O TRINADO DAS PALHAS NO ALUMÍNIO – FÁBIO PESSANHA

o vento nas persianas fazia
o quarto vibrar. as velhas lembranças
pulsavam. e fechar os olhos era
como estar lá, seja lá onde lá
seja. não lembrava o que se dizia,
tampouco o que cheirava ou se comia,
mas o tempo era forte, muito forte.
o corpo era essa embriaguez.
alucinações que arrancavam as roupas
de qualquer ingenuidade ali
largada. o armário aberto confessava
que o vento nas persianas dizia
mais que lembranças. cada dobra bem
colocada sobre o amarrotado
das costuras apontava para uma
real viscosidade que grudava
as nódoas da pele no tecido.
o tempo sempre desencadeava
instantes que se espalhavam. destino
era isso que se fazia na hora
de engolir mais do sopro, quando o sono
não precisava de cama tampouco
de costelas ao chão para sonhar.
foi durante o vão contorno da sombra
naquele corpo jogado. eram horas
a fio concentrado nas arestas
daquela imagem. tudo se movia
conforme o esperado: a lua ao meio-
dia, o sol com taquicardia, o mar
se banhando bem nas pernas daquela
menina. a cosmogonia da boca
instala o susto no canto da testa.
tudo era origem. tudo era o que se
via na desobediência das
fugas ao fim de um concerto em mi
menor. bach não dava ponto sem nó,
tocava o prelúdio das cordas presas
na parede pelo sol através
das persianas. o forte barulho
do vento que deixava aparecer
o que se veria pela metade.
quando se abriu a porta, o espanto. as sombras
no chão todas tinham iluminuras
refletidas nas paredes como um
contraponto com as vozes que entoavam
o compasso desse tom de ruínas.
a fuga era uma canção composta
para o espanto dos olhos, que sabiam
uma estética inventada no abalo
dos repiques. isso que chega ao corpo,
que se percebe, que o grego nomeia
aísthesis, que é o princípio de todas
as coisas, o pensamento que esconde
a cama para não ser mastigado
depois de fuder com tantas ideias
imprestáveis. isso meu amor, isso
tudo não é de agora não é só
desculpa para não dizer que te
amo. isso tudo tem a ver com
o trinado das palhas no alumínio.
com o vidro empalado pelo sol
numa linda tarde de outono que
chega ao chão pelo semblante das sombras.
isso tudo é pra dizer que paixão
não se reduz aos excessos. paixão
é além. porque se tudo foi dito,
se tudo que chegou ao ponto de
encadear um artefato melódico
ao estampido no fundo do ouvido,
isso tudo é porque paixão é páthos.
coisa que toca, que afeta, que faz
o corpo se perder nas alusões
do som daquela persiana velha,
desse vício antigo nas frestas mal
ornadas dessas janelas distantes.

 

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Fábio Pessanha (Propriedade do Irreversível / Facebook) é poeta, doutorando em Teoria Literária e mestre em Poética, tudo pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa atual, a respeito do sentido poético das palavras, partindo das obras de Manoel de Barros e Paulo Leminski. É membro do NIEP – Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Poética, também na UFRJ. Coordenou e ministrou cursos no projeto de extensão “Poéticas – Projeto de Formação de Leitores Literários”, pela UNIRIO, realizado durante o ano de 2016 na Biblioteca Parque de Niterói. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento, além de participar como ensaísta em outros livros e periódicos.