Pra onde quer que eu vá, vou ao redor de mim
(Angolana, Metá Metá)
Vida sem caos é apatia. Pura e simplesmente.
Este nosso texto vai começar com essa máxima. Pode soar como exagero, mas… Estamos no mês do cachorro louco, vamos uivar.
Caos é aquilo que passamos a vida inteira tentando ordenar, ou seja, a própria vida. Perda de tempo. O caos existe para todos, sem exceção. Tão inerente, tão palpável, tão natural; o caos é a máxima do universo, está dentro e fora de nós. Bem cantou Juçara Marçal na mesma música que escolhi como epígrafe deste texto, Angolana: “Se embrenhar/ No oco de um vulcão/ E acender/ O fogo do estopim/ Explodir/ Cantarolar/ Malabares/ Bicho, cão/ No vermelho do vinho/ Na flecha partida/ No chão/ Querubim”.
[Bom, se você ainda não percebeu, esse é um texto pró-caos. Fica o alerta.]
Não vou aqui me debruçar sobre a Teoria do Caos de Lorentz a respeito de eventos complexos que ocorrem na natureza, mas não posso falar do caos sem citar o exemplo do Efeito Borboleta. O efeito borboleta observado por Lorentz diz exatamente o que estamos carecas de saber, que “tudo depende”, ou, trocando em miúdos científicos, que “uma pequena mudança ocorrida no início de um evento qualquer pode ter consequências desconhecidas no futuro” (Brasil Escola – UOL).
Se é verdade o dito popular de que o farfalhar da asa de uma borboleta no Brasil pode provocar um furacão do outro lado do mundo, o que pode a ação humana reverberando em escalas incomensuráveis por aí?
Ou seja. Efeito Borboleta. Escolhas e seus efeitos no tempo.
Parto disso para dizer que não é pouco o medo que o acaso nos causa. O acaso, o imprevisível, o irrefreável, o instável, a pungência mais íntima. Mas não adianta temer, não se pode controlar o movimento da asa da borboleta.
A verdade é só uma, e fugimos dela: o caos é real, o caos é cíclico e intermitente. Não é bagunça, não é desordem. Apenas não cabe na lógica do controle. Precisamos parar de nos acovardar diante dele.
Mulher sangra o caos todo mês. Experimenta o descontrole da TPM, se perde em seus rutilantes caminhos internos e se (re)encontra, volta ao seu centro, para mais uma vez descentrar-se. É nítida a materialização do caos na existência feminina. Esse ciclo de caos e ordem me remete ao ciclo de vida-morte-vida das mulheres explorado no livro de Clarissa Pinkola Estés, Mulheres que correm com os lobos, no conto da “Mulher-esqueleto”, principalmente pela mensagem que passa sobre mortes necessárias, para que haja renovação interna. “Caosmaria[1]”.
Menstruar é doloroso. A morte é dolorosa. Soma-se a isso a interpretação distorcida sobre o caos em nossa cultura. Há que se entregar ao caos para que a ordem se (re)estabeleça. Resistir a ele é chafurdar no sofrimento, agora se entrosar com ele, gente, é viver a vida ou não é? Entregar-se é deságue, é equilíbrio, o contrário é se esconder na ignorância, é mascarar a realidade.
Esse movimento de morte, ou de entrega, para fruir a essência da vida, permeia tudo. Medo e dor, faz parte. Mas precisamos nos permitir. Pensem no orgasmo. Pensem no nascimento. Pensem no processo de escrita. Quem teme o caos não goza, não nasce, não cria. O lance é ir no flow.
Recentemente me debrucei sobre o trabalho de Cezar Migliorin para escrever um projeto de doutorado e descobri mais um entusiasta do caos (já me deparei com vários vida acadêmica afora). Migliorin é um acadêmico ousado, como Rancière, com quem dialoga bastante. Seu trabalho consiste, resumidamente, em disseminar a arte do cinema em escolas públicas do país inteiro, por meio de uma abordagem política sobre os direitos humanos, arte e educação, que visa a emancipação dos sujeitos escolarizados. Mas Migliorin não quer mudar a escola, nem quer ensinar nada a ninguém, e que bom que existem teóricos que já passaram dessa fase.
No livro que lançou em 2015 sobre seu trabalho, Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá, aponta o mafuá como diretriz das oficinas artísticas que desenvolve em seus projetos. O mafuá! Inspiração de Manuel Bandeira a escrever Mafuá do Malungo (1948). Atentemos para sua definição de mafuá:
O mafuá como gesto, ação, montagem, encontro e festa em que o conhecimento se faz possível e os agenciamentos – humanos, não-humanos, simbólicos, sociais e cósmicos – se transformam. Ele facilita pensar a potência inventiva de uma sala de aula – espaço em que um acontecimento pode se dar – e a potência igualitária do encontro na escola com o cinema ou outro conhecimento qualquer. (…) A ordem que se estabelece no mafuá depende de seus próprios objetos e atores; não é imposta de fora. Ou seja, o mafuá não pode ser entendido como apenas bagunça ou ordem, mas como acoplamentos e montagens com arranjos e organizações instáveis e passageiras, nas quais podemos nos agarrar e aprofundar, enquanto ela não para de ser afetada pelos tantos outros objetos e atores que instabilizam a manutenção de uma ordem. O mafuá é ordem e desordem para quem está dentro e pura bagunça para quem está fora. (MIGLIORIN, 2015, p. 195-196)
Atentemos agora para o trecho em que menciona os “arranjos e organizações instáveis e passageiras” como forma de equilíbrio entre caos e ordem no mafuá. Atentemos também para o espaço que o mafuá abre para a inventividade e transformação. Mafuá. Caos. Libertação.
Nós seres humanos precisamos nos livrar das amarras da falsa ordem. A mulher precisa. A educação precisa. A política precisa.
O caos é a ordenação do mundo. Só ele pode nos colocar nos trilhos.
Pronto. O último uivo exagerado desse texto.
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Carolina Hora, 33 anos, artista-educadora, graduada em letras e pós-graduanda na área de educação.
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Referências:
– ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e arquétipos da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
– METÁ METÁ. Angolana. Álbum: MM3. 2016.
– MIGLIORIN, C. Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2015.
[1] Palavra inventada para significar a fusão entre o caos, a mulher, e a serenidade da morte.