Puxei o mais forte que pude, queria que houvesse algum barulho que quebrasse o silêncio daquele anoitecer. À espera de algum impacto que atingisse os meus ouvidos e me fizesse despertar desse pesadelo laranja. De um sol demorado que tem preguiça de ir embora. Apolo teve que trocar alguma roda. Bati e fechei. Fraco e estúpido dos braços como me encontro, arranjei-me aos ouvidos apenas um soprinho tímido do contato entre porta e batente. Como se de dentro alguém puxasse a maçaneta contrariando minha intenção. De leve, não vá acordar o vizinho…
Não havia ninguém. Não mais. Havia flores. No chão, nunca cumpririam seu papel de flor, além de murchar. Não seriam de amante alguma. Altar algum. Quase morta que estou, bem merecia. Defunta alguma. Antes de deixá-las, tirei uma do ramalhete. Enfiei no buraco da lapela: ponto de cor no preto que me cobre. Essa não vai sofrer de ser inútil e, encharcado como sempre anda esse peito, de sede também não. Tomara que goste de vinho, entra.
Saí. Um reto corredor cheio de curvas me recebe. Não estrebuchou assim mais cedo. A garrafa ainda cheia me garantiu certo equilíbrio quando cheguei, eu acho. Pode colocar no criado-mudo, depois eu pego. Um pezinho na frente do outro, era assim que eu fazia no circo. Se cair, morre, se cair… Aqui não morro. Se eu cair, aqui eu fico. Não! Depois era dia de novo e eu teria que esperar pela noite mais uma vez. Deixe-me ir. Preciso andar. A garrafa fica, vazia e inútil junto das flores.
Cheguei ao fim. Quase acordado e quase em pé. Derrotado, o corredor desaparece no escuro, mais um dos meus doze trabalhos. Feito. Chego à calçada, tem luz. Quem conduz é a dona desse bordel. Redonda e distante, observa de cima. Pega o que é próprio de outras estrelas e distribui. Tal qual a outra. Desgraçada. Branca, redonda e desgraçada. Sugou o que pôde e jogou fora o que sobrou. Pó de estrela torturada. Nem um trocado para o remédio. Nem com ela ficava. Desgraçada. Moedas de prata tilintando em bolso de uma farda. Eram muitos. São muitos, o que tenho já não os paga, nem precisa, nem lembro pra quê os tomo. Bem o sei. Sabia.
A calçada é estreita, cheguei à rua que me abraça. Rio. Levantei de novo e o mundo não parou para que eu descesse. Girou. Um pezinho na frente do outro, se cair…
Limpa, cabelo sempre oleado, espinha direita, todos os dentes, trocava os lençóis antes de me receber e o principal: lúcida. De uma lucidez que nunca me permiti ter. Lunático. Contas a pagar. Alguém a responder. Conta de mim o que quiser. Conto o que vi. O que inventar será minha história e assim aceito. Nada ouvi do que um dia fora. Lúcido túmulo. Com o tempo nem sabia mais o quê.
A pele ferida nunca me enojou. É do sabão. A febre também? É do lençol. Era e não era. Pelo lençol chegou. Antes chegasse mais um. Tomava chá e… mais um. Nisso a Lua ajudava. Mundana e desgraçada. Não era o caso. Não era caso de chá, nem de pó de canela. Chegou e ficou. Estadia de anos. Nem sinto, logo some.
Sumiu. Carnes nem tinha mais. Comia e descomia. Trabalhando, não punha nada na boca antes. Jejum e joelhos no chão. Riu. De um riso que só vi de novo, quando me tirou de dentro quadro.
De pé. Ladeira abaixo. Um pezinho… Tenho que descer. Mais um dos meus trabalhos. Não entrei em porta alguma. Todos os umbrais estão marcados com sangue de cordeiro. Hoje o anjo do senhor não mata nenhum primogênito. Sou caçula. Desço.
Manchas e ossos. Era só. E boca. Nunca falou tanto. Só não via o que ela via. Agora, quem trocava os lençóis era eu, também a água, também a roupa. Quero dançar, meu vestido roda? Nem vestido era, joguei pano limpo no lugar de uma camisola encharcada de febres. Levanto, pisa no meu pé, no outro. Maria Antonieta não quer saber se eles querem pão… nem minha mãe. Eu enxugo o choro. Nosso. Na cama ela conversa com o quadro. Pálidos: cão e homem sentados numa soleira. De chapéu coco e bengala você me pôs pra dançar.
