PAIXÃO DE FAUSTO A NARCISO – RÔMULO DE FREITAS

Toda era possui seu arquétipo predominante. Os séculos XIX e XX foram forjados sobre as prerrogativas iluministas da busca pela razão, pelas leis universais e pela sintetização dos conhecimentos. Johann Wolfgang von Goethe, importante autor do romantismo alemão, entendeu o espírito de sua época com Fausto, entre outras de suas obras, onde ele representa o mal-estar da modernidade.

Fausto é o alquimista que busca conhecer tudo o que lhe é possível. Sua paixão e eterna angústia, esse sentimento que floresce no limiar de tais instituições que se autoproclamam baluartes do conhecimento do mundo. É em Mefistófeles –  seu pacto com o Diabo -, que ele recorre para conseguir um momento de felicidade que valha por toda a sua existência, porém, devido ao seu ceticismo, Fausto não consegue vivenciar tal momento de intensa satisfação – entre todos os percalços de sua história – uma vez que eleva-se à razão a felicidade nas antigas estruturas de crença e consensos sociais, torna-se algo impossível. Nem mesmo desvirginar a mulher de seus mais íntimos desejos lhe proporciona esse momento de graça.

A felicidade no atual momento é uma abstração cada vez mais ao horizonte, se distanciando ao passo que rumamos à ela, por mais que corramos ou procuremos atalhos. E o que acontece quando o mundo exterior nos causa frustração?

Freud em sua obra O mal-estar da civilização traz um dos conceitos fundamentais da psicanálise: o princípio do prazer é definido pelo autor como a busca pela satisfação plena e esse evento tende a ser episódico, uma vez que precisa de uma contrapartida, como se fosse um alívio momentâneo e inusitado.

Claro que iremos encontrar a satisfação de acordo com as possibilidades de concretização que não viola nenhuma norma social, no entanto, esse espaço é bastante restrito, uma vez que existe uma série de impulsos e desejos parafílicos que os próprios níveis de consciência impedem de emergir à superfície.

Tendo em vista todas essas limitações, o princípio do prazer acaba por se tornar um princípio da realidade, onde fisiologicamente buscamos o prazer, mas racionalmente entendemos o não sofrimento enquanto prazer e tal angústia leva à introspecção. Freud, logo no início dessa mesma obra, disserta sobre como o desenvolvimento técnico nos afasta cada vez mais uns dos outros, causando sofrimentos que em tempos pretéritos a essas técnicas não existiam. Curiosamente, ele cita o trem e o telefone como formas de diminuir a sensação de distância, mas que por sua comodidade possuem um efeito inverso, quase profético, tendo em vista as técnicas disponíveis hoje.

Outro arquétipo renasce em nosso contexto: o Narciso, uma antiga história da Grécia clássica, em que na versão de Ovídio, na obra Metamorfoses, ganha um tom um tanto quanto aterrador nos dias atuais. Em contraste a Fausto – que sua frustração era justamente a impossibilidade de obter todo o conhecimento externo a ele -, Narciso teve sua maldição no caminho contrário, foi na busca por si próprio que ele se perdeu. O nome Narciso vem do grego Narke, que significa entorpecido, origem também da palavra “narcótico”.

Nessa versão do mito, Narciso era filho do deus do rio, Cefiso, e da ninfa Liríope. Antes de seu nascimento, sua mãe procurou pelo oráculo Tirésias para conhecer o destino do garoto, recebendo uma resposta dúbia e breve: si non se uiderit. O rapaz ficaria bem, se ele não se vir, profecia essa que amedrontou sua mãe por toda sua vida.

Narciso cresceu belo, despertando a paixão de homens e mulheres, seres os quais ele menosprezava. Sua ruína foi quando viu o seu próprio reflexo, foi quando confrontado por si próprio ele apaixonou-se profundamente, entorpecido, definhou ao lado de seu reflexo na lagoa, levando-o a morte.

Segue um trecho do poema de Ovídio:

” Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais forte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga o corpo, o que é sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar,
O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros.
Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,
Dignos de Baco, dignos de Apolo;
Suas faces ainda imberbes, seu pescoço de marfim,
A boca encantadora, o leve rubor que lhe colore a nívea pele.
Admira tudo quanto admiram nele.
Em sua ingenuidade deseja a si mesmo.
A si próprio exalta e louva. Inspira ele mesmo ardose que sente.
É uma chama que a si própria alimenta.
Quantos beijos lançados às ondas enganadoras!
Para sustentar o pescoço ali refletido, quantas vezes
Mergulhou inutilmente as mãos nas águas.
O mesmo erro que lhe enganar os olhos, ascende-lhe a paixão.
Crédulo menino, por que buscas em vão, uma imagem fugitiva?
O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá o objeto de teu amor.
A sombra que vês é um reflexo de tua imagem.
Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece.
Tua partida a dissiparia, se pudesse partir…
Inútil: sustento, sono, tudo esqueceu.
Estirado na relva opaca, não se cansa de olhar seu falso enlevo,
E por seus próprios olhos morre de amor.”

 

Esse poema escrito no século VIII d.C. parece retratar perfeitamente qualquer casa noturna ou rede social do século XXI, onde somos estranhos tragicamente sozinhos, cercados por pessoas igualmente solitárias, compartilhando o mesmo espaço físico, porém presos as nossas próprias demandas, sem exercitar verdadeiramente a empatia. O consumo exacerbado e os números de “clientes” da indústria farmacêutica, entorpecidos por drogas legalizadas, reafirmam o erro de Narciso que foi direcionar sua paixão a si próprio e não ao mundo externo, o que foi a salvação de Fausto.

Sua condenação fica clara ao passo que interpretamos o trecho do poema acima. Na busca por satisfação fisiológica ele encontrou uma necessidade muito maior. Narciso colocou seus desejos mais íntimos a frente do equilíbrio emocional com o todo social, considerou tais desejos parafílicos mais reais que sua própria saúde, se entregando a inércia, negligenciando deliberadamente as mudanças ao seu redor, se deturpando gradativamente.

Isso parece bastante familiar, não? Enquanto olhamos para nós mesmos, ou procuramos projetar uma determinada imagem, os ícones os quais utilizamos para nos adornar, e como queremos nos classificar, o eu será colocado sempre à frente das bandeiras que levantamos.

Para concluir, podemos considerar a colocação de Ovídio ao citar Dionísio e Apolo, duas entidades contrastantes e dialéticas. Apolo, a beleza e a luz da razão, enquanto Dionísio enaltece a embriaguez, os impulsos mais primordiais e a busca pelo prazer per se. Apenas essa simples colocação exemplifica perfeitamente o princípio de prazer de Freud, enquanto evoca a Nietzsche, destacando a eterna busca humana por satisfação plena de suas paixões e sua angústia por não poder alcançar tal nível de liberdade.

 

***

Rômulo Ribeiro de Freitas Junior (@romuloribfreitas) tem 25 anos, é geógrafo em formação. Seus maiores interesses encontram-se entre Filosofia, Geografia, Literatura e Cinema, autor de ficção de maior influência é Alan Moore, tendo como principal referência cinematográfica Stanley Kubrick, é apaixonado por Breaking Bad.