PASSANTES – DOUGLAS MOREIRA

Jessé era famoso em sua cidade. Sua popularidade já havia inclusive lhe rendido alguns convites para lançar-se à vida pública nos últimos anos, porém, não tinha interesse na carreira política. Não era conhecido pelos dotes artísticos ou por ter acumulado fortuna ganhando na loteria. Jessé era o único coveiro da cidade de Jotaíba do Norte. Nos últimos trinta anos, todos da cidade que fizeram a transição deste mundo para o além, passaram pelas cuidadosas mãos dele.

Não era famoso apenas por ser o único coveiro da cidade. O era por causa de sua paixão pela profissão, por sua dedicação infindável em transformar aquele momento de aparente tristeza no mais especial de seus clientes que estavam passando a régua aqui por estas bandas terrenas. Acreditava que toda morte era digna, até aquela que findava uma vida indigna. Acreditava que a morte tinha vida própria, um tempo a ser respeitado, um início, meio e fim completo, ainda que breve. Em sua filosofia, a morte era louvável, tão importante como vir à luz.

Era dele a responsabilidade por todos os detalhes necessários nos últimos momentos dos passantes, desde levar padre Otônio, encarregado da extrema unção geral na região, no lombo de seu querido jegue “Suspiro” – cujo nome fora dado não por conta de alguma homenagem ao derradeiro momento em vida de seus clientes, mas por conta do doce mesmo, o preferido de Jessé -, até o jogar de sementes de girassol por sobre a terra mexida das covas após a última pá, ritual que havia se tornado hábito e marca registrada de seus enterros. Achava lindo o girassol, desde pequeno, quando viu o irmão mais novo ser vítima de desnutrição por conta da longa seca que assolara seu vilarejo à época e levara além de seu irmão, algumas vacas e bodes da criação do seu pai. O pequeno havia sido enterrado no quintal de casa onde viviam e Jessé se impressionara com as carpideiras fazendo seu dedicado trabalho copiosamente por sobre a terra nivelada da cova. Impressionou-se ainda mais quando alguns dias após o funeral, nasceu ali, sem que ninguém houvesse plantado, um lindo girassol que o intrigava por girar buscando a luz, desde a manhã até o cair da tarde. Achava bonita a reverência que o girassol fazia ao sol no fim da jornada, como se fosse um súdito se curvando ao rei.

Entre outros tantos afazeres, era sua a tarefa do último banho, da troca de roupas, da colocação dos algodões de orifício. Penteava, barbeava e tinha sua própria maleta de maquiagem, onde havia tudo o que fosse necessário para que seus clientes fossem levados às covas com aquela aparência de quem ainda está com o sangue quente correndo nas veias.

Jessé reclamava pouco da vida. Mesmo o fato de nunca ter-se casado não pesava em sua rotina. Achava ruim apenas café morno, muriçoca e o fato de não ter trabalho todos os dias. Trabalho até tinha, mas cuidar das plantas do cemitério, acender e trocar velas, retirar daninhas dos vasos… nada disso se comparava a um dia de morte, um dia de luto. Nos dias de defunto, a pequena cidade parava e todos os olhares se viravam para apenas duas pessoas: o morto e Jessé. Aquele era seu momento de brilho, onde podia desfilar suas habilidades, como por exemplo colocar sozinho o caixão na carroça fúnebre, sem que o Suspiro se assustasse e partisse em disparada. Se orgulhava de ter enterrado sozinho seu Olavo, farmacêutico da cidade que sofria de obesidade mórbida e que havia sido morto por uma picada de jararaca, na tentativa frustrada de lhe arrancar o veneno de maneira artesanal. Vacilou na hora de pegar o vidro de coleta e quando deu por si, os dois dentes da víbora já cravavam seu punho, que dali para roxear não levou mais que dez minutos. Seu Olavo era um orgulho particular de Jessé, porque havia inchado por conta do veneno e trincado o caixão rococó caro que a família inicialmente havia lhe comprado. Na impossibilidade de enterrá-lo no caixão trincado, Jessé providenciou um grupo de repentistas que cantaria a vida e a morte de Olavo por excedentes três horas no velório para que ele, com as próprias mãos, pudesse fazer um caixão sob medida para seu Olavo, utilizando caibros e umas folhas de madeirite que estavam no depósito do cemitério. Se lamentava apenas de não ter conseguido pintar o caixão, ainda assim, a lembrança de ter conseguido enterrar seu Olavo antes que começasse a cheirar era um dos orgulhos que exibia nas muitas conversas que jogava fora no boteco da Cida, seu preferido, que servia uma cachaça de umbu que não se encontrava num raio de cem quilómetros.

Não se sabe ao certo em que momento a doença chegou à Jotaíba. Havia se ouvido falar que em vilarejos próximos a coisa já estava acontecendo de maneira tímida, porém, nada que causasse preocupação em Jessé, até porque o tempo contava a seu favor. Porém, os rumores começaram a tomar corpo e, por consequência, um certo incômodo se instalou em sua rotina. Sua fé cega no ciclo da vida o trazia certo alívio, pensava que, mesmo que a doença recaísse sobre Jotaíba, em algum momento a vida teria de voltar ao normal. Era impossível para ele que, de repente, as pessoas parassem de morrer.