Desci mais um pouco. Tantos primogênitos. Estrelas torturadas. Um pezinho… uma unha, uns dentes. Navalha nas partes mundanas. A rua se estreita e vira corda. talento de família. Não deveria estar na rua, assim se arrisca. Não estou, estou na corda, se cair não morro. Arrisco não, saí ainda era laranja. A flor na lapela ainda é. Essa, mais equilibrista que eu, resistiu a minha queda. Resistiu. Tem despedaço seu no meio-fio, certeza. Mas não caiu. Dei tapinhas no peito, lapela esquerda. Parabenizei. É cor no luto. Ficou comigo.
Fica comigo, Carlitos? A gente encontra o cão, traz ele pra cá. Tem cão que lambe feridas e faz sarar, sabia? E as minhas ele sara, Carlitos?
Meu cão também foi mundano. Achou que era Quincas. Quis morrer na rua. E assim fez. Começou a chover. Cuidei de Quincas. Nunca nem pensei em ser Napoleão. Nem ela.
Sabia quem fora e não contava. Ferida no tempo. Não sabia quem era. Que comam brioche! Que comam brioche! Seguido um gesto que nunca vi francês fazer. Nunca vi francês. Queria subir nos meus pés de novo. Permiti-me força – dessa vez e das outras – para levantá-la. De pé pelos dois. Ela dançava e eu não. Eu nem toco no chão, olha! Flor depois que é colhida não pode tocar na terra. Flutua em água limpa, até…
E esse descer que não se termina, João Gostoso? Cadê a lagoa? Um pezinho atrás do outro. Começou a chover. Não! Continuou.
O chapéu protegeu. Não tiro mais, é de estimo. Nem achado, nem presente, tampouco amuleto de sorte. Afundei mais, testa abaixo. Comprei e não para mim. Só falta a bengala pra ser igual àquele dia. Dançamos e o cão fugiu. Riu. Morreu na chuva, não foi, Carlitos? Foi. Olhou de novo o chapéu, o quadro – cão e homem. Dormiu. O cão morreu na chuva.
Se cair… Aqui não morro. Não na chuva, não na rua. Sei andar na corda. Um pezinho atrás do outro. Aqui não morro. Aqui não morro. Aqui não morro. Desço. Três que subiam tentaram, em vão, me levar. Não deixei. Derrotei-o.
Na descida, as árvores se movem, a luz emprestada engana. Acende, por favor. Me conta por que veio. Me leva para sentar na soleira da sua porta. Quero viver pintada, eternizada. Envernizada. Ali o cão não foi pra chuva ainda, pode lamber minhas feridas.
Olha! Um baile de mariposas acontecia na lâmpada que fitava. Olha como dança minha mãezinha. Nem parece que nega pão. Fraca. Piscava. Pedindo dessa forma, não nego. Carlitos, a luz me chamou pra dançar. Riu.
No outro dia estava cega.
Qual lucidez que abandona a passos curtos. Aos poucos me abandonava. Pedia pela mãe que rodava e ignorava sua fome. Esfregava o estômago. Lençóis encharcados. As flores cumpriam seu papel de flor. Quase morta que estou, bem merecia. Sim. São de que cor? Camuflam odores. Essa cor tem cheiro. Tem sim. Não a flor, Carlitos. A cor cheira bem. A cor.
Bebi.
Cantei.
Dancei.
Equilibrei-me até o fim da ladeira. A lagoa. Pezinho atrás de pezinho, se cair… O vestido que roda, cabelo oleado, espinha direita. Repouso horizontal. Lençóis trocados. Limpa. Teve sede e não teve tempo de beber. Tirei-a para dançar mais uma vez. Só um giro. Deita e desce. Vierem colhê-la. Flor em contato com a terra. Em seu leito não houve flores.
No meu leito há uma flor. Laranja. Flutua alcoolizada. Dança na superfície das águas acompanhada de um chapéu coco.
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Marcos Ramos é cria da periferia de Diadema – SP, Marcos é formado em Estudos Lusófonos pela Universidade de Coimbra, Licenciado em Letras -Português/Francês pela UNESP – Assis. Atualmente é mestrando em Literatura e Vida Social também pela UNESP e se encontra quebrado financeiramente, pulando hostel em hostel, por conta de um estágio de pesquisa não remunerado que decidiu fazer às cegas na Sorbonne.