A RECEITA DE GREEN – MAURO PAZ

Quando Thaís conversou pela primeira vez com David Green, na copa da empresa, estranhou o britânico dominar tão bem a língua portuguesa. Ele movia rápido o queixão redondo e usava um vocabulário diverso demais para alguém há apenas dois meses no Brasil.

“Também mudei há pouco para cá,” disse Thaís, mas nem teve a chance de contar sobre a cidade natal. Green desatou a falar. Disse que aprendeu a língua em Lisboa. Morou cinco anos lá com a ex-mulher. No começo, estranhava a luminosidade da cidade. As conversas de esquina. Os fados. Muito diferente da Inglaterra.

“Passei dois meses em Londres,” disse Thaís. “Curso de inglês”.

Green estava mais interessado em saber dos pontos turísticos de São Paulo. Não conhecia o Museu do Futebol, nem o MASP. Passara no Ibirapuera. Um formigueiro humano. A cidade precisava de parques menores nos bairros. Thaís disse também não conhecer o MASP. Green ficou horrorizado. Só então entendeu que Thaís vinha do interior.

No sábado, os dois se encontraram na Avenida Paulista. Três da tarde Green estava no café marcado. Calça jeans e a habitual camisa preta, mesmo no calor de trinta e cinco graus. Bateu pé por dez minutos. Thaís chegou com a história de um acidente entre o ônibus e o motoqueiro. Toda a Avenida Nove de Julho parada. Green não se comoveu. Iniciou um pequeno monólogo maldizendo a mania brasileira de atrasar. Parou de resmungo para falar do vestido floral de Thaís.

“É muito bonito,” disse Green, “mesmo para alguém acima do peso”.

Thaís corou o rosto. Consideraria aquilo um elogio, disse. Em retaliação, comentou que Green falava demais para um britânico. Dentro do museu não foi diferente. Green atacou os quadros do modernismo brasileiro. A falta de segurança do lugar. E fez mais uma série de comparações entre o MASP, o Museu Britânico e a National Gallery, de Londres. Mesmo Lisboa oferecia opções melhores, como o Centro Cultural de Belém. Thaís arrastava as sapatilhas sem muitas considerações. Por conta do curso de administração, sabia quase nada de arte. Quando saíram do MASP, convidou Green para lancharem algo. Green se ofereceu para cozinhar. Receita de família, sanduíche de carne com cebola caramelizada. Thaís agradeceu. Comeria algo rápido pela rua mesmo. À noite iria no aniversário de Jéssica, colega do RH.

“Estudamos juntas em São José do Rio Preto,” explicou Thaís.

“É uma garota exageradamente loira e de dentes metalizados?” Green se rendeu ao calor. Abriu o primeiro botão da camisa. Sacudiu o tecido para fazer vento.

“Essa mesma,” Thaís riu da descrição. Enquanto caminhavam até a garagem da Alameda Santos, combinaram os benditos sanduíches de carne para o dia seguinte no apartamento de Thaís. Green ainda comentou não entender a obsessão dos brasileiros por carro. Por ele, usaria só metrô. O carro era um presente do pai, disse Thaís. Ganhou para ficar mais fácil de ver a família nos finais de semana.

O aniversário de Jéssica aconteceu num bar avarandado da Vila Madalena. Poucos convidados. Três garotas do RH. Douglas, o namorado de Jéssica. E mais dois casais de amigos vindos de São José do Rio Preto. Mesmo assim, Thaís arrumou um jeitinho de chamar a amiga de canto e comentar a tarde com o inglês.

“Não gosto dele,” disse Jéssica, “Sempre de preto e dez anos mais velho que você”.

Thaís não contou à Jéssica sobre os sanduíches. No domingo, como combinado, o interfone tocou às dezoito horas. Bella, a filhote de pug, se desacomodou da almofada e latiu. Depois de o porteiro anunciar Green, Thaís ainda teve tempo de conferir se havia algum coco da cadelinha pela sala. A campainha tocou. Bella correu para farejar o rodapé. Em frente a porta, Thaís alisou o vestido. E encaixou a franja atrás da orelha para espiar pelo olho mágico o rosto ossudo de Green alargado pela lente. Ao abrir uma fresta da porta, a pug rosnou. Green permaneceu estático com a sacola do supermercado na mão. Nem os olhos azuis se mexiam.

“Não repara,” disse Thaís.

“Não vai me convidar para entrar?” Green arqueou os lábios e deu um volume as bochechas.