Chamada popularmente de “Vidite”, a doença chegou à Jotaíba de forma avassaladora. Atingia principalmente os idosos e crianças de pouca idade. Começava como uma gripe, alguns espirros, vômito, logo caminhava para a febre alta e em alguns casos até convulsões. A pessoa infectada era tomada de um sono incontrolável e dormia por aproximadamente três dias. Quando acordava, não havia traço de absolutamente nada que lembrasse uma enfermidade. Acordavam recuperadas, alegres, sorridentes, dispostas, inundadas de energia. O que todos imaginaram ser inicialmente um resfriado estranho, veio ao longo dos meses se mostrar uma inversão da lei natural: as pessoas infectadas pararam de morrer. Idosos que antes contavam os dias para encontrarem seu juízo final particular, de uma hora para a outra começaram a pegar suas enxadas e retornar ao campo, numa disposição que lembrava o apogeu de suas juventudes! Senhoras que carregavam em seus pulmões tosses compridas e profundas em demasiado, num estalar de dedos encontravam-se no coreto da cidade para entoar seus cânticos religiosos como se fossem virgens debutantes ensaiando a missa da primeira comunhão.

A “vidite” foi celebrada como uma benção dos céus, um toque divino sobre aquele povo que carecia tanto de alguma alegria na vida. Todos estavam ao mesmo tempo perplexos e complacentes, mas, no acertar dos ponteiros, pouco importava o que estava acontecendo, importava apenas que agora a imortalidade era regra, não utopia. Uma dádiva se abateu sobre Jotaíba, mas não sobre Jessé.

Após dois anos sem uma morte sequer em Jotaíba, Jessé era um caco. Sua vida perdera o sentido. Se cuidar dos jardins do cemitério já era por ele considerado trabalho menor antes da doença, que dirá agora. Era um pesar, um fardo, porque ele sabia que por mais que preparasse o terreno e o deixasse pronto para receber qualquer um a qualquer momento, ninguém morria. Era, além de tudo, um trabalho em vão. Jotaíba era uma cidade onde não havia sequer cadeia! Não havia assassinatos, ladrões e nem pequenos meliantes. O último caso sério na cidade foi quando o filho de seu Martinho, vereador, roubou duas galinhas do quintal de dona Donana, benzedeira de Jotaíba. Não havia jeito de se descobrir que o danado do moleque havia surrupiado as galinhas. Calango, único guarda da cidade, bateu cabeça por dias tentando alguma pista e nada, até que a própria Donana, a contragosto, teve de olhar a borra do café para descobrir por conta própria quem seria o salafrário. Foi um furdunço e seu Martinho, envergonhado, além da coça no moleque, fez questão de devolver as duas galinhas de Donana mais duas, para que o caso fosse esquecido. Para os mil e quinhentos moradores de Jotaíba, isso foi assunto para meses.

Jessé vivia agora no bar da Cida, onde a cachaça de umbu havia se tornado sua melhor amiga. A grande novidade era a doença e essa tomava conta de todas as conversas do boteco. Ninguém mais se lembrava que ali, havia um homem que havia dado sua vida pelas mortes da cidade. Jessé não suportava mais tanto assunto sobre a tal doença, não suportava mais passar seus dias sem carregar um caixão, sentia falta de maquiar aqueles corpos gelados tendendo ao azul… chegava a bater na madeira do balcão com a falange do indicador para sentir um pouquinho daquela rigidez que tanto lhe fazia falta.

Na calada da noite, inventou por uns dias de desenterrar alguns corpos do cemitério, os que mais lhe dera prazer enterrar, apenas pela satisfação pessoal, mas logo desistiu da ideia. Não havia comoção, não havia carpideiras, não havia aqueles olhos estupefatos com sua habilidade em descer um caixão e cobrir-lhe de terra sem acertar uma pá que fosse na madeira. Jessé viu-se só, perdido, meio morto vivo. Seu trabalho, sua paixão, por causa da maldita vidite, esvaiu-se feito chorume nalguma cova rasa de beira de estrada.

Quando Cida lhe trouxe a oitava dose de cachaça naquela terça feira ao meio dia, Jessé não imaginava o que estava por vir. Entrou no boteco um desconhecido, empurrando a porta como se fosse o dono do lugar, mandando descer uma branquinha pura e sem limão pra abrir o apetite. Sentou-se ao lado de Jessé no balcão de sucupira e puxou conversa. Disse que era vendedor de panelas e que resolveu parar por ali por conta das mocinhas sorridentes que viu na praça da igreja. Achou que já eram grandes o suficiente para usarem aquelas saias e, definitivamente, julgou que mereciam uma parada dele naquele fim de mundo, afinal, segundo o próprio, havia dias não tirava o atraso. Perguntou a Jessé o que ele fazia e ao ouvir a palavra “Coveiro”, não suportou seus próprios impulsos e como um cavalo nervoso começou a gargalhar estridentemente, relinchando perdigotos de cachaça na cara de Jessé. Começou a enumerar a todos os motivos de seu desdém e culminou com um “Mas que triste você ser tão desnecessário hoje em dia! Não faz falta pra ninguém! Desculpa, mas é engraçado… se você fosse outra coisa, mas coveiro? Você devia ser parteiro! Que piada é essa vida!”–  emendando outra gargalhada insuportável.

