ELES TÃO, EU NÃO – DOUGLAS MOREIRA

Que frio da porra que tá hoje. Três meses de calor, comendo poeira, respirando essa merda desse ar aqui do centro e de repente vem essa chuva do cacete. Frio da porra. Olha lá o cara em cima do caminhão, falando pelos cotovelos, todo se balançando pra não cair da caçamba. Tá sem equilíbrio. Como berra. Não dá pra entender direito, mas pelo jeito não gosta de nada. Não gosta de gente. Não gosta de negro, de branco, de gordo, de mulher feia… Não deve gostar de bicho também. Tá falando que tem que tratar na bala. Já comi bala uma vez. Me embrulhou o estômago. Como muita porcaria. Como esse cara fala. Não fala, berra. Tá falando que tem saudade, que tem uma verdade sufocada. Tá falando de alguma coisa brilhante. Ostra brilhante é isso. Acho. Não entendo direito. Deve ser algo assim. Deve sofrer. Falou que não gosta de Omo. Ah, entendi o brilhante. Prefere brilhante. Eu não me importo. Só não gosto de óleo queimado. Nem pra beber, nem pra tomar banho, nem pra cheirar. Estraga a gente. Acho que ele bebeu óleo queimado. Deve estar estragado. Quanta raiva. Quanta raiva. Nunca tive. Ainda bem. Me cuido. Ele não. Que louco. Tem um cara ali que eu conheço. Já vi aqui dando paulada geral. Tá lá de mão estendida. Nunca tem comida. Só tem pedra. Já vi ele aqui. Tá lá gritando também. Apito. Agito. Dito. Não entendo o que ele grita. Mas conheço ele. Tá sempre aqui. Pedra na mão, paulada. Já vi com água quente também. Em gente. Joga água em gente. Deve ser pra limpar. Ele parece sujo. Será que ele se limpa? Que frio da porra aqui. Chuva do cacete. Queria um cobertor. Já vi ele aqui pondo fogo em cobertor. Puto. Tá lá com o outro, berrando. Não entendo. Quanta raiva. Tá falando em bala de novo. Deve gostar de criança. Ele grita e o puto da paulada grita junto. Que gente doida. Grito. Frito. Não entendo o que eles gritam. Tô com fome. Não tem uma TV ligada por aqui. Nesse frio, só domingo. Merda. Vou ter que esperar. Fome da porra. Frio da porra. Pelo menos não tem poeira. A chuva levou embora a poeira. Tem aquelas duas lá. Vem sempre. Tão gritando também. Desisti de entender o que gritam. Muito alto, muita raiva. Nunca tive, ainda bem. Elas roubam aqui na praça. Uma distrai, a outra leva a bolsa. Adoram bolsa. Chutam à toa. Riem alto demais. Não tenho paciência. Me roubaram uma vez. Me devolveram. Teve bala, não entendi direito. Gostam tanto de bala, que gente louca. Quanta raiva. As duas mais o da paulada tão abraçados. Acho que tão juntos. Os três. Que faz essa gente? Aquele do carrão vem de sexta. Pegam o carro e ele entra na portinha. Puta sorte aquela portinha. Tá chovendo, portinha. Tá sol, portinha. Já ouvi falar de portinha. Tem o que comer lá dentro. Acho que ele vem comer. Não entrou. Juntou com o da paulada e as duas que roubam bolsa. Adoram bolsa. Que inferno. Tá frio pra porra e eles tão gritando. Deve ajudar. Vou gritar também. Não vou não. Eu grito e tem porrada. Não dá pra gritar agora. Vou ficar na minha. Não vai mudar nada. Mas eles tão gritando. Tão com raiva. Tão abraçados. Acho que ajuda gritar abraçado. E roubar bolsa. Não roubo nada. Não consigo. Tenho fome, frio e não roubo porra nenhuma. Fico aqui de olho na TV. Hoje nem tem TV. Merda. Odeio bolsa. Fito. Acho que foi isso, Fito. Olha lá, tá falando de sabão de novo. Deve gostar de tomar banho. Odeia Omo. Gosta de Brilhante. Já falou disso porra. Que insistência. Tá falando de roubar. Deve ter se machucado. Tá com calombo. Teve um calombo. Não sei não entendo. Alguém rouba no calombo. Não serve pra nada. Procriar. É isso, ele quer procriar. Tá caçando, só pode. Tão rindo. Porra. Tão rindo. Deve tá contando piada. Deve ser divertido. Tem cara de que vai se equilibrar. Vai dar um jeito. Tomara que não. Cara doido. Tá balançando na caçamba. Desequilibrado. Como grita, que raiva. Quanta raiva. Dá medo. Não tenho. Nunca tive, ainda bem, me cuido. Mas já vi. Vi que machuca, vi que maltrata, fura a perna e sai amarelo. Sangra, aleija a gente. Enche de breu a cabeça. Acorrenta. Acorda sufocado, pendurado. Cordinha. Não foi nada. É daqui pra frente. Eu olho pra frente. Pra trás, pros lados. Senão é porrada. E água quente. Essa gente berra demais. Não consigo ouvir. Ninguém consegue. Nem eles. Que gente louca. Quanta raiva, quanta raiva. Quanta gente louca. Que medo. É sinistro. Eu tô de boa, mas eles não. Elas roubam bolsa. Ele gosta de bala. O paulada gosta de paulada. Tão com raiva, tão loucos. Sério. Tá frio e eu tô com fome. É sério. Coceira do cacete. Tá vermelho aqui. Que merda. Tô cansado. Minha carroça tá chegando. Vou me mandar. Vai sobrar pra mim, sempre sobra. Sempre tô na lona. Quanto berro. Quanta raiva. Tão babando. Quanta raiva. Tá osso. É isso. Tá osso. Fubá pouco meu angu primeiro. Osso pouco daqui meu esqueleto. É agosto. Eles tão loucos. Eu não.

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Douglas Moreira (@dougmoreira) é natural de Rio Grande da Serra/SP. Mora em São Paulo há quase 20 anos. É ator formado pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Marido da Perla, pai orgulhoso do Filippo e da Aurora.