O PRETO NO BRANCO: MOVIMENTO E INÉRCIA DA ARTE EM APESHIT

COLUNA BLACKTUDE

POR MARCOS RAMOS

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Não é novidade que Beyoncé e Jay-Z utilizam suas músicas para retratar e denunciar de forma real ou simbólica a situação do negro na sociedade. Principalmente no que diz respeito ao contexto racial norte-americano, o assassinato e cárcere da população e juventude negras, a invisibilização da cultura e da arte afro-americana ou a latente, e consequente, eugenia nas principais premiações musicais e cinematográficas dos EUA – temas aludidos tanto em Lemonade de Beyoncé quanto em, por exemplo, The story of O.J. de Jay-Z. Em se tratando, então, de um trabalho em conjunto, onde ambos performam e coordenam, não poderíamos esperar algo diferente.

Everything is love é o resultado dessa parceria que leva o nome da família: The Carters. O álbum, como já é de costume da parte da cantora norte-americana, foi lançado de surpresa e o lançamento do videoclipe de Apeshit marcou a sua estreia.

Mais que um simples featuring entre o rapper e a cantora, Apeshit é um protesto e, principalmente, uma série de declarações. Em primeiro lugar, não se trata de um clipe gravado no Harlem, ou no Brooklyn, bairros nova-iorquinos símbolos da cultura e da arte afro-americanas. Trata-se do Louvre, símbolo daquilo que seria a arte caracterizada como universal e, supostamente, não categorizada: aquela arte que não precisa de adjetivos que a complementem, ou seja, supostamente neutra.

No entanto, a partir de um trabalho de natureza simbólica que evidencia o contraste entre aquilo que ornamenta as paredes do museu e os artistas que dentro dele dançam e cantam, o clipe toma a liberdade de, através de metáforas visuais, categorizar essa arte: ela é branca e inerte.

Conhecido por possuir um dos maiores acervos do mundo, o Louvre já foi uma fortaleza, residência de reis, sede da academia real francesa de belas artes e hoje é a “casa” de célebres obras como a Vênus de Milo e a Mona Lisa. Logo, é o local onde se encontram as representações daquilo que o ocidente tem como sinônimo de belo artístico, e não é por um acaso que este é o lugar escolhido como local de tomada de fala por parte da comunidade que os Carters buscam representar.

Como quem diz Questionaremos sua arte dentro da sua casa, o preto toma como seu, algo que nunca lhe pertenceu: um lugar no panteão da arte ocidental. E não um lugar qualquer, mas um lugar em primeiro plano, à frente.

Em primeiro plano, pois o olhar do espectador é atraído na direção de quadros vivos que chamam a atenção pelo movimento orgânico contrastado à inércia dos objetos presentes nas salas do museu. Contraste inevitável conseguido, por exemplo, quando os corpos e cabeças de mulheres negras dançando formam uma onda orgânica em frente à estátua branca, imóvel e decapitada da Vitória de Samotrácia. Ou mesmo quando a imagem de anjos brancos pintados e esculpidos no teto do museu é antecedida pela imagem imponente de um anjo, negro e ao chão.

É esse anjo – humano e aproximado – que, do lado de fora, recepciona e abre as portas do local para o espectador e para aqueles que ali vão entrar e tomar lugar. Contraste aliado ao movimento de uma câmera invasiva que revela desde já o teor da mensagem a ser transmitida ali.

Trata-se de um posicionamento, de forma literal e simbólica, da parte da arte e do artista marginalizados e invisibilizados por um sistema racista de segregação estética que até hoje existe.

Em Apeshit, o artista negro se posiciona diante de obras do passado que, imóveis, representam um presente também estagnado. Presente que ainda olha com um olhar morto e desinteressado para a situação de vidas negras na sociedade. O preto aqui se posiciona e se movimenta diante de espelhos de um agora que ainda o retrata e o vê como aquele que enche os copos dos frequentadores da festa na casa grande, como em O casamento em Caná, de Veronese.

Posicionamento que nos instiga a questionar o nosso lugar numa sociedade que além de nos ignorar, desconsidera nossas expressões culturais e artísticas, mantendo-as confinadas a espaços reservados e etiquetados. Mas que quando a (re)conhece, invade, rouba e apropria.

Neste sentido, o Louvre não é apenas símbolo da arte ocidental, mas também de tudo que foi roubado das colônias, de apropriações, símbolo daquilo que de nós foi tomado: artefatos, mão-de-obra, imagem, suor. O que abre precedente para debatermos sobre uma problemática de apropriação que vai além do que diz respeito a obras destinadas à exposição em museus e galerias – como a Grande Esfinge de Tânis também presente no clipe –, atingindo manifestações artísticas como um todo que, ainda hoje, ao chegarem às mãos do branco e ao seu território, passam a ser valorizadas de uma forma que nunca foram quando apenas de nossas mãos vinham.

Situações de apropriação e desvalorização que vão desde de um Grammy que privilegia, supervaloriza e premia brancos iniciantes em categorias como rap e hip-hop – em detrimento de álbuns de artistas negros com impacto social inegável, até o embranquecimento do funk e no Brasil –, pois, assim, estes são mais rentáveis e dignos de aparecer em programas de TV.

Apeshit é um desafio ao sistema e a quem nos privou e continua privando de representatividade artística, mas que, ao mesmo tempo, vê lucro no que fazemos, desde que nosso “produto” se embranqueça e preencha um padrão.

Essa arte que faz background para Beyoncé, Jay-Z e seus bailarinos é símbolo do tratamento dado à cultura negra desde sempre: quando não é demonizada, é marginalizada e quando não é invisibilizada é apropriada e embranquecida.

Entrar no espaço do branco – espaço à nós negado e proibido historicamente – faz parte desta ação de projetar a nossa voz e o corpo para fora da margem que nos puseram e, simbolicamente, carregando aquilo construímos à margem por este caminho inverso, fazendo-nos presente no ambiente de onde nos expulsaram.

“Pague-me com equidade ou me assista reverter a situação”.

Não se trata de nos colocarmos apenas no centro do holofote – como disse Jay-Z em uma entrevista que deu para o New York Times em novembro de 2017 –, a luz do holofote é efêmera e esquecível, mas sim eternizar-se. É necessário invadir a catedral e posicionar-se à frente de suas paredes, mostrando nossa arte de forma não diminuta e orgulhosa: como o desembaraçar de um cabelo afro na frente de uma Mona Lisa desfocada.

Apeshit é o preto no branco. É arte em movimento diante da inércia.

 

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MARCOS RAMOS é cria da periferia de Diadema – SP,  formado em Estudos Lusófonos pela Universidade de Coimbra, Licenciado em Letras -Português/Francês pela UNESP – Assis. Atualmente é mestrando em Literatura e Vida Social também pela UNESP e se encontra quebrado financeiramente, por conta de um estágio de pesquisa não remunerado que decidiu fazer às cegas na Sorbonne, além de correr contra o tempo para escrever e entregar uma dissertação.