TRAVESSIA – MARCOS RAMOS

Já era tarde. Perdi. Entre palavras e palavrões engolidos, desacompanhado, sentei a espera do próximo veículo que me levasse ao outro ponto. Não sentia, nem vivia há tempos, repetia sem apropriar. O fôlego tinha função de fazer as pernas agirem com mais eficácia. Eficácia em não chegar tarde, não perder. Falhei.

O próximo, só depois de umas treze canções – contar o tempo sem ter que contar. Treze! Falhei novamente.

Tinha cabeça feito estrela outrora. Não sei quando deixei de ter – Lá em cima, a cabeça pendia pro lado, vagarosa. Ouvido virado para baixo, atento. Costumava catar histórias e meter no bolso, uma coleção de narrativas que não me pertencia. Falso ou verdadeiro, bastava apenas que o relato não fosse meu, e pronto, precisava possuí-lo. Do ar, sem aviso ou remorso, tomava posse e apertava contra o peito. Clandestina felicidade de ter nas mãos o que é do outro.

A cada aquisição, um novo carinho na memória, metamorfa e subjugada pelos meus caprichos, nem sabia mais quem era: me fazia lembrar de rachaduras que evitei pisar de uma calçada onde nunca andei. Me deleitava no sumo que escorria do contar alheio, apropriava, engolia e regurgitava como meu.

Conduzi coisa maior que essa aí.

A cabeça feito chão, devagarmente, fez-se leve. Pendeu, ouviu. A descompanhia se desfez. A procura da voz, mirei no indicador curvado que apontava para além. Na outra extremidade tinha a carne. Primeiro o verbo, depois fez-se carne. Aquele livro estava certo: no início era, com ele estava.

De cumprimentos fui dispensado, por mim. Fôlego ancião, chama antiga se acendeu. Queria usá-lo. Não a carne, o verbo. O combustível alheio, de cheiro forte e ácido, aguçou uma fome que não me visitava desde os tempos de estrela e almofada azul. Doze canções.

Se se apresentou não lembro, não dou nome às nascentes. Grande, pescoço teso, de uma severidade óbvia que se desfez aos olhos – não aos meus. Se o visse, Camus diria que eram uma luz sem brilho no meio de um ninho de rugas. Meursault o ignoraria o resto, bêbado de calor de sol. Olhava para ele, sentindo novamente o sabor de uma história tornando minha. Alma. Ainda trabalho, deixei o que tinha em sua casa, fiz mal à ela. Achei que merecia, paguei. Fui embora. Deixei.

Sabia tão bem.

Não amei, sabe? Nem ela nem. Homem que fui, fui dos outros, pensei. Ninguém já foi meu. Acrescentaria que queria ter amado, que sofri por não tê-lo feito, teria inventado uma paixão à violência e ao punho; a história não era minha, ainda. A boca abriu e a interrupção foi pra respirar, só. Resisti.

Volátil, a memória bebia, inventiva e mentirosa que era, criava. Já colocava meu rosto no corpo que pulava o muro para fugir do facão, fio ciumento. Liguei do orelhão pra casa dela, a voz era d’outro. Fui mesmo assim. Bem sei. Como esse teve outros.

Bêbado que não abandona o copo – se o mesmo continua a ser enchido: eu era os dois. Dez canções? Não contei, contavam para mim. O lábio movia. Filho só tive um, pelo que sei. Está com ela, a ele nada faltou. Falta. Não quero filho nesse enredo, quero bastardos, brigando pelos tijolos empilhados que deixei. Nele nunca encostei, só na mão, a minha por cima ajudou a dele a guiar a besta que me deram. Maior não tinha, já disse? Mais uma, por favor. Era meu e não era, me conhecia demais pra ser meu. Não amei. Resisti.

As mãos se abriam junto com a boca para receber a moeda que paga o trajeto. O que eu levaria para o outro lado? Morreu quando era moço. Ele? Nunca nem vi, vivo também não deve estar. Tem falta, indiferença. Por isso, talvez, que nunca que soube ser. Queria ódio, paixão que mata. Amante, marido, fui. Isso sim! Isso sim. Figuras ausentes, peito árido. Enrijeço, engasgo. Cabeça feito estrela. Tem mais pra recolher. Nada foi meu.

Mostra. Quero mais, é pouco. Tremo, palpito, tenho sede. Fome. Vou vomitar depois por vaidade. No papel. Tenho para comer, suficiente. O que faço, faço bem. Não paro. Pego um desses, dia ou outro. Vou embora, ninguém vê. Seu tédio não é meu. Dia ou outro, pego um desses. Seu tédio é tara, fogo que não arde às vistas. Paixão.

Se faço falta, nem sei. Não fará. Fiz mal à ela, mas paguei. Esse corte aqui, ó…. Olho e não olho. Não me interessa a carne. Mereci. Um pouquinho mais para o lado e nem aqui estaria. Passaria. Foi assim… Êxtase. Cabeça feito estrela, pende, bêbada. Satisfeita? Depois fui. Ponho no bolso. A memória, fingidora, suborna o corpo. Toco a ferida em mim que é de outro. Fingindo dor que na verdade não sinto.

Colhi o fruto, cobrei e nada devolvi. Vai e vive. Uma canção.

Fúnebre.

Eu vivi.

À margem, o veículo chama. A cabeça não. Lá em cima, permanece leve. O verbo eu carrego comigo, acompanha-me ao outro lado, é pagamento e passageiro. O dono das rugas ficou na outra margem. Não me interessa a carne, levo alma que agora é minha, verbo que agora é meu: Espírito que paira sobre as águas.

Os bolsos pesam, aceitei as moedas. Acompanhado, entrei, rumo ao outro ponto. Deixei seu corpo e levei sua alma. Colhi sua história. O calor no meu corpo se refez, roubei-o. Alimentei a criança, o vício.

Travessia.

***

MARCOS RAMOS é cria da periferia de Diadema – SP,  formado em Estudos Lusófonos pela Universidade de Coimbra, Licenciado em Letras -Português/Francês pela UNESP – Assis. Atualmente é mestrando em Literatura e Vida Social também pela UNESP e se encontra quebrado financeiramente, por conta de um estágio de pesquisa não remunerado que decidiu fazer às cegas na Sorbonne, além de correr contra o tempo para escrever e entregar uma dissertação.