QUERO UM FRIO IGUAL A CARA TRISTE DA LIV ULLMANN – JORGE IALANJI FILHOLINI

Só saio de casa se a rua estiver abaixo de grau. Eu gosto do frio. Adoro quando termômetro bate quase no zero. Entro na frente dos socos dos ventos. Aqueles bem dados quando cortam até os pelos da bochecha. Tremer os dentes é um tesão. Já sentiu? Colocar os nervos do maxilar para exercitarem. Até arrepio em pensar. Quero botas que cobrem as canelas. Vestir mais de uma calça. Minhas pernas ficam até grossas. Eu quero o frio, gélido, de deixar a mão como pedra na beira da cachoeira.

Eu vi, dia desses, no jornal, que no Sul o frio beirava o negativo. O repórter vestia um sobretudo marrom de lã, cachecol vinho e uma touca azul. Charme. Delícia de vestir aquele traje. Manoela já me disse, deixa disso, menina, frio é para gringo, aqui tem que rachar as nossas cucas. Melhor lugar para se ficar é debaixo deste solzão de Deus. Isto sim é vida. Se bronzear. Pegar a energia desta estrela máxima. Sai pra lá com calor. Sempre desejei lufadas de ventos. A missão é juntar uma boa grana e ficar uma semana, duas. Tá, um mês em Bariloche. Abraçar pinguins, encher a cara de vinho, mastigar neve, nunca mais tirar as meias grossas.

Frio: temperatura mais baixa do que a do organismo humano. Este é o tesão. Conversar e sair fumaça da fuça. Ficar encolhidinha e enrolada no edredom. Otávio já me avisou que nunca vai viajar para lugares abaixo de vinte graus. Eu o mando passear. Tô nem aí. Suor é que não aguento mais. Ele vindo me abraçar com cheiro azedo, camiseta ensopada. Seu peito com manchas que mais parecem um babador. Falar “eu te amo” com bafo quente? Não! Não!

Paixão secreta: lareira. Vi nos filmes, lá em cima do mapa, as famílias diante do fogo, esquentando toda a pele. Clac clac. Os barulhos das lenhas. A luz do fogo. Aquele alaranjado hipnotizante. Meu Senhor, quero é mergulhar em lago congelado. Endurecer os pulmões. Vestir mais de três camisetas. Capotão. Blusão. Luvas. Gorro. Usar um metro e meio de cachecol.

Otávio me levou um dia para uma sessão de cinema. Eu havia pedido para não irmos, mas me lembrei do ar condicionado da sala. Nível baixo. Seca até as lágrimas. Coloquei a bermuda jeans e levei o casaquinho. Pelo menos ali poderei usá-lo. Era uma mostra do Bergman. Poxa, Otávio, filme sueco? Ele suado, com aquela enorme pizza debaixo do braço. Cabelo oleoso e ainda insiste em se lambujar de gel. Grudento. Vai tentar tirar aquela gosma da mão. E o cheiro? Pedia beijinho. Lábios sudoríferos. Deus me livre. Tá, vamos entrar logo.

E não é que o filme é bom? Como era o nome mesmo? Lobo e tempo? Não, horário do lobo. Ah, A hora do lobo. Nem reclamei de ser preto e branco. Foi bom, sentia o frio mais próximo. O começo é assim, um close na moça branca. Pálida a menina. Sentada na mesa do lado de fora da casa. Parecia que só havia aquela casa. Ali. No meio de uma ilha. Ventava que carregava todo o cabelo da atriz. Nem li o que a legenda mostrava. Fixei os olhos ali. Na tela. Nela. Naquela moça tagarelando para a câmera. Para mim. Assim, triste, melancólica. Parecia que tinha perdido alguém. Sei lá. Estava na legenda. Perdi. Mas aquele rosto jovem. Olhos sombrios. Aturando o frio. O frio que morro de paixão. Encapotada. Gola larga de lã. Como eu queria ser triste igual aquela moça do filme. Triste, mas no frio. É o que importa.

Otávio terminou o filme chorando. Eu sorrindo. Ele perguntou o motivo da alegria. Não contei. Vai que me achasse estranha. Sei lá, foi o nosso terceiro encontro. Vou dar pala, não. Deixei a minha paixão secreta esfriando. Cheguei em casa e fui pesquisar. Liv Ullmann. Ullmann. Que deusa do gelo. Já é uma senhora de mais de setenta anos. Há poucas horas era uma jovem no meio do gélido quintal em uma ilha. Ela fez mais filmes. Fui caçando um por um. Que rosto. Que frio me dava. Que tristeza gelada. Persona, Sonata de Outono, Gritos e Sussurros, Cenas de um Casamento. Se quiser tem tudo no Youtube. Otávio ficou admirado. Nem ele viu tanto Bergman em menos de um mês. Insistia que queria ver comigo. Mas não. Sai pra lá. Corpo todo quente e suado colado em mim. Desviava o assunto. Estava ocupada. Em O ovo da serpente peguei dois ventiladores. Coloquei-os em cima de banquinhos. Mirados pra mim. Virei o botão no máximo. Ora, também quero sentir o frio que os atores sentem. Ou será que era tudo fingimento? Eu nem era nascida naquela época. Como vou saber? Só sei que o quarto chegou mais para a temperatura de São Paulo em julho do que o inverno de Berlim.

Não recebo mais mensagens do Otávio. Faz dois meses. Desistiu, talvez. Não dá para competir com o meu desejo pelo frio. É algo sem sabor. Mas delicioso. Não é palpável, mas arrepia quando me toca. Sem cheiro, porém, quando o vento álgido penetra no meu nariz, pode ter certeza, é o perfume mais gostoso e caro da minha vida.

O que acha de tudo isso? É grave, doutor?

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JORGE IANLANJI FILHOLINI é escritor, produtor cultural e editor do site Livre Opinião – Ideias em Debate. É autor do livro Somos mais limpos pela manhã (Selo Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti.