A OUTRA PERNA DO FLAMINGO – RODRIGO SANTOS

É ou não é pra ficar puta? A desgraça da mulher parece um flamingo, magra feito um varapau, cabelo amarelo clara de ovo de supermercado, branca que chega é rosada, e ainda duas varetas de perna que você não sabe se é uma só, e ainda fica de graça com meu marido. MEU MARIDO!

“Bom dia, Seu Nunes…”

Bom dia é o caralho, já entra no maldito do elevador se querendo e ajeitando o cabelo no espelho. Mulher quando ajeita cabelo é porque quer dar, não tem outra. E pra mim é um “Oi, Selma” muito do xoxo. Todo dia essa merda, imagino as piranhices que ela não faz quando encontra o Bartolomeu no elevador. E esse filho da puta também deve dar mole! “Que nada, Sel… Para de bobeira”, ele diz, tá bom. Eu sei que ele não vai pegar essa desmilinguida — até porque meu homem gosta é de carne, essa porra desse flamingo deve quebrar no meio se encarar um homem como o meu — mas homem gosta dessa palhaçada, dessa pavonice de ter mulher dando mole, não entendo essa raça, tem mulher em casa, não vai pegar mulher da rua mas gosta de ficar ouvindo gracinha. Já falei com ele, se eu te pegar dando mole para essa vagabunda vai dar merda, e ele só com aquele sorriso sonso de canto de boca “só tenho olhos para você meu amor”, acho bom, senão eu furo os dois com um alicate de cutícula.

Agora chego na festa do condomínio, com quem dou de cara? Com esse flamingo miserável, bebendo uísque e se chegando nos homens dos outros. Por que ela não dá mole pro Renan, que tem 40 anos, é surfista e mora com a mãe ainda? Não, ela quer é homem dos outros, essa diaba dessa mulher, que ódio QUE ÓDIO QUE ÓDIO dessa vagabunda.

“Mãe, vou subir para jogar, essa festa é festa de adulto”.

– Vai subir nada, Wesley, tem nem uma hora que a gente chegou. Larga um pouco desse negócio de videogame, menino!

“Não é videogame, mãe, é no computador, eu jogo com pessoas do mundo todo…”

– PiorRRRR ainda. Essa internet tá cheia de maluco, pedófilo e o escambau. Vai ficar aqui. Ali, tem salgadinho ali.

“Mãe, salgadinho me dá azia. Posso beber?”

– Na na ni na não. Pra depois eu virar a chacota do condomínio? Aí o desembargador da cobertura chama a polícia, olha eu presa aí?

“Tem que chamar a polícia é pro maconheiro do filho dele”.

– Xiu! Cala a boca, menino. Vai se divertir, vai. E por falar nisso, cadê teu pai?

Ué, quedê Bartolomeu? Última vez que eu vi estava abrindo a garrafa de Green Label que ele trouxe para a festa, perto ali da churrasqueira (não sei porque esse povo tem churrasqueira nesse condomínio. Fica nessa frescura de “Espaço Gourmet” e ninguém queima uma carne), depois não vi mais. E cadê a puta rosada? Ah, mas agora fudeu. Se essa mulher tiver o descaramento de dar em cima do meu marido hoje, vai ter barraco aqui. Nem me interessa o nariz empinado dessa gente, rodo a baiana aqui e esse povo vai ver como é que se resolve as coisas. Então eles acham chique e civilizado comer o marido dos outros? Chique é o caralho, vou encaçapar esse flamingo de porrada.

– Dona Miranda, você viu o Bartolomeu por aí?

– Não, Selma. E para com esse negócio de “dona”, aqui eu não sou dona de nada — nem de meu próprio nariz! — e riu, fungando pelo dito cujo.

Sei, não é dona AQUI, né? Aposto que trata as empregadas igual a cachorro lá na fábrica de quentinhas. “Restaurante Familiar” meu cu, aqui na Zona Sul qualquer pensãozinha é “restaurante”. Mas cadê o Bartolomeu? E o flamingo rosado dos inferno. Ai, se eu pegar os dois de gracinha…

Andei pela festa e nada dos dois. Vi pelo canto do olho o Wesley misturando vodka na fanta laranja — depois eu cuido desse menino. Se tivesse sido criado lá no Jardim Catarina que nem eu até que ia, na idade dele eu já bebia e dava uns tragos no Continental sem filtro do meu pai, mas criado aqui, nesse mundo de faz de conta? Se bobear esse moleque enche a cara e aparece um viadinho desses pra beijar na boca dele — ou coisa pior, essas pessoas aqui vivem em um mundo diferente. Pra que eu fui sair do Jardim Catarina? “ Selma, agora a gente é bacana, entramos na classe média!”, falou o Bartô e eu aceitei. Preferia ser bacana no Catarina, lá pelo menos o povo come churrasco, não fica com essa frescura de beliscar igual passarinho.

Não posso dar bandeira, tenho que procurar o Bartolomeu no sapatinho. Não sei por que também vim pra essa festa, ninguém aqui vai com a minha cara. Até o porteiro me olha estranho — e olha que ele é lá de Marambaia! Nos primeiros dias pensaram que eu era empregada. Também não assino porcaria de livro de ouro nenhum, ele que coloque uma caixa de sapatos embrulhada pra presente na portaria ou então nem panetone vai comer às minhas custas esses ano.

