BRISA – HENRIQUE WAGNER

A mãe de Brisa me procurou novamente, no meio do Largo Dois de Julho, para falar das crises noturnas da filha. Ela sabia que eu não era médico, mas livreiro, o homem que visitara seu apartamento um dia a fim de ver o acervo de livros esotéricos, surrados, à venda por qualquer valor que eu desse. Infelizmente livreiros gostam de conversar demais, e eu acabei puxando papo com a filha, que estava sentada no chão da sala vazia onde a mãe, massoterapeuta, atendia seus clientes. Brisa, do nada, me deu de presente, diante da mãe, um livro de astrologia (um catatau envelhecido).

Descobri Brisa antes mesmo de conhecer a mãe. A garota bonita de dezessete anos podia ser vista diariamente na pracinha do bairro, com roupas de casa, acompanhada de moradores de rua imundos e, especialmente, de um sujeito alto e macilento usando roupas sempre brilhando de tão novas, e todas espalhafatosas (bermudas imensas e coloridas, tênis altos e ainda mais coloridos que as bermudas, camisetas de time de basquete americano, correntão de prata e boné do Chicago Bulls). Era fácil perceber que Brisa tinha dono: havia sido abandonada ou se perdera. Quem por ela passava sempre sussurrava palavras de lamentação do tipo: “moça tão jovem, bonita, branca, de família”.

Outro ponto de Brisa e Cachorro Louco era um banquinho de praça que ficava de frente para a banca de revistas de Rosa, coitada, que já não aguentava mais o cheiro de maconha, às oito da manhã, quase todos os dias.

Cachorro Louco não morava no bairro, e ninguém sabia ao certo seu endereço. Quando aparecia no Largo, percebia-se estar em casa. E em pouco tempo já havia fornecido a droga a quase toda a população de sacizeiros das ruas mais próximas à pracinha.  Em seguida, circulava pelo Largo como a procurar – ou esperar impaciente – Brisa, que não demorava a aparecer, cada vez mais magra e desnuda, sempre de sandálias Havaianas.

A mãe de Brisa me disse que a moça deu para acordar de madrugada e gritar, gritar por horas, até amanhecer completamente. Pior, ela a agredia com nomes da pior estirpe, os mais vergonhosos, e só quando perdia as forças, exaurida, acabava dormindo no meio da sala. Os vizinhos vinham reclamando. A síndica mandou uma notificação. A mãe de Brisa disse que não sabia o que fazer, a filha não era assim, embora nunca tenha sido fácil, e achava que a separação era um dos motivos. O pai jamais a procurara.

Eu, é claro, sugeri que ela levasse a filha ao médico. De preferência um psiquiatra. Sugeri  ainda que entrasse em contato com o pai da moça e reportasse toda a situação. Em seguida voltei à loja, não sem antes ter avistado Brisa andando de mãos dadas com Cachorro Louco, seguidos por um filhote de vira-latas, bem peludo, branquinho e sujo, mas muito simpático e saltitante.

Numa manhã em que eu estava indo ao trabalho, dei com Brisa pedindo dinheiro aos transeuntes. Pediu a mim, inclusive, dando mostras de que não me reconhecera. Reparei em suas vestes: as mesmas, caseiras, de alguns dias atrás. Era cedo para Cachorro Louco.

Mas à hora do almoço, lá estava ele, gritando “Noia!” para o vira-latas sujo e simpático. Noia se embolou sobre os pés de Cachorro Louco, brincando com seus dedos negros e grossos, e seguiu adiante, correndo pelo matinho que crescia além do desejado na pracinha do Largo. Brisa apareceu e deu um demorado abraço em Cachorro Louco, e os três seguiram em direção ao Mercado Popular que ficava para além do coreto, quase no final do bairro.

Preocupado, liguei para a mãe de Brisa e finalmente relatei tudo, as drogas, a condição de pedinte, o namorado. A jovem massoterapeuta disse que já sabia de tudo, mas que sabia de algo que eu não sabia, algo muito mais importante: sua filha tinha esquizofrenia. Fora a um psiquiatra e o médico dera o diagnóstico e os procedimentos a seguir. Ela não sabia o que fazer. Estava desesperada. “Afinal, quem vai querer se casar com uma esquizofrênica?”.

Eu estava catalogando os livros que haviam acabado de chegar quando ouvi um som de bicho. Não era latido nem gemido, mas era som de cachorro. E lá estava Noia, dentro de minha loja, no primeiro andar de um centro comercial onde abundavam lojas de roupas femininas de quinta categoria.

Logo atrás de Noia iam chegando Cachorro Louco e Brisa, esta, com o olhar ausente e um aspecto geral de pessoa desprotegida. Confesso que senti um início de medo. Cachorro Louco, talvez porque eu estivesse sentado, parecia mais alto e mais largo quando tomou a frente e perguntou:

– O senhor tem algum livro sobre Psiquiatria? Mas que tenha uma linguagem fácil, para iniciante.

Sim, eu tinha. Algo do tipo “Psiquiatria para todos” ou “Psiquiatria sem mistérios”. Cachorro Louco abriu o livro diante de mim e o aproximou excessivamente dos olhos, quase escondendo o rosto inteiro entre as páginas.

– Vou ficar com esse.

– Pode levar, eu disse, cortesia da casa.

– Não, obrigado. Gosto de pagar as coisas.

Sem perguntar o preço, deixou uma nota de vinte reais sobre a mesa – o livro custava quinze – e me deu as costas, sendo seguido de imediato por seu séquito. Eu estava um pouco aturdido e fiquei sem ação por alguns minutos. Até que me caiu a ficha subitamente, e achei que devia, por uma questão mínima de ética, descer as escadas e correr atrás do casal, a fim de lembrar que um livro não pode determinar o tipo de tratamento a que uma pessoa deve se submeter.

Talvez porque já estivessem longe demais, talvez por um outro motivo, apenas olhei os três seguindo adiante, provavelmente em direção ao fundo do Mercado Popular: Cachorro Louco, Brisa e Noia.

 

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Henrique Wagner nasceu em 1977 em Salvador, Bahia. Poeta, contista e crítico de teatro, é autor de três livros de poemas e de um longo ensaio sobre estética da linguagem. Atualmente mora em São Paulo.