Cida, cabisbaixa, observou a cena, serviu outra cachaça a Jessé, que entornou de uma só vez, agradeceu, virou as costas e se despediu do festeiro. Subiu em sua charrete funerária e se foi. Perambulou pelas ruas de Jotaíba por um tempo e foi para casa.

Algumas horas depois, tirando uma soneca em sua morada simples de quarto e cozinha nos fundos do cemitério, Jessé foi acordado aos berros por seu Timóteo, o doutor. Saiu apressado de casa, levantando as calças ao mesmo tempo em que tentava vestir uma camiseta. Seu Timóteo gritava: “Tem morte Jessé! Tem morte meu filho! Venha!”. Os olhos de Jessé se arregalaram e aquela sensação de vida tomou conta de cada músculo do seu corpo. Pegou sua maleta de maquiagem que dormia dentro da geladeira, jogou dentro da sua charrete, atiçou Suspiro e se bandeou eufórico com Timóteo para o centro da cidade. Qual não foi sua surpresa quando se deparou com o vendedor de panelas, caído atrás do coreto com umas quinze facadas nas costas, se bem contou. O corpo já não se mexia e aquela poça enorme de sangue que se acumulava no chão refletindo os olhos transbordantes de alegria de Jessé era tudo o que um homem de bem como ele poderia querer. Jessé se abaixou, colocou o dedo indicador no pescoço do forasteiro e como um juiz que expurga seu veredito, cravou: “Tá morto!”.

Foi algo lindo de se ver. As pessoas em volta batiam palmas enquanto Jessé retirava sozinho o morto do chão e jogava na charrete. O sangue do morto escorria pelo corpo de Jessé e ele só conseguia sorrir e agradecer a Deus pela graça alcançada. Do outro lado da praça, dona Donana gritava “Eu vi na borra! Eu vi na borra!”, enquanto seu Martinho dizia que a cidade poderia decretar luto oficial de três dias com bandeiras a meio mastro. A cidade inteira se converteu na alegria de Jessé, que podia ser vista naquele sorriso escancarado e ensanguentado misturado às lágrimas que ele tentava, mas não conseguia parar de verter.

No dia seguinte, serviço completo. Jessé botou a melhor roupa e foi cumprir seu dever, sua sina. Foi fazer o que melhor fazia nessa vida: cuidar da morte. O cemitério da cidade estava lotado e Jessé fez questão de colocar o defunto numa cova mais ao fundo e no alto, possibilitando que todos os moradores conseguissem entrar no cemitério para acompanhar seu momento de glória como se estivessem numa missa ministrada por seu Otoni. A cada enxadada no chão na escavação do jazigo o povo soltava gritos de apoio e até quando Jessé encontrou uma pedra no meio do caminho, os espectadores não dispersaram. Houve uma apreensão geral, alguns seguraram a respiração, mas tudo se dissipou quando Jessé levantou a pedra com os braços como quem levanta uma taça e a jogou de lado. No último momento, o derradeiro, no clímax daquela epopeia, Jessé pegou uma sacolinha que carregava no paletó de linho bege que usava e lá de dentro retirou um punhado cheio de sementes de girassol. Ao jogá-las por cima da cova cuidadosamente perfeita, a multidão não se segurou e no meio de uma salva de palmas começou a gritar “Jessé! Jessé! Jessé!”. Foi um êxtase… Jessé sentou em sua charrete puxada por Suspiro e, passando pelo meio das pessoas, foi ovacionado. Chorando, levantava a mão e acenava aos seus… Jessé estava feliz, como há muito não se via.

Saindo pela cancela do cemitério, encontrou Cida sentada numa caixa de isopor, ao lado de uma plaquinha onde se lia “Cerveja, Caipirinha e Amendoim”. Parou a charrete, desceu, pediu uma cerveja. Cida tirou um copinho de plástico do isopor, lhe entregou e disse:

– Guardei uma cachacinha de umbu para você.

Jessé virou num gole só, respirou fundo, sorridente na charrete e olhou-a profundamente.

– Obrigado.

Cida sentou em cima do isopor, colocou a mão em frente ao rosto para se esquivar do sol, sorriu e disse:

-Não por isso.

 

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Douglas Moreira (@dougmoreira) é natural de Rio Grande da Serra/SP. Mora em São Paulo há quase 20 anos. É ator formado pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Marido da Perla, pai orgulhoso do Filippo e da Aurora.