COLUNA LORCA
POR CHARLES BERNDT
*
SIGO BUSCANDO UMA MORTE DE LUZ QUE ME CONSUMA[1]
Das viagens que faço em fluxo de consciência
e dos encontros com a memória, com pessoas, com palavras.
voz
Hoje, sou eu quem vos fala: a minha voz. Hoje quem vos fala é minha voz. A minha voz, é a minha voz que vos fala, chama, transpassa o tempo, o túmulo que não significa nada, que é onde está o pó. As vozes, os seres, as consciências habitam o Todo, o mundo, por toda parte, em círculos infinitos e em cidades que nem podeis imaginar. É a minha voz que paira sobre a noite fria do sul sidéreo. Não venho em lamento. Não venho em socorro. Talvez venha em socorro de mim próprio. Talvez. Desço e entro na garganta de todos vocês que me esperam, que me chamam, mesmo sem me conhecer. Hoje é com a minha voz que irão gritar, é a minha voz que irão ouvir nos sonhos. A minha voz desmistificadora de pesadelos. A voz do homem que fui, sou, continuo sendo e serei sempre. A voz da criança. A voz da mulher. A voz dos que andam. A voz dos que sofrem, mas amam. A voz da esperança, da fé no humano, que há de vencer os monstros que criamos. A voz dos que lutam. A voz de quem resiste. A voz de quem escreve o verso proibido. A voz de quem diz o que todos querem esquecer. A voz da noite, do dia, do sol, da nuvem branca e da nuvem negra. A voz da chuva. A voz do pássaro, do lobo, da matilha. A voz do mar. A voz de ontem. A voz de amanhã. A voz, a voz, a voz. A voz de todos os dias em que dormi e não sonhei. A voz de todos os versos que quis escrever. A voz dos versos que escrevi sem entender. A voz dos versos que amei. A voz da árvore, a voz do vento, da paz, fugaz, a voz. A minha voz, nossa e tamanha voz. A voz que trauteia, sem temer, sem ansiedade. Nossas vozes. Um canto livre, profano, transgressor.
reflexo
Ontem olhei no espelho e tive um susto. Vi o reflexo de outra pessoa. Não era eu, mas era. Que cabelos são esses? Que olhos, que boca, que queixo alongado, que olhos acesos. Senti vontade de mudar o cabelo, de vestir roupas que não gosto, de pular, de sorrir, de fingir ser um outro homem. Quem és tu? Este não sou eu. Eu sou luz. Eu sou uma consciência que paira, mariposa da noite, presa numa casa ampla, em que esqueceram as janelas fechadas. A casa é meu corpo, a mariposa sou eu. Quem és tu, poeta, que habita o lugar mais inabitável de mim? O que queres dizer, afinal de contas? É aconselhável parar de sussurrar versos, palavras, títulos de romances e novelas. É melhor parar de inventar personagens. Você não é Fernando Pessoa. Ou talvez seja. Talvez seja como ele, ou ainda mais doido. Deus me livre pedir meus óculos antes de morrer. Mas eu não uso óculos. Quem é este que invento de mim quando escrevo poesia? Aprendi com Caeiro que é melhor não ser, apenas sentir. Mas sentir é ser. Não há fuga deste labirinto, Teseu. O Minotauro comeu tua cabeça e tu continuas vivo. Ontem olhei no espelho e tive vontade de sentar na frente do computador e escrever qualquer coisa, um monte de besteira, que me viesse à mente. Hoje eu fiz isso e penso que me enganei. Não se trata de escrever besteira. Trata-se de fazer o que a psicóloga me pediu. Mas eu não vou na psicóloga. Oh, pedaço de mim. Oh, metade afastada de mim. Leva o teu olhar….
poesia
Até parece que posso definir poesia. Não, eu não posso. Poesia? Há dias em que eu não consigo escrever nada. Mas eu penso. Penso tanto. Penso de uma forma alucinadora. Queria poder conectar meu cérebro ao computador, guardar pensamentos na nuvem. Mas o que seria da poesia? Não haveria? A poesia está aí, nessa loucura em querer traduzir. Todo poeta devia… Complete a frase. Eu não sou capaz de terminar a frase. Todo poeta é um cara estranho. Deixa eu refazer. Todo poeta é uma pessoa estranha. Não. Todos as pessoas que escrevem poesia são estranhas. Por que há as mulheres e elas são as melhores poetas. Poeta deveria ser palavra feminina. Que raio de língua é essa em que tudo é tão masculino. Ah, mas é a língua portuguesa. Eu amo a língua portuguesa. Apesar de tudo eu amo essa língua, essas palavras vindas de Roma, das invasões visigóticas, do domínio árabe da península, do tupi, da mãe África. E dá, sim, pra sonhar de tantas formas nessa língua marinha, oceânica, que se espalha pelo mundo, em tantas bocas. A língua portuguesa é um corpo e suas variantes são os membros, os órgãos. Que lindo. Poesia então é… Não sei. Ela está por aí, nisso que venho fazendo, nos teus olhos me lendo, na boca do meu namorado, nos olhos pretos que ele tem, nos pelos da sua barriga e no modo como sentimos saudade um do outro. Saudade. Saudade é uma coisa tão linda de dizer e boa e ruim de sentir. Saudade, coisa só nossa, de quem fala essa língua. Não poderia escrever poesia noutra língua. Talvez até pudesse. Em francês? Em espanhol? Mandarim? Quem sabe na próxima reencarnação. E poesia é isso, é…. É vagar, andar pela noite e sentir frio, tirar a meia do pé e sentir a coberta. Sensações. Não dá pra definir. É… é ver meu cachorro feliz rolando na areia. Ouvir a voz de quem se ama. Sentar pra escrever. Ler um livro. Fazer um bolo. Cantar aquela música. Voar, com as palavras. E nem só de luz a poesia se faz. Há sombra, embora eu costume sempre lançar meus olhos para o sol. Ainda que eu ande no vale da sombra da morte, não temeria mal algum...
