O Pato Gumercindo

COLUNA NO MEU TEMPO 

DOUGLAS MOREIRA

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O texto dessa semana é um conto pelo qual Filippo, meu mais velho, é apaixonado! A história surgiu como surgem todas as histórias inventadas pelos pais: naquele momento em que, no meio da madrugada, você está bêbado de sono, seu filho te chama no quarto dele, pede água, vira para você e diz: “Pai, deita aqui comigo agora e me conta uma história nova!”

Esse conto é dedicado ao Filippo, que me motivou com seus inúmeros denovo, à Aurora, que ainda vai ouvir muito sobre esse pato, e à Perla, que me disse “Que legal! Escreve!”

Ou seja, este conto é dedicado às minhas paixões.

 

O Pato Gumercindo

– Cócóricó… Cócóricó….

Todo dia, ainda de madrugada, era a mesma coisa. Galo Gualberto saía de seu poleiro com muito cuidado para não fazer barulho e acordar as outras galinhas e, pé ante pé, silencioso, voava para a cerca da fazenda. Ainda estava escuro quando enchia os pulmões de ar e entoava aquele canto que percorria toda a planície ao redor:

– Cócóricóóóóóó! Cócóricóóóóóó!

Galo Gualberto tinha um combinado com o Sol. Depois de um tempo onde os dois não se entendiam sobre quem deveria começar o dia, o Sol com seus primeiros raios ou o galo com seu cantar majestoso, chegaram finalmente a um acordo: o dia começaria com o cantar de galo Gualberto e, logo em seguida, o Sol já poderia liberar seus primeiros raios para iluminar o dia da fazenda, e de todo o mundo, claro!

Tudo corria muito bem até que uma confusão tomou conta da fazenda! O dia ainda nem havia amanhecido e dona Galilda, galinha que era esposa do galo Gualberto, saiu toda alvoroçada de dentro do galinheiro, nervosa que só ela!

Socócócorro! Socócócorro! – cacarejava dona Galilda, num desespero de dar pena! –  Alguém me acuda! Alguém me acuda! – a bicharada da fazenda saiu atordoada com a bagunça ainda tão cedo e curiosa pra saber o que estava acontecendo. Seu Porcheto e dona Porcheta, porquinhos rosados da fazenda, correram para perto do galinheiro numa disparada só! Dona Porcheta quis saber:

Óinc! Óinc! Mas o que está acontecendo? Eu já estava acordada, óinc, tomando um banhozinho pra começar o dia já bem cheirozinha, óinc, e comecei a ouvir essa gritaria toda da senhora, dona Galinda! Até acordei o Porcheto que estava roncando que parecia um porco!

–  Eu sou um porco – disse seu Porcheto, ainda bocejando.

– Ah! Uma tragédia! Uma cócóisa terrível! – se desesperou dona Galinda – Gualberto está gripado! Muito gripado! Gripadíssimo! Acordou agora pela manhã todo dolorido, acho até que está com febre!

Eguégia, esposa do cavalo Abismal, que também foi acordada pela bagunça e já tinha se apresentado para o falatório que se dava perto do galinheiro, tentou tranquilizar dona Galilda:

– Ah Galilda, fique tranquila! Abismal meu marido também, vira e mexe, pega uma gripe dessas, mas em uma semana isso passa!

Abismal, tranquilo, veio trotando devagarinho de seu estábulo e, ouvindo o que disse sua esposa Eguégia, emendou:

– É verdade Galilda! Essas gripes se curam sozinhas! Diga a ele para tomar bastante água, se alimentar bem e descansar bastante que daqui a pouco ele está de volta!

– Vocês não estão entendendo! – disse Galilda começando a se desesperar – O problema não é a gripe! O problema é que Gualberto está sem voz! Não consegue cantar! E se ele não cantar, o Sol não vai acordar, o dia não vai nascer e nós teremos noites seguidas de noites por todos os dias em que ele estiver doente! O Sol só vai nascer quando ouvir Gualberto cantar, esse é o combinado! E o Sol tem um sono muito pesado! Só acorda com Gualberto! Ahhhh… não sei o que fazer…. – dona Galilda caiu no choro.

– Mas não podemos pedir pra Lua acordá-lo? Ainda está escuro, na hora em que ela estiver indo embora, dá uma passadinha na casa do Sol, bate na porta e acorda ele ora bolas! – perguntou seu Porcheto, acreditando que tinha resolvido o problema.

– Impossível! – respondeu Eguégia – Essa Lua é Nova! Ela não tem a menor ideia de onde mora o Sol! E você se esqueceu Porcheto? Lua Nova nem aparece no céu! Fica lá escondidinha aproveitando o escurinho da noite pra dormir!

Daí por diante o pânico tomou conta da bicharada da fazenda! – Como assim o Sol não vai nascer? –  era a pergunta que não parava de ser feita! Muitas coisas poderiam acontecer se o Sol não nascesse: o dia não clarearia, nem esquentaria, não seria mais possível ver o azul do céu, as árvores parariam de dar seus frutos, os bichos ficariam confusos e dormiriam o tempo todo, as estrelas ficariam cansadas de ficar no céu o tempo todo e se tornariam cadentes, fugindo para alguma galáxia onde pudessem descansar… Realmente, o Sol não nascer era uma péssima coisa de se acontecer. Foi então que Galilda teve uma ideia sensacional:

– Já sei! Já sei! Cócócómo não pensamos nisso antes! Vamos pedir ao pato Gumercindo para cantar! Ele é uma ave! E eu já o ouvi chamando seus patinhos para voltarem para os ninhos! Ele canta bem alto! Certeza que vai acordar o Sol!