Thaís pediu desculpas. Abriu a porta por completo. Com o primeiro passo de Green para dentro da sala, Bella ouriçou o pelo e disparou a latir. Thaís pegou a pug no colo e a trancou no quarto. Bella era filhote. Nada acostumada com visitas, mas uma ótima colega de quarto.

“Ela é menos perigosa que esse mendigo em frente ao seu prédio” disse Green.

“Não faz mal a ninguém,” Thaís acendeu a luz da cozinha.

“Uau, meu flat caberia entre o fogão e a geladeira,” disse Green enquanto distribuía as compras no balcão da pia. A carne enrolada em papel pardo chamou atenção de Thaís. Há anos não via uma embalagem daquelas. Desde os churrascos do finado avô, em Rio Preto.

“Se importa de comer carne humana?”. Green dobrou a manga da camisa e deixou à mostra a tatuagem do antebraço direito. Um hexágono preto no formato de caixão.

“Ah, o humor inglês.”, Thaís colocou a assadeira sobre as grades do fogão.

Green preferiu a frigideira. Também precisava da maior travessa disponível. Desembrulhou a carne. E desatou a contar da história da receita centenária criada pelo bisavô francês. Da estante de madeira, acima da pia, pegou alecrim. A cada sacudida do frasco, uma chuva de galhinhos se derramava. Salgou. E com as mãos espalmadas, esfregou bem o tempero na carne sem parar de falar, é claro. Quando surrou a peça com o martelo, o perfume de alecrim se espalhou no ar da cozinha. Três pingos de sangue grudaram no azulejo da parede. Green os limpou com o indicador e levou o dedo a boca. Por fim, deixou a carne marinar na travessa retangular de vidro. Ao preparar a cebola caramelizada, pediu para Thaís olhar na direção da sala. Segredo de família. Sossegou de falar na receita ao se deparar com o péssimo fio da faca de carne. Prometeu uma nova de presente.

Thaís gostou do sanduíche. Comeria três. A carne macia combinava com o sabor agridoce da cebola. Secaram a garrafa de vinho. Só então, Thaís tomou coragem e pegou no braço de Green para ver a tatuagem em detalhe.

“Um caixão?”.

“Tem algo melhor para enterrar uma ex-esposa?”. Green contou que o casamento durou cinco anos. Conheceu Teresa em Londres. Casaram em Lisboa, onde aprendeu português e ingressou na filial lusitana da empresa de telefonia. Tudo correu bem até Teresa entrar em depressão. Mesmo perto da família, não saía de casa. Mal abria as janelas. Não fosse Green voltar para casa ao meio-dia, nem almoçava. A relação se apagou. Passaram a bons amigos. Depois de um ano, não suportavam a coexistência no apartamento. Então, Green pediu transferência para São Paulo. E lá estava há dois meses.

Thaís também acabara um namoro. Na verdade, o único namoro que teve. Sete anos, disse. Antes de terminar a história de como conheceu Douglas na escola, Green a interrompeu.

“Se nada disso acontecesse, você jamais provaria meu sanduíche”, disse Green.

“Verdade” disse Thaís. “Pena que o vinho acabou. Ia propor um brinde a Teresa e Douglas”.

Sem vinho e passava das onze. Hora de zarpar, disse Green. Vestiu a jaqueta. Quando levantou, um latido de Bella ecoou do quarto. No primeiro passo em direção à porta, Thaís sentiu o peso do vinho. Não bebia com frequência. Ao se despedir de Green, o beijo mirado na bochecha pegou no canto da boca. Green se mexeu? Ou era culpa da bebida? Thaís dormiu com a dúvida. Na hora do almoço, pediu a opinião de Jéssica. A amiga não ajudou muito. Preferiu recriminar Thaís por chamar o gringo em casa. Além de mais velho, Green era esquisito. Só usava preto. Não conversava com ninguém da firma. Thaís dispensou os comentários de Jéssica. Convidou Green para conhecer um pub próximo a Rua dos Pinheiros. Terça-feira. Green gostou da ideia, mas não da noite sugerida por Thaís. Um amigo de Londres estava em São Paulo e o chamou para jantar. Green sugeriu a noite seguinte. Mesmo com ensaio do grupo dança, Thaís topou.

Inaugurado há menos de seis meses, o pub gozava do preço da fama. Universitários, gringos, funcionários de empresas próximas, patricinhas com saias muito curtas e cabelos alisados. Todos amontoados junto ao balcão de madeira na disputa por cerveja. Green precisou de dois pints para acabar com a dúvida de Thaís. O primeiro beijo foi curto. O segundo, teve Thaís como guia e durou um par de minutos. Beberam mais uns copos. Provaram o hambúrguer da casa, que segundo Thaís não chegava aos pés do sanduíche de Green. Saíram do pub no mesmo táxi. No banco traseiro, o casal estendeu a beijação por três quilômetros. Quando o motorista estacionou em frente ao prédio, Thaís convidou Green para subir.

