito. Acordava cedo mesmo nos dias em que não havia a preocupação com o trabalho. Saiu cedo de sua cidade natal. Pequena e isolada no interior do Rio Grande do Sul. Na sua infância e adolescência, nunca se resignou com o fato de ter nascido em um lugar como aquele. Sentia-se como alguém de fora, como um ser incompreendido no meio em que vivia. Inclusive, nos momentos de ápice de sua adolescência, revoltava-se ao ponto de se ver bom o bastante para aquele lugar. Ainda muito jovem, mudou-se para Porto Alegre, onde terminou os estudos para, posteriormente, ingressar no curso de Ciências Contábeis.

Percebia, desde muito cedo, que o seu destino não deveria ser aquele. Entretanto, não era forte o suficiente para enfrentar as oposições de sua família. A segurança de um trabalho tradicional, rotina, relógio de ponto, mesa de escritório eram as aspirações de seu pai e de sua mãe a ele. Alexandre opunha-se a isso, mas, ao mesmo tempo, não reparava que as suas atitudes o encaminhavam ao que os pais dele esperavam. E foi assim moldando a realidade em que se encontrava. E já não conseguia mirar saídas possíveis para a sua total insatisfação com a vida.

Casar. Ter filhos. Tornar-se um mágico de circo. Planejar viagem de férias com a esposa. Apresentação das crianças no colégio. Reunião com os amigos em casa. Discussões acaloradas na cama de casal. Abraços depois do trabalho. Passeio no parque aos domingos. Natal com os filhos, na casa da vovó, naquela cidade do interior por Alexandre, durante tantos anos, odiada. Um misto de pensamentos invadiam a cabeça dele; não se definia muito bem o que combinava com uma vida padrão, de certezas, e o que combinava com a vida de um mágico de circo, sem lugar, sem rotinas rígidas. O fato é que ele era incapaz de imaginar a vida de um circense.

Com os anos passados desde a sua saída da casa dos pais, vivendo em uma cidade maior, foi se dando conta de que não era a figura do interior e que também não era a figura do urbano. A maturidade trouxe a ele a sensação de desencontro. De lugar e de identidade. Sentia falta do acolhimento rural, do conhecer a todos. Sentia falta também da vida que não levava. Era incapaz de se habituar em qualquer contexto já experimentado. Ausência de sentido nas coisas feitas por ele era o que via prevalecer.

Na segunda-feira, acordou e seguiu para a sua rotina. Andou até o ponto de ônibus. Tomou o primeiro que seguia em direção ao Centro. Desceu, caminhou pelas calçadas, olhando os prédios e as pessoas no corre-corre para os seus compromissos. Fê-lo com ar pensativo e com certo distanciamento. Suspirou. “Enfim”. Entrou no Paço dos Açorianos. Escadas. Corredores. Setor de Contas. Sentou-se junto à mesa identificada com o seu nome. E assim seguiu a semana. Sem novidades. Sem grandes acontecimentos.

Longe de ter o aniversário que, em surto, sonhou, Alê, como era chamado no escritório, ganhou um bolo dos colegas de trabalho, que cantaram um parabéns a você, sem muito ânimo, na repartição onde passava os dias. Ele não tinha um círculo de amigos a quem convidar para uma festa. O que de contato se lhe reservava era o pessoal da prefeitura e a sua família, que visitava apenas nas datas comemorativas de fim de ano. No mais, de segunda a sexta, limitava-se às idas de casa para o trabalho, desviando, às vezes, para as idas ao supermercado ou à padaria. Ao ser perguntado sobre quais eram os seus planos para o futuro, na sua tão animada comemoração de aniversário, respondeu que havia alcançado tudo o que sonhava para si e o mais que viesse seria lucro, nessa linguagem mesmo, lucro, digna de alguém que ocupa as horas fazendo contas. Por dentro, em simultâneo à resposta, imaginava-se sorrindo no circo, fazendo o número de mágica mais esperado pela plateia. E deu-se o fim do expediente. Alexandre está morto. E agora anda a caminho da padaria.

 

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Daniel Roessler (e-mail) é professor de Língua Portuguesa e estudante de Ciências Sociais.