Ler a poesia de Sylvia Plath é como sangrar na alma. Seria essa uma metáfora exagerada, se não fosse o fato de que Sylvia produzia a sua obra com um fio tão pungente quanto o de uma faca delicadamente amolada. Era assim que a poeta compunha os seus versos, de forma artesanal, cuidadosamente atenta a derramar as angústias, os problemas com a depressão que a acompanhava desde a sua adolescência e o enfado e as decepções de um casamento que sofria com a infidelidade do marido, o também poeta Ted Hughes.
O mito Sylvia Plath x Ted Hughes é cercado de versões e fatos conturbados, onde diversas biografias sobre a autora se digladiam a cerca dessa relação amorosa. De um lado as traições sofridas no seu casamento que vieram a desencadear no seu divórcio e posteriormente no seu suicídio; do outro, os de que a poeta era detentora de uma personalidade forte, egocêntrica e dominadora, conforme escreveu Carl Rollyson na biografia não-autorizada sobre a escritora chamada de “Ísis Americana” (lançada no Brasil em 2015, pela editora Bertrand Brasil, com tradução de Regina Lyra). O livro de Carl Rollyson foi trabalhado na linha com base no arquivo cedido pela Biblioteca Britânica das cartas escritas por Plath ao marido. Rollyson descreve um mito conturbado e despojado da fragilidade e vitimização levantadas em outras biografias da autora.
Partindo por outra via, recentemente, em abril de 2017, foram trazidas à tona nove cartas escritas por Sylvia durante o seu último ano de vida endereçadas à sua terapeuta Ruth Barnhouse, as quais foram reveladas ao jornal britânico The Guardian. Nas cartas há narrativas de abusos sofridos por agressões físicas e verbais do seu marido Ted Hughes. Em uma dessas cartas é relatado um diálogo em que o seu marido teria falado para Sylvia que desejava a sua morte. Numa outra revela que Ted a teria agredido fisicamente dois dias antes de sofrer um aborto espontâneo.
A maior polêmica também consiste na atitude tomada por Hughes – que era o detentor do espólio literário de Sylvia Plath – de destruir a última parte dos seus diários, justamente a que continha os escritos desde o inverno de 1962 até a sua morte. Isso o levou ao posto de vilania e alvo de terríveis críticas. Sylvia possuía o hábito de escrever em seus diários desde os 11 anos de idade. Os diários do período de sua fase adulta, de quando ingressou na Smith College, em 1950, foram publicados em 1980, por Frances McCullough. Porém, em 1982, quando o Smith College conseguiu recuperar os diários que faltavam, Ted Hughes interveio selando-os, e proibindo total acesso ao seu conteúdo. Somente liberou-os para publicação, pouco tempo antes de sua morte em 1998.
“Se a lua sorrisse, pareceria com você.
Você também deixa a impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são bons em roubar luz alheia.
A boca da lua se lamenta ao mundo; a sua é insensível, (…)”
(do poema Rival, de Sylvia Plath)
Sylvia Plath e Ted Hugues conheceram-se na Universidade de Cambridge, em 1956. Foi atração imediata, paixão fulminante e arrebatadora, e em apenas quatro meses se casaram. Os primeiros momentos são de intensa criatividade para o casal, mas não demoram a surgir os problemas. Sylvia e Ted tiveram dois filhos, Frieda e Nicholas. Sylvia que já possuía problemas relacionados à depressão, começa a se fragilizar ainda mais pela infidelidade do seu marido. O estopim vem à tona, em 1961, quando grávida de seu terceiro filho, Sylvia sofre um aborto espontâneo. O aborto e as relações extraconjugais do marido levam o casal a divorciar-se em 1962, tornando-se temas frequentes na maior parte dos poemas da escritora. Sylvia Plath, suicidou-se, em 11 de fevereiro de 1963, após tomar uma grande quantidade de narcóticos e deitar a cabeça sobre uma toalha no interior do forno com o gás ligado.
A poesia de Sylvia Plath incontestavelmente tornou-se um ícone reverberante do feminismo. Sua obra é fortemente carregada de referências das suas vivências pessoais com metáforas fortemente esculpidas pelas influências literárias que trazia em sua bagagem, como as de Robert Lowell, Anne Sexton e Theodore Roethke, nomes aos quais a poeta rendia admiração e respeito. Porém, em contrapartida, a sua fala tem como característica uma autenticidade ímpar, sendo a sua criação literária uma expressão única, como uma impressão digital, a fim de externar ao mundo as suas aflições e contestações. Sylvia despeja em suas obras os seus fantasmas que a perseguiram desde tenra idade, até a paixão fulminante e perturbadora com o seu ex-marido Ted Hughes.
PALAVRAS
Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
(Tradução de Ana Cristina César)
LIMITE
A mulher está perfeita.
Seu corpo
Morto enverga o sorriso de completude,
A ilusão de necessidade
Grega voga pelos veios da sua toga,
Seus pés
Nus parecem dizer:
Já caminhamos tanto, acabou.
Cada criança morta, enrodilhada, cobra branca,
Uma para cada pequena
Tigela de leite vazia.
Ela recolheu-as todas
Em seu corpo, como pétalas
Da rosa que se encerra, quando o jardim
Enrija e aromas sangram
Da fenda doce, funda, da flor noturna.
A lua não tem porque estar triste
Espectadora de touca
De osso; ela está acostumada.
Suas crateras trincam, fissura.
(Tradução de Luiz Carlos de Brito Rezende)
OS MANEQUINS DE MUNIQUE
A perfeição é terrível, não gera filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero
Onde os teixos sopram como serpentes,
A árvore da vida e a árvore da vida.
Desprendendo as suas luas, mês atrás de mês, sem nenhum propósito.
O jacto do sangue é o jacto do amor,
O sacrifício absoluto.
Quer dizer: mais nenhum ídolo, exceto eu
Eu e tu.
Assim, com a sua graça sulfúrica, nos seus sorrisos
Esses manequins se encostam esta noite
Em Munique, morgue entre Roma e Paris,
Nus e carecas vestidos com os seus casacos de pele,
Chupas-chupas de laranja com pau de prata
Intoleráveis, sem cabeça.
A neve deixa cair os seus pedaços de escuridão.
Ninguém perto. Nos hotéis
As mãos abrirão portas e deixar
Sapatos no chão para uma mão que engraxa
Com os seus dedos largos entrando amanhã.
Ah, a domesticidade dessas janelas,
As roupas de bebé, a confecção de folhas verdes,
Os espessos alemães dormindo com o seu desprezo inacabável.
E telefones pretos nos ganchos
Cintilando
Cintilando e digerindo
A mudez. A neve não tem voz.
(Tradução inédita de Pedro Calouste)
LADY LÁZARO
Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —
Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito
Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.
Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —
O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.
Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.
E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.
Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.
Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver
Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,
Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,
No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.
Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada
Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.
Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.
Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.
É muito fácil fazer isso numa cela.
É muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral
Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:
“Milagre!”
Que me deixa mal.
Há um preço
Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.
E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue
Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.
Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro
Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.
Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —
Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.
Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.
Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.
(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)
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Romulo Narducci (@romulo_narducci) é poeta, escritor, compositor e guitarrista da banda de rock Mangusto. Um dos idealizadores do evento Uma Noite na Taverna, realizado em São Gonçalo de 2004 a 2016. É autor dos livros de poesia “Orações Licenciosas (Ou Cancioneiro Erótico)” (2008) e “Tudo Que Morre é Consumado” (2010) e do livro de contos “Angustiolândia (Ou de Bares, ruas e bordéis)” (2015), além de ter participado de diversas coletâneas de contos e poesia.