CUSPES, CORRENTES, PONTAPÉS – ROMULO NARDUCCI

A roda estava da pesada. O som da banda Comboio de Ratos fazia o bar do Chapeleta parecer o inferno na festa de aniversário do próprio capeta. Suas guitarras distorcidas, baixo porradão e bateria bate-estaca, unidos aos berros alucinados do vocalista magricela Pedro Pedrada – que cantava “Morte aos porcos capitalistas / vamos à revolução / anarquia e liberdade / essa é a solução!” – atiçava os punks de vários cantos dos subúrbios do Rio, que tinham ido prestigiar o festival.

Chapisco, Catiço, Mamusca e eu estávamos assistindo ao mosh encostados nos engradados de bebidas que dividiam o banheiro feminino do masculino, que ficava do lado oposto do palco. Àquela altura do campeonato já não tinha gata que entrasse em banheiro de gata, véio que entrasse em banheiro de véio, tava tudo junto e misturado e a putaria rolava solta.

Éramos um quarteto que fazia parte de uma gangue especializada nas tretas mais elaboradas do movimento punk do Rio de Janeiro na década de noventa.

Chapisco era o caçula. O nosso café-com-leite batizado com pinga, pois bebia como um exu. Portava uma faca de caça escondida por baixo de seu jaquetão jeans roto e cheio de retalhos com nomes de bandas como Mercenárias, Olho Seco e Garotos Podres. Tinha tatuado na lateral esquerda da cabeça rapada o A de anarquia.

Catiço era o mais raivoso da nossa banca. Baixinho, troncudo, mil correntes penduradas em volta de sua jaqueta de couro velhaca e cheia de spikes. Usava um penteado moicano pintado de vermelho e calçava um coturno com biqueiras de ferro que fedia mais que uma fossa.

Mamusca era a mais velha do grupo. A nossa garota veneno. Uma negra alta, corpulenta, muito bonita de rosto, os seus olhos vibrantes lembravam os de Grace Jones nos momentos de fúria no filme “Conan, o destruidor”. Usava um corte de cabelos andrógino estilo black power e andava sempre com a mesma camisa amarela da banda Cólera. Usava também uns colares vodu enrolados no pescoço:

– Esse aqui da serpente e do arco-íris é Ayida, loa feminino que representa a força positiva que move a esfera celeste. Esse outro aqui é de Papa Legba, intermediário entre os loas e a humanidade. Esse aqui é de Gede, ele governa o espírito dos mortos… Dizia orgulhosa nos ensinando aquilo que dizia ser sua religião de fé.

Eu era apenas um fanfarrão branquelo da classe média, filho de donos de uma mercearia no Galo Branco, em São Gonçalo e vivia revoltado com o mundo à minha volta. Num intervalo das aulas na Escola Técnica Henrique Lage, em Niterói, estava sentado no banco próximo à cantina com minha camisa de estimação do Skid Row, ouvindo uma fita com uma compilação que havia feito com as músicas do Guns n’ Roses. Balançava sutilmente a minha cabeleira lisa escorrida até os ombros quando Catiço aproximou-se e sentou ao meu lado com um ar de superioridade. Ficou olhando para minha cara com aquele aspecto ameaçador que parecia ter saído do filme “Selvagens da Noite”. Tirei o fone desconfiado e ele perguntou:

– Que cê ta ouvindo?

Guns.

L.A. Guns?

– Não… Errr… Guns n’ Roses.

Fez cara de nojo, escarrou no chão à sua frente e tirou da sua bolsa de pano – na verdade um saco todo costurado com milhares de rabiscos com símbolos anarquistas e nomes de bandas – uma fita em estado lastimável dizendo:

– Larga disso, camarada. Essa porra de hard rock é nojeira! Ouve essa parada aqui.

Me sentindo mais ameaçado do que empolgado coloquei a fita no meu walkman. Ele disse antes de começar:

– Vai explodir sua cabeça, meu camarada!

E explodiu. Um grito com uma voz grossa e rasgada ecoou: “Anti-UK…!” Depois uma distorção alucinante de guitarra começou num riff arrastado como uma locomotiva que invadia o meu cérebro e atropelava Gun n’ Roses, Skid Row, Bon Jovi, Poison, Extreme, Van Halen e o caralho!

Ele riu escancarando com os seus dentes sujos amarelados e deu um leve soco no meu ombro. Meus olhos arregalados denunciaram o “hardroquecídio” coletivo no meu íntimo. Ele intrometeu-se no meu massacre interior tirando o fone da minha cabeça e dizendo com um punho cerrado e erguido como se comemorasse vitória:

– “The Exploited”, caralho!

Foi assim que nos conhecemos. Depois disso, cortei o cabelo em estilo militar, pintei de verde, coloquei um alargador na orelha e rasguei as minhas camisas sleazy rock – queimando tudo durante uma madrugada num ritual com Catiço no terreno baldio ao lado da minha casa, com direito a fogueira, cachaça e The Clash cantando “Lost in the Supermarket” no meu antigo toca fitas-cassete portátil Sanyo. Catiço dançava como um pajé ensandecido em volta do fogo, enquanto eu ria de me mijar.