Pelo mostrador digital, vi que o elevador estava parado no meu andar, mas eu não tinha a intenção de subir. Fui até ali só para disfarçar, e abri a porta da escada me preparando para o flagrante. Se alguém quisesse fazer merda escondido no meio daquela festa, seria na escada.

Nada, só breu. Onde é que aquele miserável se meteu? E o flamingo? Eu começava a ficar mais nervosa. Foi quando lembrei dos banheiros do playground, que fica do lado do tal do Espaço Gourmet. Ah, se os dois estiverem lá… Não estava nem me importando mais com os outros convidados da festa, abri o passo e fui na direção do play, com sangue nos olhos. Nessas horas vai me subindo uma raiva, uma coisa, eu fico cega, parece até que eu estou com febre.

– Mãe?

– Me deixa, Wesley, me deixa!

Os dois banheiros fechados. Abri a porta das meninas, nada. De repente, comecei a ouvir uma respiração ofegante no banheiro do lado. “Ah, mas isso é barulho de alguém fudendo”, pensei. Logo veio na minha cabeça catar minhas coisas, meu filho e voltar pro Catarina. Eu ia acabar com esse desgraçado, ia trabalhar a vida inteira pra pagar pensão.

Escancarei a porta do banheiro dos meninos, que se dane, quero nem saber se tem gente, e o que eu vejo? A maldita do flamingo trepando em pé, apoiada numa perna só, e segurando a garrafa de Green Label!

– SUAPIRANHAFILHADAPUTA! — Nem pensei. Dei-lhe uma banda na perna reta que ela caiu feito uma jaca no chão do banheiro, não sem antes bater com a cabeça na ponta da privada. E saí largando a mão no safado que estava encostado na pia.

– SEU CORNO! DESGRAÇADO!

– Calma, senhora…

– CALMA É O CARALHO! TANTOS ANOS DA MINHA VIDA DEDICADOS A VOCÊ E AGORA VOCÊ QUER ME BOTAR CHIFRE? VÁ SE FUDER! VÁAAA SE FUDEEEEERRRR! — eu gritava e sentava a mão no miserável, no corno, no safado do…

Eu fico cega com a raiva, e aquele “calma senhora” demorou a soar algum gongo na minha cabeça quente. Quando parei de bater e olhei na cara do filho da puta, vi que não era o Bartolomeu. Era o Renan, coitado, com cara de assustado e camisa já toda rasgada.

Olhei pra a mulher no chão, com a testa sangrando, e quase fiquei com pena. Daí eu olhei para a porta do banheiro.

O condomínio todo estava ali, até gente que eu nem tinha visto na festa. Todo mundo me olhando com cara de espanto, ou de reprovação.

– Quié, porra? O que vocês estão olhando?

– Calma, Sel… — Bartolomeu entrou no banheiro e me pegou pelo braço.

– Calma o quê? Onde é que você estava?

– Estava em casa, passando mal… Selma… — Bartô me puxou pelo braço, encostou a boca no meu ouvido e falou baixinho — Vambora que você fez merda.

Que merda o quê? Essa mulher… — eu comecei a gritar, mas o grito morreu na metade. Caralho, eu tinha feito merda mesmo. Mas também, por que essa filha da puta desse flamingo tinha que ter essa afliceta toda? Por que a gente veio morar aqui? Comecei a chorar, e meu marido (um santo!) me levou para o elevador. Chegando em casa, tirou minha roupa, me deu banho e me colocou na cama. Um santo!

Não vejo a hora de me mudar daqui. Agora até o porteiro quando eu passo dá sua risadinha de canto de boca. “Bom dia, Dona Selma”, ri, filho da desgraça, ri mesmo. Daqui a pouco a gente tá voltando pro Catarina, e se eu te encontrar atravessando a rua no Alcântara te jogo pro alto, seu babaca. Bartolomeu conseguiu que a piranha não desse parte, com a promessa de que nós mudaríamos em breve. Se eu estivesse lá com certeza teria visto a cara de vitória das madames, pensando “ainda bem que esses gonçalenses vão embora daqui”. Wesley falou que o assunto já chegou no colégio — rico é bicho fofoqueiro mesmo! — e que agora ele é o filho da louca do banheiro, vejam só que desgraça, deve ser isso que esse povo chama de bullying, mas tenho certeza de que ele vai ficar bem no Catarina, tem um monte de colégio bom no Alcântara, eu acho que o pai vai ter que dar a moto que ele pediu pra ele ir ao colégio, mas não faz mal, o meu Bartolomeu é um santo homem.

E ai daquele filha da puta rosada se bater de frente comigo no elevador essa semana, ela vai ouvir é pouca e boas, ah, se vai!

::
RODRIGO SANTOS (Bardo / Facebook) tem 41 anos, é pai do Miguel, marido de Maria Isabel, flamenguista, escritor, professor e corredor de rua. É um dos criadores do projeto “Uma Noite na Taverna”, sarau mensal que durou treze anos em São Gonçalo – RJ. Vencedor do prêmio FLUPP Pensa 2012, autor de “Máscaras sobre Rostos Descarnados” e “Brechó de Almas” (poesia) e “Mágoa” e “Macumba” (romance), além de figurar em mais uma dezena de coletâneas, no Brasil e no exterior. Já jogou bola com Zico e já viu um peixe-lua.