“Vamos devagar” disse Green. Numa próxima noite subiria. Pediu para Thaís tomar cuidado com o mendigo e o vira-latas amarrado no carrinho de supermercado. Thaís achou graça. Fora do carro, beijou Green através do vão da janela. Antes de o porteiro liberar o portão do prédio, deu boa noite ao mendigo e passou a mão no lombo do cachorro malhado de rabo ligeiro.

Na sexta-feira, Green aceitou o convite. Subiu ao apartamento de Thaís. Levou a prometida faca de carne como presente. E arriscou uma aproximação de Bella. A cachorrinha rosnou. Deu as costas e observou o estranho deitada na almofadinha próxima à mesa de jantar. Thaís e Green não comeram nada. Em compensação, transaram à beça. Uma. Duas. Três vezes. Até caírem suados para lados opostos da cama. De madrugada, Thaís abriu os olhos e se assustou com a sombra comprida junto à janela.

“Insônia” disse Green. “Todo vampiro sofre disso. Não repara”.

Thaís perguntou o que o incomodava. E se arrependeu pelo resto da noite. Green desatou um discurso sem fim. Estava infeliz no trabalho. Os colegas o perseguiam. Escondiam dados do mercado. Sempre que podiam, o excluíam das reuniões de planejamento. Não era convidado para os almoços, quem diria para os happy hours. O início da perseguição tinha nome. Rangel também atuava como gerente de relacionamento, porém de clientes corporativos. Desde que Green apresentou o método europeu de pós-venda, Rangel não economizou ironias. Dizia que deveriam instituir o horário da sesta, como na Espanha, ou o padrão francês de trinta e cinco dias úteis de férias. Thaís achou exagerado o relato de Green. Brasileiros brincam com tudo, disse. O céu se tingia de azul quando voltaram a dormir.

As noites acordadas com Green se multiplicaram. Fosse com sexo ou com monólogos de Green, sempre ultrapassavam as três horas da manhã. Thaís chegava no trabalho exausta. Substituiu as noites com o grupo de dança por beijos, mordidas e tapas na bunda. O sexo com Green era tão bom que Thaís deixou de ver os pais em São José do Rio Preto. Com aquela fodelância, se sentia mais magra e nem reparava na mania do inglês de implicar com tudo. Pelo menos até o domingo que Green entrou no apartamento indignado e ignorou a festinha de Bella.

“Vocês protegem esse mendigo e ele se sente à vontade para fazer o que quer,” disse Green. Uma veia grossa do pescoço saltava. “Acabei de assistir ele perseguir uma estudante”.

Thaís pediu calma. Conversaria com o pessoal do prédio para pensarem numa solução.

“Tenho uma ideia melhor” disse Green. “Você desce. Traz ele para o apartamento e nos deixa a sós. Duvido que, depois de uma conversinha em particular, esse bandido apareça aqui na rua de novo”.

O plano Green era too much. Thaís não trocaria de roupa para descer. O zelador resolveria o caso.

“Só quero cuidar da segurança da minha namorada,” disse Green. “Tem problema isso?”

Namorada? Thaís gostou da revelação. Se pendurou no pescoço de Green e disparou uma sequência de beijos. Vestiu calça de abrigo e blusinha. Disse para Green pegar leve. Sem violência.

“É um pobre coitado, só um susto e não aparece mais,” Thaís pôs a coleira no pescoço  de  Bella. Assim que resolvesse o assunto, enviaria uma mensagem para as duas voltarem, tranquilizou Green. Thaís desceu com a pug faceira. Improvisou a mentira de uma sacola com roupas para doação. O mendigo deu ordem para o cão malhado lhe esperar. Thaís sinalizou para o porteiro. Portão destravado. O fedor do mendigo encolheu o elevador. O homem coçava a barba grisalha.  Conversava com Bella trivialidades caninas. Chegaram ao oitavo andar. Thaís abriu a porta do apartamento e chamou Green.

“Amor, mostra as roupas para ele?” disse. “Vou passear com a Bella”.