homossexualidade
É a característica atribuída aos seres que se sentem atraídos fisicamente, esteticamente e emocionalmente por um outro ser vivo que possua o mesmo sexo biológico e o mesmo gênero que o seu. É o que diz algum dicionário online qualquer. É o que dizem todos os dicionários. Mas será só isso? O que o dicionário não diz? Não nos conta certamente do quão difícil e dolorosa pode ser a vivência de um homossexual. As palavras ofensivas, os xingamentos, as brincadeiras, os espancamentos, as agressões, a violência, o ódio, o preconceito, o abandono, a falta de consciência da sociedade, as exclusões, a ignorância e a maldade. Quantos meninos e meninas sofrem calados? Sofrem porque um dia alguém inventou que amar era pecado. Sofrem porque alguém decidiu podar o amor, controlar os corpos, doutrinar as mentes, excluir pessoas, impor sua ignorância. Mas o tempo passa e em muitos lugares do mundo, Federico, já se pode ser feliz assim. Sim. Talvez não na Rússia. Talvez não em tantos lugares do Brasil. Talvez não com tantos Trumps por aí. Talvez. Mas nós somos perseverantes e fortes. Existimos. Persistimos. Ao fim e ao cabo, o Amor é sempre maior, é uma ave, uma fênix que renasce todos os dias. Choro por aqueles que não puderam e não podem amar e expressar seu amor. Mas não esmoreço, sei que o futuro nos aguarda e a vida não cessa. Os agressores de hoje colherão o que semeiam, sentirão o gosto do fel que produzem. Se a justiça dos homens é cega, a do Universo não se esquece. Mas nem tudo é tão cinza, vá lá. Hoje caminho pela rua com o homem que amo e me sinto feliz. Vivemos o que tantos sonharam e no fim somos iguais a todo mundo, a todos os casais: temos medo, sentimos raiva, saudade, fazemos as pazes, vamos ao cinema e discutimos por causa de algum filme ou livro. Nós nos amamos e é tão bom ter você, abraçar teu corpo. Como é bom beijar tua boca, pegar nos teus ombros, sentir o teu cheiro de homem. Andemos juntos, apertemo-nos, o frio diminui e a rua se torna menos longa.
caminhos
Hoje saí de casa quando anoitecia, fui até a praia, vi o mar, senti o cheiro da noite, conversei com meu cão, liguei para meu companheiro. E aquilo que deveria ser apenas um passeio tornou-se uma odisseia mental, uma cascata de palavras perdidas, ou talvez nem tão perdidas assim. É difícil deixar o caminho da razão. Mas tentamos. Uma romaria de vaga-lumes flutuava até a lua. Hoje eu pude segui-los. Finalmente. Tornei-me um deles. Não posso contar meu segredo de metamorfose. Mas todos os poetas fazem isso. Segui com os pirilampos então em completo silêncio e só abri os olhos quando estava pousado na Lua, no lado iluminado da Lua. A Terra é tão gigante daqui. Uma imensa bola azul celeste. Quanto mar. Tanto mar. Quem dera esse ponto azul aprendesse logo a amar. O tempo passou. Ou não. Senti vontade de mudar de forma. Voar, flutuar. Eu me transformei numa gigantesca lula livre a flutuar pelo solo lunar. A gravidade não castiga meus membros. Flutuo com meus tentáculos, dou piruetas no ar. Não me podem prender, não sou mais um ser, sou uma palavra, um signo, uma ideia. Aqui não há carcarás. Andei pelas crateras da lua pensando em dias na Terra. Esperança. Horas depois, ou segundos lunares que valem por dias, voltei a ser pirilampo e cansado de ser bicho voltei a ser gente, em seguida. Percebi que os vaga-lumes agora retornavam à Terra, já tinham cumprido seus serviços secretos na atmosfera da Lua. Rapidamente eu tomei meu lugar na romaria. Não poderia perder o bonde, dizem que o espírito de Lampião vaga pela Lua. Deus me livre ter esse infeliz encontro. De volta à terra, com a cabeça sem presságios, deitei-me no travesseiro e me coloquei a dormir. Sonhei que era menino e que brincava sob a velha aroeira da minha infância. Corri por gramados e não sentia medo. Voltei a ser homem e agora escrevia novamente, sentado em um barco, no meio da baía sul. Era noite e o mar parecia não possuir uma única onda, um extenso cobertor esticado, pérola negra, onde via meu rosto. É hora. Hora de regressar, hora de voltar ao mundo dos vivos e dos loucos. No fundo do mar há uma luz, um lampião, de onde sai uma voz. A voz da minha mãe. A tua voz, poeta. Parte de mim. É como se eu fosse agora um feto, um peixe, uma bolha. Ignorante da água, como se não precisasse de pulmões nem de ar, vou buscando a luz. Vós sois a Luz do mundo, alguém disse uma vez. No alto da colina uma vela. Se não podeis ser um sol, sejais ao menos uma vela, na madrugada da vida. Se não podeis ser a voz do mundo, sejais a minha voz, que só é voz, não se cala, nem dorme. Toma, agora é teu este toco de vela, acende outro verso, continua o caminho.
[1] Último verso do poema Gacela de la huida, de Federico Garcia Lorca.
*Imagem: Miró