Após o ritual inicial, passei a acompanhá-lo em shows undergrounds em São Gonçalo, Itaboraí, baixada do Rio de Janeiro, Praça da Bandeira, e com poucos meses estava inserido na gangue. O primeiro contato com Mamusca e Chapisco já fora um evento bastante atribulado. Os dois chegaram num boteco no Centro onde estava bebendo com Catiço – Chapisco mancando muito, mal conseguia respirar, apoiado no ombro de Mamusca, reclamava de dores nas costelas – e sentaram-se à nossa mesa, ele com muita dificuldade. Fiquei espantado quando o vi de perto, o moleque estava com os cornos lavado de sangue e mal conseguia respirar e abrir os olhos. Mamusca nos contou que os dois teriam sido emboscados por três carecas do Brasil que estavam rondando a Central. Ela, mais rápida, conseguiu escapar correndo em direção à Praça da República. Chapisco tropeçou e foi pego ainda no chão. Levou uma surra de correntes e pontapés e só livrou-se da morte porque os carecas fugiram ao ver um carro da Polícia que fazia a ronda na Presidente Vargas. Passamos a noite no hospital. Chapisco fraturou três costelas, teve o nariz e três dentes quebrados, uma fissura no braço direito e uma luxação no pé esquerdo. Hoje, depois de quase um ano, ainda um pouco manco, encontra-se pleno em suas artimanhas.

– Pronto pra outra. Sempre dizia quando contava a história com o sorriso lhe faltando os três dentes da frente.

A banda Comboio de Ratos anunciou que iria tocar uma cover e soltou os primeiros acordes da música “Sandina”, clássico dos Replicantes, uma das bandas preferidas de Catiço, que logo arregalou os olhos vidrados e inquietos observando a roda que vibrava ensandecida com os punks que pogavam, cuspiam para o alto e se atiravam uns contra os outros cantando em alto e bom tom a letra: “Sábado todo / Eu chorei de mágoa / Minha garota / Foi pra Manágua / Lutar pela revolução / Lutar pela revolução…”

Chapisco virou o último gole da garrafa de Pitú e caiu sentado sobre os engradados. Mamusca o puxou pelo braço às gargalhadas evitando que o mesmo tombasse para trás e se esborrachasse em cima dos cascos de cerveja. Catiço não conseguiu se controlar quando chegou o refrão e saiu em disparada na direção da roda e praticamente mergulhou naquele tumulto. Alcançou logo o centro chutando o ar, dando de cotovelos, empurrando e sendo empurrado em todas as direções, cantando e berrando a letra da música.

Sem que percebêssemos, um doidão – com um penteado satélite verde e amarelo – apareceu cambaleante e encostou do nosso lado. Abraçava com ternura uma garrafa pet com um pouco de cola de sapateiro. Quando notamos a sua presença, o doidão enfiou aquilo na boca, aspirou a plenos pulmões e quando voltou à tona deu um urro agudo como um índio em pé de guerra.

Nossa primeira reação foi rir da cena, até que o indivíduo percebendo que havia chamado a nossa atenção estagnou diante de Mamusca e a ficou encarando de forma tendenciosa.

Um alerta ligou dentro de mim. Na mesma hora a atenção que era direcionada com satisfação para o show desviou-se para a tensão da possibilidade de alguma treta.

Mamusca tentou desviar-se, mas o doidão ofereceu a garrafa para ela, estendeu aquele líquido viscoso amarronzado e fedorento na direção do seu rosto e senti um brilho de insanidade ir ganhando intensidade nos seus olhos de Grace Jones. Vendo que ela não aceitava o seu presente, o doidão levou o gargalo da garrafa até a boca e simulou um boquete, arregalando os olhos num deboche desvairado.

O meu coração acelerou e cheguei a sentir o gosto de sangue se misturar com a minha saliva. Ia dar ruim. Não tinha outra maneira. Tinha certeza que a treta ia rolar. Conhecia a minha amiga como ninguém. Ela odiava qualquer tipo de abordagem machista. Aproximei-me vagarosamente e fiquei atento aos movimentos do doidão que continuava debochando de Mamusca enfiando o gargalo da garrafa na sua boca imunda e retirando, lambendo e lambuzando aquilo com sua saliva grossa, como se chupasse alucinadamente um pau enorme.  Chapisco continuava sentado no engradado com a cabeça arreada tentando recuperar um mínimo de sobriedade. O clima estava ficando cada vez mais tenso. Já via o peito de Mamusca estufando, como se estivesse conclamando um pé de guerra… Mas a minha atenção foi desviada quando Catiço surgiu do nada, aos pulos, me deu um soco no ombro e voltou correndo para o meio da roda. De lá gesticulava me chamando para acompanhá-lo, tentei avisá-lo que estava atento à possível treta que se formava e sem me compreender, me xingava de cuzão – eu não ouvi o palavrão por conta do som ensandecido que tomava conta do local, mas o u e ão que a sua boca raivosa formou me fez entender o recado.

