MAYOMBE

COLUNA PITACOS 

POR LETICIA SANTOS

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“Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.”

Esse narrador é Teoria, e ele está aqui não só por ser o primeiro narrador de Mayombe – livro do escritor angolano Pepetela -, mas por trazer nessa apresentação impactante uma dualidade que poucas pessoas poderiam entender. Ele é um mestiço num mundo onde a mistura é mal vista, ele é um soldado da revolução que carrega a mancha do inimigo na pele. Hoje vamos falar de revolução, vamos falar de luta, porque uma das maiores paixões que o ser humano pode cultivar é por seus ideais e por seu país.

Se você não sabe, Angola é uma nação irmã da nossa, temos o mesmo pai, aquele ali de cima, do branco defunto, de Portugal, herdamos a língua e uma carga grande de sofrimento desse pai abusivo – que ficou mais tempo com nossos irmãos distantes, na África. Em Mayombe podemos ver através dos olhos de personagens que estão no meio da luta pela libertação de seu país, vemos como a gana de liberdade – muitas vezes de vingança – é capaz de nos assustar e de nos fascinar ao mesmo tempo.

A paixão por uma causa é praticamente um sacerdócio em Mayombe, é um compromisso firmado com o sangue dos companheiros, uma oferenda aos ancestrais, e de maneira alguma é tomada de ânimo leve. Essa é uma narrativa onde Pepetela optou pela polifonia, ou seja, tem vários narradores em primeira pessoa, nos dando a oportunidade única de conhecer vários membros da revolução e, desse modo, nos mostrar que apesar de às vezes discordarem sobre o método, ou sobre execuções, nenhum deles jamais discorda que precisam vencer.

Ler uma obra que se passa em dias de guerrilha é algo que nos transporta para as trincheiras e para a organização das ações, nos faz sentir a tensão dos soldados, ver as condições em que viveram. E então, meu caro leitor pode estar dizendo: ai, Leticia, pelo amor, isso é ficção! Sim, eu sei, mas é ficção escrita por um participante ativo da revolução. Ah, te peguei nessa, não é? Pepetela é remanescente da revolução, que aliás, era cheia de escritores, o presidente da Angola liberta foi Agostinho Neto, que deixou em poemas sua paixão pelo país e pela libertação do negro do seu colonizador.

Nas páginas de Mayombe, podemos ler que a luta ocorria não apenas pela liberdade de séculos de dominação e humilhações, mas também era um grito angustiado contra o apagamento de uma identidade nacional, ameaçada por um inimigo europeu. O interessante é que Pepetela nos mostra que apesar de unidos contra os portugueses, dentro da revolução existiam conflitos, e que isso é inerente ao fato de serem humanos.

Há uma gama de personagens nos mostrando que apesar de revolucionários, muitos deles se apegam a pequenas opressões. Ondina, uma personagem importante, companheira de revolução, é julgada e esmiuçada em sua sexualidade. Então, luta-se por liberdade de um opressor para reprimir e julgar os outros? Há a questão racial, de que muitos dentro da revolução não aceitam os manchados pela branquitude dos portugueses, mesmo que eles, como Teoria, lutem lado a lado contra o mesmo mal.

As paixões por conceitos e ideias são motivadoras e capazes de mudar o mundo, mas, penso que também são perigosas. As paixões moldam o ser humano com uma intensidade feroz, e se são capazes de libertar um país, facilmente podem se tornar opressoras daqueles que discordam. Convido-os a ler Mayombe e aprender mais sobre os homens e mulheres retratados nessa narrativa, que deram seu sangue em nome de seu país e da maior paixão do homem moderno: a liberdade.