Os bichos se entreolharam e a ideia de dona Galilda não parecia ser assim tão sensacional. Pato Gumercindo era o bicho mais preguiçoso e mal-humorado da fazenda. Não gostava muito de passear, tinha preguiça de nadar, preguiça de voar, preguiça de caminhar… Gumercindo era a preguiça em forma de pato! Só dona pata Clarinéia, sua esposa, conseguia que ele fizesse alguma coisa, como levar seus dois patinhos à lagoa para brincarem, por exemplo. Ainda assim, de vez em quando.

– Ih… não sei não… pato Gumercindo é meio preguiçoso, né gente? – disse desanimado o cavalo Abismal.

– Vale a pena tentar! Eu vou chamá-lo! – animou-se dona Galilda –  Pato Gumercindo! Pato Gumercindo! Ô pato Gumercindo!

Depois de algum tempo, lá veio pato Gumercindo, andando devagarinho… Mastigando um capinzinho que havia encontrado no meio do caminho.

– Mas que gritaria é essa dona Galilda? A senhora me acordou! Que preguiça… Estava dormindo gostoso… um sonho bom… E assustei! Não está na hora de acordar ainda! Está escuro!

– É esse o problema Gumercindo! – falou Galilda – Está escuro porque o Gualberto, meu marido, pegou uma gripe e não consegue cantar, se ele não canta o Sol não nasce! E daí o dia não vai raiar e daí…

– Ah…, mas a senhora me acordou só pra falar isso? Eu poderia ter ficado dormindo… adoro um escurinho…

– Dormindo seu Gumercindo? Aiaiai! Resolvemos chamá-lo porque gostaríamos que você cantasse! De repente se você, que é uma ave, cantar, talvez acorde o Sol e o dia finalmente poderá nascer!

– Quá. Não. Quá. Pato não canta. Quá.

– Mas como assim, eu já o ouvi cantar e o senhor canta muito bem.

– Quá. Não. Quá. Pato não canta. Quá.

– Mas nós precisamos da sua ajuda Gumercindo! – insistiu a galinha Galilda.

– Quá. Não. Quá. Pato não canta. Quá. Quá. Tenho preguiça. Quá.

A bicharada começou a ficar desesperada. Já passava muito da hora do Sol nascer e eles continuavam naquele impasse! Gumercindo não cantava de jeito nenhum e por pura preguiça, e não havia quem conseguisse convencê-lo a cantar. Cavalo abismal tentou relinchando:

– Caaaaaaaaaaaaaaanta Gumercindo!

– Quá. Não. Quá – respondeu Gumercindo

Pocheto também:

– Óinc! Óinc! Canta Gumercindo!

– Quá. Não. Quá – insistia Gumercindo.

Gumercindo não cantava. Queria dormir! Até que chegou dona pata Clarinéia que acabou acordando com aquela conversa toda e já quis saber o que estava acontecendo. Ao saber dos bichos que Gumercindo não queria cantar de jeito nenhum, por pura preguiça, enfezou-se!

– Gumercindo! Quá! Gumercindo! Quá! Você vai cantar sim! Que história é essa de não cantar por preguiça? Vai cantar sim senhor!

–  Quá. Não. Quá. Pato não canta. Quá.-  devolveu Gumercindo.

– Ah…, você vai cantar! Sabe por quê? Porque senão, quem vai cantar no seu ouvido todo dia sou eu! E você sabe como eu canto muito bem, não é Gumercindo?

Dona Clarinéia adorava cantar, porém, era muito desafinada! Isso, claro, não a impedia de cantar! Ela cantava todo dia e sempre muito feliz, porque sabia que não importava se cantava bem ou mal. Para ela, o importante era cantar! Porém, ela sabia que Gumercindo não iria querer que ela ficasse cantando no ouvido dele o dia todo! Atrapalhando suas sonecas! Que preguiçoso esse pato!

– Quá! Caaaaaaaaaaaanta Gumercindooooooooooooo! – cantou alto e bem desafinado dona Clarinéia.

– Quá! Quá! Claro meu amor! – respondeu Gumercindo, mais que depressa! Gumercindo encheu os pulmões e como se fosse Galo Gualberto, cantou:

– Quá quá quá quááááááááááá! Quá quá quá quááááááááááá!

Eis que então, logo após o canto de pato Gumercindo, ouviu-se um estrondoso bocejar vindo do céu – certamente o Sol se espreguiçando ao sair da cama! A escuridão que tomava conta do céu da fazenda rapidamente começou a desaparecer e dar lugar a um azul lindíssimo, daqueles azuis de manhãs de outono! Os primeiros raios de Sol do dia começaram a chegar e a esquentar cada cantinho da fazenda! Os pássaros começaram a cantar, as flores puseram-se a desabrochar e todos, todos ficaram numa alegria sem tamanho, afinal, o dia estava salvo!

Os bichos agradeceram ao pato Gumercindo por ele finalmente ter cantado e ele se sentiu muito feliz! Sentiu-se importante mesmo! Não tinha ideia que um pequeno canto, uma pequena atitude, poderia fazer diferença na vida de tantos bichos, de toda a natureza. Daquele dia em diante, Pato Gumercindo deixou de lado a preguiça e começou a dividir a cantoria da manhã com o galo Gualberto. Dia sim dia não, o Sol nascia com aquele cantar inconfundível do pato Gumercindo, o pato cantor!

– Quá quá quá quááááááááááá! Quá quá quá quááááááááááá!