No momento seguinte só ouvi o barulho de um baque seco seguido pelo de vidro quebrando. Foi apenas um segundo do desvio da minha atenção para que Mamusca catasse a primeira garrafa que estava ao seu alcance e batesse com força nos cornos do doidão, que caiu de joelhos e encolhido com as mãos no rosto. O outro segundo que se seguiu foi de apreensão, até que o infeliz se levantou berrando com as mãos apalpando o vazio na direção do seu rosto. Mas rosto lhe sobrara? Já não havia os olhos. Não havia o nariz. Nem a sua expressão anterior de deboche. Apenas uma massa vermelha com uma boca escancarada aos berros. Na mesma hora Chapisco recobrou a sobriedade e num sobressalto aterrorizado, escondeu-se atrás de Mamusca, que ainda não acreditava no estrago que havia feito. Minhas pernas bambearam e senti uma ânsia de vômito. Quando Catiço retornou pulando e vibrando para me chamar novamente para a roda, alheio à cena de terror, ao se dar com aquele espectro errante, deu um salto pra trás e gritou:

– Puta-que-pariu, o que cês fizeram? Corre que esse é o Catarro! Líder dos anarco de Nova Iguaçu, porra! Tá todo mundo aqui no show! Fudeu! CORRE, PORRA!

Não precisou de mais nada. Saímos em disparada, atravessamos o tumulto aos empurrões e saímos do bar Chapeleta. Corremos sem olhar para trás. Não sei por quanto tempo. Nem em qual direção. Chapisco tropeçou, caiu como uma jaca se espatifando contra o asfalto, mas logo em seguida já estava nos alcançando com a agilidade de um maratonista. Cruzamos uma rua, viramos a esquina de uma quadra, saímos numa avenida principal e quando já não aguentávamos mais, começamos a diminuir o ritmo, a respiração ofegante, os pulmões ardendo… e paramos. Os quatro com as mãos apoiadas no joelho buscavam o ar com sofreguidão do fundo da própria tragédia. Catiço levantou a cabeça ofegante dizendo:

– Bora, parar não… se alguém viu a gente…

Mamusca passou a mão no rosto suado e falou com a voz quase lhe faltando:

– Acho que ninguém viu, tava escuro onde a gente tava e…

– Não importa! Catiço tá certo, vamos continuar. Simbora meter o pé! – Interrompi no intuito de continuar a fuga.

– Mas vamos andando, não aguento mais correr. – Reclamou Chapisco arfante.

Continuamos caminhando num passo mais firme, até que chegamos num ponto de ônibus. Devíamos estar bem longe do bar, mas a gangue de anarco de Nova Iguaçu se traduzia em mais ou menos quarenta cabeças ensandecidas. A rua estava deserta. Do outro lado havia uma travessa e mais para o final, vimos a luz de um pé sujo, então tive uma ideia:

– Melhor esperarmos dentro daquele botequim e quando ouvirmos o barulho de ônibus a gente corre pra rua. A gente pega qualquer um até um local mais seguro, não importa. Ficar aqui é furada!

Todos concordaram. Atravessamos a rua e seguimos até o final da travessa, onde havia o tal botequim. Ouvimos um som de Ska, mas nem nos demos conta. Quando chegamos à porta, sentados à uma mesa comprida, jogando carteado, estavam um, dois, três… uns seis a oito Carecas do Brasil. No mesmo momento congelamos. Nem um passo a mais conseguimos dar. Só então vi uma bandeira na parede nas cores da bandeira nacional por detrás do balcão com um enorme bulldog desenhado no centro.

Um dos carecas sentado à cabeceira da mesa, o maior e mais forte, levantou-se – semblante de ódio, dentes rangendo – passando a mão num cassetete dizendo:

– Olha só pessoal… o que temos aqui! – disse aproximando-se lentamente girando o cassetete no alto, enquanto os demais iam levantando-se com a mesma tranqüilidade com um sorriso demoníaco nos semblantes. –  Ei, tchu tchu tchu tchu… punk-punk-punk-punk vem aqui com o titio…

Catiço com o horror encarnado em sua alma virou-se para nós três e gritou:

– COOOOOORRE, POOOORRA!

::
Romulo Narducci (@romulo_narducci) é poeta, escritor, compositor e guitarrista da banda de rock Mangusto. Um dos idealizadores do evento Uma Noite na Taverna, realizado em São Gonçalo de 2004 a 2016. É autor dos livros de poesia “Orações Licenciosas (Ou Cancioneiro Erótico)” (2008) e “Tudo Que Morre é Consumado” (2010) e do livro de contos “Angustiolândia (Ou de Bares, ruas e bordéis)” (2015), além de ter participado de diversas coletâneas de contos e poesia.