COLUNA UIVOS
POR ROMULO NARDUCCI
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Já com uma trajetória bem vivida, na década de noventa, depois de um apanhado de prêmios literários por suas obras que fluíam entre a poesia, a ficção e o teatro, Hilda não se rogou ao se rebelar contra o mercado editorial de forma irônica e cirurgicamente precisa ao abordar o tema sexo em um tom libertino e satírico. É de se elucidar que Hilda Hilst jamais perdeu a mão ao tratar do assunto, não se abdicando jamais de sua erudição e da plástica magistral que possuía ao compor e traçar os seus versos e as suas prosas.
Porém, apesar da poeta e escritora paulistana ter sido premiada e cultuada sob uma efígie excêntrica – já que dizia publicamente que ouvia vozes de espíritos na chácara Casa do Sol, onde morava –, por toda a sua vida teve de vestir o manto de autora que não atraía a atenção de muitos leitores. Na verdade, havia por parte da crítica, da mídia e do próprio público leitor, uma visão ambígua em torno de sua imagem e da forma como tratá-la. Hilda Hilst por muitos e muitos anos de sua vida literária viveu no antagonismo entre a aceitação ou a rejeição da sua obra.
Com a sua chamada tetralogia obscena composta pelas obras O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio, textos grotescos (1990), Cartas de um sedutor (1991) e Bufólicas (1992), o seu populismo foi elevado, sendo então requisitada em diversas aparições na mídia para entrevistas e eventos; e tudo isso diante de uma medida de elevação incompreendida que a colocou sob a alcunha de escritora pornográfica.
Se era o que Hilda queria: bem, conseguiu. Seu intuito ao trabalhar textos e poemas libertinos e satíricos era a sua maneira de atrair todos os olhares para a sua direção, a fim de divulgar a sua vasta bibliografia.
O livro de poemas Bufólicas integra e fecha com chave de ouro a fase de “ponta-pé no rabo do mercado literário” – que de início criticou enfadonhamente a atitude de escrita desregrada de Hilda sob alegações de que a tal tetralogia estaria maculando a imagem da autora numa busca mercadológica banal.
Não há como negar que Bufólicas trata-se, de fato, de uma obra-prima diferenciada de tudo que possa existir na literatura e no universo criado por Hilda Hilst, pois não aborda um estilo de erotismo como nas suas obras anteriores, mas também não podemos concordar com o rótulo de poesia pornográfica, como muitos intitulam, até pelo fato de que o intuito generalizado do termo pornografia visa tão somente a excitação de leitores, expectadores e afins. A vulgaridade e a obscenidade conjuradas por Hilda em Bufólicas são os seus dispositivos para denunciar e desmascarar defeitos políticos e a conduta de uma sociedade hipocritamente retrógrada.
Composta por sete poemas, a obra apresenta personagens clichês de contos de fadas: como rei, rainha, lobo, bruxa, anão, donzela, fada, entre outros. Todos os poemas são compostos como fábulas em uma linguagem excessivamente grotesca e obscena, interligando os personagens ao sexo e às suas partes pudendas. A mimesis articulada pela poeta – que sempre fora uma libertária nata – tinha como arcabouço quebrar os paradigmas na desconstrução da literatura clássica, aproveitando-se para escarnecer do conservadorismo imposto pela sociedade.
Vamos às poesias ou às fábulas:
A Chapéu
Leocádia era sábia.
Sua neta “Chapéu”
De vermelho só tinha a gruta
E um certo mel na língua suja.
Sai bruaca
Da tua toca imunda! (dizia-lhe a neta)
Aí vem Lobão!
Prepara-lhe confeitos
Carnes, esqueletos
Pois bem sabes
Que a bichona peluda
É o nosso ganha-pão.
A velha Leocádia estremunhada
Respondia à neta:
Ando cansada de ser explorada
Pois da última vez
Lobão deu pra três
E eu não recebi o meu quinhão!
E tu, e tu Chapéu, minha nega
Não fazendo nada
Com essa choca preta.
Preta de choca, nona,
Mas irmã do capeta.
Lobão: Que discussões estéreis
Que azáfama de línguas!
A manhã está clara e tão bonita!
Voejam andorinhas
Não vêdes?
Tragam-me carnes, cordeiros,
Salsas verdes.
E por que tens, ó velha
Os dentes agrandados?
Pareces de mim um arremedo!
Às vezes te miro
E sinto que tens um nabo
Perfeito pro meu buraco.
Aaaaiii! Grita Chapéu.
Num átimo percebo tudo!
Enganaram-me! Vó Leocádia
E Lobão
Fornicam desde sempre
Atrás do meu fogão!
Moral da estória:
um id oculto mascara o seu produto.
A Rainha Careca
De cabeleira farta
de rígidas ombreiras
de elegante beca
Ula era casta
Porque de passarinha
Era careca.
À noite alisava
O monte lisinho
Co’a lupa procurava
Um tênue fiozinho
Que há tempos avistara.
Ó céus! Exclamava.
Por que me fizeram
Tão farta de cabelos
Tão careca nos meios?
E chorava.
Um dia…
Passou pelo reino
Um biscate peludo
Vendendo venenos.
(Uma gota aguda
Pode ser remédio
Pra uma passarinha
De rainha.)
Convocado ao palácio
Ula fez com que entrasse
No seu quarto.
Não tema, cavalheiro,
Disse-lhe a rainha
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Ó Senhora! O biscate exclamou.
É pra agora!
E arrancou do próprio peito
Os pêlos
E com saliva de ósculos
Colou-os
Concomitantemente penetrando-lhe os meios.
UI! UI! UI! gemeu Ula
De felicidade
Cabeluda ou não
Rainha ou prostituta
Hei de ficar contigo
A vida toda!
Evidente que aos poucos
Despregou-se o tufo todo.
Mas isso o que importa?
Feliz, mui contentinha
A Rainha Ula já não chora.
Moral da estória:
Se o problema é relevante,
apela pro primeiro passante.
O Anão Triste
De pau em riste
O anão Cidão
Vivia triste.
Além do chato de ser anão
Nunca podia
Meter o ganso na tia
Nem na rodela do negrão.
É que havia um problema:
O porongo era longo
Feito um bastão.
E quando ativado
Virava… a terceira perna do anão.
Um dia… sentou-se o anão triste
Numa pedra preta e fria.
Fez então uma reza
Que assim dizia:
Se me livrasses, Senhor,
Dessa estrovenga
Prometo grana em penca
Pras vossas igrejas.
Foi atendido.
No mesmo instante
Evaporou-se-lhe
O mastruço gigante.
nenhum tico de pau
Nem bimba nem berimbau
Pra contá o ocorrido.
E agora
Além do chato de ser anão
Sem mastruço nem fole
Foi-se-lhe todo o tesão.
Um douto bradou: Ó céus!
Por que no pedido que fizeste
Não especificaste pras Alturas
Que lhe deixasse um resto?
Porque pra Deus
O anão respondeu
Qualquer dica
É compreensão segura.
Ah, é, negão? Então procura.
E até hoje
Sentado na pedra preta
O anão procura as partes pudendas…
Olhando a manhã fria.
Moral da história:
Ao pedir, especifique tamanho
Grossura quantia.
* Os poemas acima foram extraídos do livro “Bufólicas”, Editora Globo – São Paulo, 2002, que contam com ilustrações do Jaguar.