COLUNA PITACOS
POR LETICIA SANTOS
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A primeira viagem turística internacional que fiz na minha vida foi para Barcelona, e podem culpar a emoção da primeira viagem, ou o deslumbramento pelas cores lindas e pelo frio delicioso que fazia ali, mas essa cidade é marcante demais, ganhando até de Paris. Queria poder voltar no tempo e ler Zafón antes de ter ido, porque se tem alguém capaz de te fazer desistir de qualquer destino por Barcelona, é Carlos Ruiz Zafón e suas narrativas embebidas do mistério brumoso que pode se formar nessa cidade. Vou abrir minhas indicações falando dos livros que têm o Cemitério dos Livros Esquecidos, porque afinal, a paixão pelos livros é o que nos reúne aqui todas as semanas, não é?
Primeiro, quero dizer que os livros A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo, o Prisioneiro do Céu e O Labirinto dos Espíritos podem ser lidos separadamente, mas que é delicioso ler a todos e ver as referências e os personagens se cruzando e contando uma grande história. Alguns autores podem cair no erro e nos fazer sentir uma tremenda sensação de repetição em seus enredos, ficando tão previsíveis que é até chato ler, mas a narrativa de Zafón é qualquer coisa, menos fácil de predizer.
Comecemos pelo fato de que nessas obras temos duas camadas de paixões perceptíveis: do autor por Barcelona e dos personagens pelos livros. A adoração pela cidade transparece em cada momento de descrição, na composição do cenário à moda poética, no profundo cuidado que Zafón teve para compor uma Barcelona tão vibrante e misteriosa, mantendo-se fiel a sua estrutura e arquitetura. Se nos falta condições de ir até essa cidade, só a leitura desses livros já vale como um tour através das palavras, tendo a vantagem de poder ver os prédios, ruas e monumentos através das hipnotizantes composições do autor.
Agora, vamos falar da paixão que todos os leitores têm em comum e que movimentam todos os livros que já nomeei ali em cima: livros. No primeiro livro conhecemos os Sempere, uma família que tem uma livraria, e isso já seria motivo suficiente para amá-los, mas eles não só vendem livros e os amam, eles fazem de tudo para protegê-los. É aqui nesse livro que vemos um menino bem novinho ser levado por seu pai a um lugar especial e mágico: um cemitério de livros. Um santuário onde a proteção dos livros é a missão de todos os envolvidos, e onde a paixão maior é por preservar o conhecimento e as palavras impressas nesse mundo. Há uma missão mais linda? Lembrando que o livro se passa em 1945, onde o mundo saía de um período conturbado e já tinha visto a queima de pilhas de livros. Uma das maiores lições que temos que perpetuar pelo mundo é que conhecimento é poder, e que livros precisam ser protegidos porque passam o conhecimento adiante, e claro, não só conhecimento, mas encantamento. Mergulhar nas páginas de um bom livro é a salvação de muitas pessoas que precisam de alguns momentos para esquecer a realidade, já que o mundo é bem duro, livros são mais que objetos, eles são portas para outro mundo, eles são especiais:
“– (…) Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte. Há já muitos anos, quando o meu pai me trouxe pela primeira vez aqui, este lugar já era velho. Talvez tão velho como a própria cidade. Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe, ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue aqui. Neste lugar, os livros de que já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel.(…)”
Como podemos ver, os Sempere têm uma relação de paixão pelos livros desde pequenos, e a paixão passa de pai para filho, de geração em geração. Os tempos mudam, as pessoas morrem, mas os livros permanecem. Depois de A Sombra do Vento e as aventuras de Daniel para proteger o último exemplar não queimado de um livro de autor misterioso, podemos ver a história de um autor falido em O Jogo do Anjo, ver mais da história de Daniel em O Prisioneiro do Céu, e finalizar a aventura dos Sempere em O Labirinto dos espíritos. Leiam, apaixonem-se pelos livros e por Barcelona como eu fiz, podem acusar Zafón de bairrismo, mas de um bairrismo apaixonado e louco que transborda por suas palavras, da mesma forma que a paixão por literatura e conhecimento é transmitida claramente em seus livros.