Thaís e Bella deram três voltas no quarteirão. Sem nenhum sinal de Green, esperou na padaria. Uma hora se passou e nada. Preferiu ligar. Green atendeu depois de quarto ou cinco toques. Disse que o homem não incomodaria mais. De volta ao apartamento, Thaís reconheceu o cheiro do mendigo no ar. Sobre a mesa de jantar, encontrou um bilhete de Green: “Vou dormir no flat. Falamos amanhã”. Depois do banho, serviu água para Bella e deitou. A tela do smartphone iluminou o rosto de Thaís. Olhos vidrados, revirou o perfil de Green na rede social a procura do status de relacionamento. Nenhuma menção. O que Thaís encontrou foi um post estranho. Um amigo de Green deixara a mensagem I’m sorry for your loss. I’ll miss Teresa.

Thaís tomou coragem por três dias e quatro noites. Green vestido só de cuecas curtia a insônia ao olhar para rua. Arrepiou a pele ao sentir a mão de Thaís nas costas.

“Por que nunca contou que Teresa está morta?”.

“Como você sabe?” Green respondeu sem tirar os olhos da vista da janela. Thaís contou que ao bisbilhotar o status de relacionamento, encontrou o post do amigo inglês. Green levantou da cama e vestiu as calças. Gostava de Thaís, mas tudo andava rápido demais. Abotoou a camisa. Era melhor darem um tempo, disse. Nem sabia qual o seu futuro no Brasil.

“Não precisa ir embora,” disse Thaís. Era tarde. Pediu desculpas por se meter num assunto particular. Acompanhou Green até a porta na tentativa de que mudasse de ideia. Sem sucesso. Nos dias que seguiram, Green mal a olhava no rosto, ao se cruzarem na empresa. Thaís enviou centenas de mensagens de texto. Abordou Green no horário do almoço. Bateu na porta do flat em plena madrugada. Foi a gota d’água. Green não a deixou entrar. Estava acompanhado. Era melhor Thaís ir embora e evitar constrangimentos. A insônia tomou conta de Thaís. Caminhava de um lado para o outro do apartamento. Esquecia de passear com Bella. Deixou de comer. Não ligava para os pais. E mal dava conta das tarefas no trabalho. Pediu duas semanas ao chefe. Uns dias no colo dos pais faria bem, disse Jéssica ao preencher a requisição de férias. Mala pronta. Bella no banco de trás do carro. Ao sair da garagem, Thaís percebeu um vulto branco na frente do carro. Freou. O cão malhado desviou do carro e se pôs a cheirar o canto do muro onde o dono dormia. Durante as cinco horas de viagem, Thaís gastou a playlist repleta de músicas, como “Detalhes” e “Every Breath You Take”. Na casa dos pais, passou três dias sem tirar o pijama. Comia obrigada pela Dona Elza, a mãe. Chorava dia e noite. Mal conversava. Mesmo um homem rude, Seu Elias, entendeu que a filha precisava de ajuda. Luiz Felipe, médico da família, encaminhou Thaís a um colega psiquiatra. Lopes também atendia em Rio Preto e receitou para Thaís uma dosagem inicial de antidepressivo, ansiolítico e um bom remédio para dormir.

Sob controle, Thaís voltou a São Paulo acompanhada por Dona Elza. Retomou o grupo de dança. Comia melhor. E passeava com Bella. Nas voltas pelo bairro, era comum encontrar o cão malhado. Sempre sozinho, revirava sacos de lixo e corria quando enxotado pelos guardinhas de rua. No dia em que voltou ao trabalho, Thaís chamou a atenção dos colegas. Magra. Bonita. Corada. E com o sorriso besta emprestado pelo antidepressivo. Sentada em frente ao computador, viu Green de aproximar. Trazia uma caixa de plástico nas mãos.

“Vou embora, mas guardei um para você” Green abriu a caixa onde restava um sanduíche. Thaís olhou ao redor. Todos comiam o maldito sanduíche de carne com cebola caramelizada. Thaís correu pelo escritório. Distribuía tapas nas mãos dos colegas e gritava.

“Não comam! Não comam!”

Nem a tentativa de Jéssica para mudar a amiga de área salvou Thaís. Demitida por justa causa.

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Mauro Paz é escritor, publicitário e cineasta. Além da participação de diversas antologias, Mauro tem 3 livros publicados: Por Razões Desconhecidas (IELRS, 2012) São Paulo – CidadExpressa (Editora Patuá, 2014) e Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá, 2017). É criador do projeto #Instacontos. Para o cinema escreveu os curtas Parceiros (2014), Desencanto (2018) e A Primeira Vez de Ana Katamura (2018), o qual assina também a direção e está disponível no Youtube e Facebook.